Maturidade digital da saúde no Brasil ainda está em estágio inicial e varia nos subsetores

Maturidade digital da saúde no Brasil ainda está em estágio inicial e varia nos subsetores

O Brasil viveu uma aceleração digital na área da saúde

By Published On: 20/04/2023
Maturidade digital

O Brasil viveu uma aceleração digital na área da saúde nos últimos anos, em parte por influência da pandemia, que fez com que o setor buscasse absorver inovações e incorporar ferramentas para aumentar eficiência e ampliar o acesso. Mas qual o nível de maturidade digital das empresas de saúde do país em comparação com outras indústrias e regiões do mundo? Em linhas gerais, a maturidade digital é definida pelo nível digital de uma instituição de saúde, considerando a adoção da tecnologia e a preparação para a jornada digital.

De maneira geral, Caio Soares, presidente do Saúde Digital Brasil, avalia que o Brasil vive um estágio inicial, ainda mais considerando que o setor de saúde é mais conservador que outras áreas por causa da própria natureza em lidar com pessoas e dados sensíveis. Para ele, os passos em torno dessa maturidade digital são norteados por quatro pontos centrais:

“Primeiro são as pessoas e a cultura das empresas, pois elas precisam ser desafiadas a participar dessa transformação digital; segundo, a utilização de dados e da tecnologia, pois ainda somos bastante restritivos com relação a isso. Devemos fazer as coisas de modo bastante consciente e seguro, mas precisamos dar passos nesta direção; terceiro, os investimentos a serem feitos nas grandes empresas principalmente para que maturidade digital aconteça, pois vemos iniciativas tímidas nesse aspecto; e quarto, a mudança na jornada e na experiência nos pacientes, pois quando pensamos na jornada de qualquer serviço em saúde hoje, uma parte dela já poderia ser digital, então existe aí um espaço de avanço”.

O tema é recorrente e diversas consultorias se debruçam em tentar desvendar esse cenário. Há alguns anos a McKinsey divulgou um relatório sobre a transformação digital no Brasil considerando todos os setores. Recentemente, duas empresas de consultoria, a L.E.K e a FOLKS, desenvolveram estudos que buscam mapear o índice de maturidade digital das instituições de saúde a partir de metodologias de autoavaliação baseadas em alguns critérios específicos. Os levantamentos apontam que os diversos segmentos que compõem a cadeia de saúde apresentam níveis distintos de maturidade digital, ora por enfrentarem desafios específicos, ora pelas próprias diferenças tecnológicas e socioeconômicas regionais.

Índices de maturidade digital da saúde

A L.E.K Consulting criou o Digital Excellence Framework (Quadro de Excelência Digital, em tradução) ou DEX, um índice de maturidade digital a partir de uma autoavaliação elaborada com a participação de 200 empresas, em 19 países, de 4 subsetores da saúde: serviços de saúde, seguradoras, medtech e farmacêuticas. Os resultados se enquadram em uma escala de maturidade de cinco níveis, de forma crescente: tradicionalista, novato, intermediário, avançado e campeão.

O resultado global da pesquisa indicou as seguradoras como a maturidade digital mais elevada e o segmento de medtech como a mais baixa, tendência que se repete no espectro do América Latina principalmente em relação à infraestrutura e processos das seguradoras. As prestadoras de serviços ocupam o segundo lugar dentre os subsetores mais avançados digitalmente na América Latina.

Rafael Freixo, diretor da L.E.K Consulting, ressalta que é preciso ter uma infraestrutura digital adequada para adquirir maturidade nessa área: “É muito empolgante nós falarmos das coisas novas, como o próprio ChatGPT, mas tem toda uma parte de fundação para que isso possa acontecer de forma eficiente que muitas vezes vai trazer muito mais valor para a empresa do que ter um novo aplicativo para um paciente […] O digital tem todo um panorama que vai além dessas ofertas inovadoras apenas”.

Essa percepção sobre o digital é muito vista na América Latina, o que se reflete nos resultados: “Normalmente o que vemos é que as empresas começam a fazer algo de operação digital, mas não tem ainda um foco claro sobre quais áreas vão trazer um maior retorno, impulsionando tentativas disruptivas sob a ideia de ‘não ficar para trás’. Existe uma percepção de que ‘está todo mundo fazendo inteligência artificial, eu preciso fazer alguma coisa também’, mas é difícil se a empresa não entende de maneira clara seus objetivos com o programa de digital […] O digital é uma ferramenta, no fim da contas. É até estranho falar em estratégia digital, porque não é para ser algo dissociado da empresa, e sim um catalisador da estratégia da empresa”, reflete Freixo.

