Medicina Nuclear: reator brasileiro que pode revolucionar setor de radiofármacos começará a ser construído em setembro

Medicina Nuclear: reator brasileiro que pode revolucionar setor de radiofármacos começará a ser construído em setembro

Aprovado há quase 20 anos, Reator Multipropósito Brasileiro deve ficar pronto em 2030 e promete alavancar produção nacional de radiofármacos e o mercado de medicina nuclear

By Published On: 04/09/2024
Medicina nuclear e radiofármacos

Foto: Adobe Stock Image

A área de medicina nuclear e produção de radiofármacos vive um boom global. A especialidade consiste na introdução de pequenas quantidades de materiais radioativos – os radiofármacos – no corpo para realizar imagens, diagnosticar e tratar doenças. Enquanto no mundo gigantes farmacêuticas estão desenvolvendo negócios e adquirindo empresas do setor, o Brasil em breve terá um projeto para participar desse jogo: a construção do projeto do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) terá início em setembro e deve ser concluída em 2030.

É o que aponta Wilson Calvo, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Aprovado desde 2008, a instalação pretende ser o centro de pesquisa em tecnologia nuclear mais importante do Brasil e aumentar o acesso da população à medicina nuclear, por meio da produção nacional de radiofármacos. “É uma questão de soberania que nós precisamos. Vamos conseguir reduzir o preço do produto final e ampliar o acesso. Isso realmente nos dá muito orgulho em relação a esse projeto e estamos conseguindo avançar bastante agora”, afirma.

A medicina nuclear pode ser aplicada em diversas áreas, como cardiologia, endocrinologia, nefrologia, oncologia e, mais recentemente, na neurologia. A especialidade se destaca pelos baixos efeitos colaterais, procedimentos seguros, praticamente indolores e não invasivos. O médico especialista e presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), Rafael Lopes, explica que o material radioativo é depositado em substâncias conhecidas para analisar a distribuição delas pelo organismo. Por exemplo, a glicose pode ser marcada com um radiofármaco e inserida no corpo para observar onde ela é mais utilizada, assim é possível identificar anomalias como tumores que utilizam muita glicose para se multiplicar.

Ele ressalta também a capacidade da medicina nuclear de determinar a extensão de uma doença com precisão. Segundo Lopes, a avaliação do grau de disseminação é essencial para determinar a eficácia do tratamento, guiar decisões médicas, reduzir custos e priorizar o bem-estar do paciente. “Com isso podemos decidir fazer um tratamento mais definitivo, curativo ou mais paliativo. Permite que eu tenha decisões mais adequadas e racionais”, diz.

Medicina nuclear e produção nacional de radiofármacos

O Brasil possui mais de 400 serviços de medicina nuclear, entre clínicas, hospitais e centros de pesquisa. Contudo, segundo o diretor, atualmente o país gasta 20 milhões de dólares (cerca de R$110 milhões) na importação de radioisótopos, matéria-prima para produção de radiofármacos. Com o RMB a ideia é passar a produzi-los nacionalmente para que sejam processados e distribuídos pelo Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). Assim, além de trazer economia para o país, a expectativa é que o reator deve baratear o mercado da medicina nuclear e reduzir os riscos de desabastecimento.

Considerado estratégico pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o RMB está orçado em R$ 2,5 bilhões. Desde a sua aprovação, foram investidos cerca de R$300 milhões, utilizados para definição do local e para obtenção de autorizações e licenças. Em 2023, o projeto foi incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e recebeu um financiamento programado de R$1,5 bilhão pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Além das aplicações em saúde, a produção nacional de radioisótopos deve beneficiar outros setores da indústria, além de agricultura e meio ambiente. Por isso, o RMB vai ser construído em um terreno de dois milhões de metros quadrados próximo ao município de Iperó, no interior de São Paulo, com capacidade para grande infraestrutura de laboratórios e instalações de suporte para pesquisadores.

Durante muito tempo a produção, comercialização e utilização de radioisótopos no Brasil esteve em monopólio estatal, contudo, nos últimos anos, o mercado foi aberto para a iniciativa privada. Em 2006 a Emenda Constitucional nº 49 flexibilizou a legislação para o uso dos elementos de meia-vida curta de até duas horas, ou seja, radioisótopos que tem sua atividade radioativa reduzida pela metade nesse período. O objetivo era suprir a demanda, já que a curta duração desses radiofármacos aumenta a complexidade de transporte e distribuição. Mais recentemente, em 2022, houve a flexibilização dos radioisótopos de meia-vida longa através da Emenda Constitucional nº 118.

Apesar das mudanças, o diretor da CNEN, Wilson Calvo, relata que os institutos públicos ainda detêm cerca de 85% do mercado de produção de radiofármacos e apenas o IPEN produz esses elementos de longa duração. “Sabemos do interesse do setor privado, pois além de ser estratégico, é um mercado muito atraente. No entanto, ele não é simples, o custo de investimento inicial é alto e os investimentos para obter todas as autorizações é elevado”, diz o diretor.