O diretor traz como exemplo o setor das empresas farmacêuticas: “Um programa de automação da minha relação com meu fornecedor em uma empresa farmacêutica em que eu consiga ter uma visão de estoque da cadeia traz um valor monetário muito maior do que uma ferramenta de gamificação. No entanto, essa ferramenta é mais legal de ser exibida do que a parte de automação de sistemas que é até mais tradicional”.

O relatório também ressalta que os hospitais brasileiros, em específico, avançaram em sistemas críticos, mas ainda não conseguiram integrar os dados de forma ideal. Enquanto isso, as farmacêuticas e medtechs têm uma maturidade digital relativamente baixa em todas as dimensões consideradas. “Com relação às medtechs, nós ouvimos muito sobre inovação em produto, mas a inovação está muito voltada para um sentido apenas. Todo o resto da organização não necessariamente avançou no mesmo patamar”, avalia Freixo.

Mas há avanços, por exemplo, na telessaúde. Caio Soares, do Saúde Digital Brasil, lembra que a tecnologia “já ganha um pouco de maturidade comparado com outras áreas da indústria porque nasceu digital e foi muito demandada e acelerada por conta da pandemia. Isso fez com que, de fato, as empresas que de alguma forma estão ligadas a serviços de telessaúde estejam hoje em um estágio de maturidade um pouco maior do que o restante do setor”.

Um exemplo foi a utilização do sistema de nuvem Amazon AWS no Einstein Conecta pelo Hospital Albert Einstein, apontado pela L.E.K como uma abordagem disruptivas. Trata-se de um sistema de telemedicina voltado para casos de baixa complexidade disponível para atendimento 24 horas por dia. O sistema trouxe maior flexibilidade e aumentou o número de atendimentos por ano de 30.000 em 2018 para 2 milhões em 2020.

Outro exemplo de compromisso com o desenvolvimento digital apontado foi da Eurofarma com seu programa Corporate Venture Capital, que investe em empresas e startups com soluções tecnológicas voltadas para melhorias em diferentes áreas do setor. Em 2019, por exemplo, foi lançado um fundo com R$ 45MM, o Neuron Ventures, que investiu em startups como a Just For You, The Men’s e Ocean Drop. Nesse contexto, a consultoria entende que as empresas da América Latina devem ter estratégias que orientem prioridades de investimento e rotinas de governança dentro de cada subsetor.

A transformação digital nos hospitais brasileiros

No caso da FOLKS, a empresa desenvolveu um mapa de transformação digital dos hospitais brasileiros que apresenta uma escala percentual com quatro níveis de maturidade: tradicional (0 – 25%), evolução (25% – 50%), sofisticação (50% – 75%) e inovação (75% – 100%). Da amostra de 175 hospitais, a média de maturidade digital foi de 44,13%, estágio que indicaria que a instituição já iniciou sua jornada digital, que as lideranças já compreendem a importância disso e que já existem soluções para serviços mais básicos. Contudo, dentro dessa média há picos (85,90%) e vales (15,15%).

Claudio Giulliano, CEO da FOLKS, ressalta que “os hospitais brasileiros estão ainda na fase de evolução, em torno dessa média dos 40%, com diferenças regionais e de natureza jurídica”. Dos hospitais avaliados, 104 estão no Sudeste, 28 no Sul, 22 no Nordeste, 18 no Centro-Oeste e 3 no Norte. Além disso, 10% são de administração pública – incluindo hospitais públicos administrados por organizações sociais privadas, cujo índice foi de 42,32% (evolução) – 54% são entidades privadas que tiveram um índice de 45,16%, e 36% são entidades sem fins lucrativos, com índice de 43,10%. Das instituições avaliadas que prestam serviços ao SUS, o índice foi de 42,27%.

Para Antonio Carlos Endrigo, copresidente do Global Summit Telemedicine and Health, “quanto a parte hospitalar, existe uma evolução muito grande, mas também tem uma defasagem marcante. Há hospitais que estão muito avançados, estão à frente. Contudo, mesmo essas novas tecnologias não conseguem chegar a todos os municípios”.