Desafios para o crescimento do setor de medicina nuclear

Um dos principais desafios enfrentados na área da medicina nuclear é a ampliação do acesso. Conforme a SBMN, são realizados cerca de dois milhões de procedimentos por ano no Brasil que consistem basicamente em exames de imagem e um número muito pequeno de tratamentos. Para atender a demanda, Rafael Lopes acredita que esse número deveria ser no mínimo o dobro.

“Hoje, 6% dos serviços de medicina nuclear são exclusivamente públicos. Mais de 94% são serviços privados e quase a totalidade deles atendem pacientes do SUS. Então a gente tem acesso, mas com limitações, porque os custos são elevados”, comenta. Por exemplo, o exame PET-CT, capaz de detectar tumores em todos os lugares do corpo, custa em média R$2.102, segundo estudo da FGV de 2023.

Além disso, o médico especialista e membro da Associação Nacional de Empresas de Medicina Nuclear (ANAEMN), Marcos Villela, aponta que, fora a falta de produção nacional, questões mercadológicas e logísticas colocam dificuldades de crescimento para o setor. Para o médico, uma delas é a tabela de pagamentos do SUS que não sofre ajustes desde 2009 para procedimentos de medicina nuclear: “Temos uma dependência muito grande do mercado externo, com equipamentos pagos em dólar. Como nós vamos sobreviver a uma tabela de 15 anos atrás? No final quem perde são os pacientes, pois com uma remuneração muito abaixo do mercado, cada vez menos empresas particulares vão atender o SUS.”

Para o médico Álvaro Barroso, também membro da ANAEMN, outro desafio enfrentado na área é o excesso de regulação e taxação. Para ele, isso impede a importação de materiais e equipamentos, visto que a carga tributária pode chegar até 80% em alguns aparelhos médicos. “Desse modo, a compra de aparelhos mais modernos fica inviabilizada. É um contrassenso não conseguir comprar por questões de impostos”, relata Barroso.

Apesar dos desafios, a SBMN acredita que é possível expandir o mercado em até cinco vezes nos próximos dez a quinze anos, mas para isso é preciso que ele se mantenha firme. “Precisamos de mais produtores e fornecedores. As pessoas às vezes não sabem como a área nuclear pode impactar positivamente na vida delas. Sabemos que as técnicas não são baratas, mas elas têm se mostrado efetivas”, afirma Lopes.

O estudo da FGV projeta para 2036 um faturamento de R$536 milhões e a realização de 3,6 milhões de procedimentos no Brasil. Por isso, Barroso atenta que o país não pode cair em um monopólio privado de produção. “Precisamos aumentar o número de players para estimular a concorrência. Algumas empresas já estão começando a atender nosso chamado, mas ainda com preços elevados e quantidades insuficientes”, observa o médico.

Radiofármacos são alvo do mercado internacional

O mercado mundial de medicina nuclear é estimado em mais de nove bilhões de dólares e deve alcançar quase 25 bilhões em 2030, segundo a Spherical Insights & Consulting. Globalmente o setor já se tornou estratégico para o desenvolvimento de medicamentos e está em expansão. Em relação aos radiofármacos, um relatório da Future Market Insights de 2024 aponta que a indústria está em grande crescimento, impulsionada por investimentos substanciais e importantes avanços científicos na oncologia. Até o final do ano, estima-se que o segmento atinja quase sete milhões de dólares e 11,6 milhões até 2034. De acordo com o relatório, devido a alta prevalência de doenças cardiovasculares e câncer, a América do Norte lidera o setor, seguida pelo Reino Unido.

A área tem, de fato, chamado a atenção. A farmacêutica americana Novartis anunciou recentemente um investimento de mais de 200 milhões de dólares na construção de uma nova unidade de fabricação de radiofármacos. A empresa também tem planos para abrir novas unidades de fabricação na China e no Japão. Em março deste ano a AstraZeneca anunciou um acordo para comprar a empresa canadense de medicina nuclear, Fusion Pharmaceuticals, por até 2,4 bilhões de dólares. Isso permitirá à farmacêutica acesso a um radiofármaco inovador para o tratamento de câncer de próstata.

Outras grandes farmacêuticas também disputam o mercado com a compra de empresas radiofarmacêuticas. Em fevereiro deste ano a Bristol Myers Squibb adquiriu um grande player do setor, a empresa RayzeBio, por 4 bilhões de dólares. Além disso, em 2023 a Eli Lilly comprou a empresa americana em estágio clínico Point Biopharma por 1,4 bilhão de dólares.

Rebeca Kroll
Rebeca Kroll

Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

About the Author: Rebeca Kroll

Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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