Dentre outros resultados relevantes, o relatório da FOLKS indicou que 68% das organizações não possuem nenhum programa que desenvolva as pessoas para a aplicação de ferramentas digitais e que apenas 6,29% possuem líderes especializados em saúde digital. Ainda, somente 2,86% responderam que a transformação digital é um elemento chave para a geração de novos negócios. Giulliano traz correlações observadas entre a qualidade dos hospitais e o índice de maturidade digital:

“Nós pensamos ‘será que os hospitais mais bem qualificados, aqueles do Ranking da Newsweek, também tem uma maturidade melhor?’ Daquele ranking, nós temos 10 hospitais na nossa base. Vimos que, de fato, eles têm uma maturidade acima da média do Brasil. São indícios de que os hospitais de excelência considerados em outros rankings também são melhores em termos de maturidade digital […] Ou seja, o fato de ser mais digital traz uma melhoria para o processo e para os indicadores hospitalares. É muito importante explorar isso. […] Outra correlação estatística positiva que levantamos foi que os hospitais que possuem acreditação apresentaram uma maturidade maior”.

Desafios e oportunidades da saúde digital no Brasil

Existem oportunidades e desafios da saúde digital no Brasil. Antonio Carlos Endrigo levanta a questão da equidade, que, para ele, deve ser um dos pontos de prioridade, para que os lugares mais carentes das novas tecnologias se aproximem mais daqueles que estão à frente. Ele ressalta também a inteligência artificial, onde existem ainda questões de regulamentação, responsabilidades e uso adequado.

Além disso, o copresidente do Global Summit acrescenta o desafio da capacitação para a incorporação e uso dessas novas tecnologias: “Temos muito o que evoluir na capacitação. O médico gosta de ser capacitado para as coisas novas. Para essa relação com o paciente pelo digital, ele tem muito o que evoluir. […] Tem muito o que ser mudado nos currículos. Nós temos hoje mais de 300 faculdades, mas não existem dez que tenham um curso de saúde digital”.

Para Claudio Giulliano, da FOLKS, para que a saúde digital avance, ainda existe uma necessidade de se cuidar da base, principalmente de sistemas e processos básicos que ainda não são automatizados, como ciclo da receita, ciclo da medicação e até mesmo o prontuário eletrônico, que ainda é ausente em alguns hospitais. Na sequência, ele compreende que deveria haver um foco em recursos mais avançados, como o apoio à decisão clínica, sugestão de diagnósticos e condutas padronizadas propostas pelo sistema.

Ainda, ele menciona a necessidade de interações digitais com médicos e pacientes, o digital front door, uma vez que é muito comum em muitas instituições não haver uma possibilidade de agendamento online. Segundo Giulliano, o maior desafio provém da falta de dinheiro, porque “falta os executivos conseguirem enxergar de forma tangível que isso é um investimento […] Todos enxergam muito ainda como um custo obrigatório […] não há uma prioridade porque os executivos não conseguem tangibilizar o benefício”.

A visão de Caio Soares, do Saúde Digital Brasil, dialoga com esse aspecto das pessoas. Para ele, se as pessoas e a cultura como um todo são transformadas, os demais passos da jornada de maturidade digital vêm de forma mais natural: “Se quisermos começar, por exemplo, pela jornada, mas as pessoas não tiverem a maturidade digital incorporada no seu dia a dia com políticas de incentivo, aprendizados, habilidades, cultura de governança digital e de inovação dentro das empresas, nós não vamos dar um primeiro passo muito largo ou forte. Acho que um foco nas pessoas e cultura das empresas seria um bom primeiro passo”.

Maurício França, sócio da L.E.K, avalia que todos os setores possuem oportunidades, destacando os negócios que têm interação com o paciente: “Por exemplo, vimos uma empresa de pediatria em que eles tinham uma proximidade muito grande usando aplicativo de celular com as mães. Eles davam informações sobre as crianças, o que poderia ser um problema, possibilitavam que a mãe fizesse uma ligação 2h da manhã quando a criança estava com febre […] tudo muito digital, tudo muito fácil”.

Outro setor de muitas oportunidades é o de seguros, de acordo com Rafael Freixo, da L.E.K: “Temos visto cada vez mais inovações para tentar controlar um pouco dessa jornada de gestão de custo. E tem um desafio de dados muito grande no sentido de conseguir captar o dado do paciente ao longo da jornada e ver qual a melhor forma de tratar esse meu paciente ao longo do tempo, etc. Temos ouvido sobre algumas soluções, mas por enquanto estamos longe. Quando olhamos para seguros, na nossa visão, tem muita coisa para se fazer nesse lado de controle de sinistro, indo muito além da operacionalização de pagamento, sistemas e jornadas”.

O Brasil em relação ao mundo

Caio Soares pontua que, além de países como Estados Unidos e Canadá, com culturas que já promovem uma aceleração no mercado digital, existem outros países que saíram atrás e já passaram o Brasil, como Portugal e Espanha, que são mais conservadores. Ele ressalta que o nível de maturidade é maior na cultura das pessoas, voltada para inovação e governança digital, e que começa a ser trabalhada a questão de dados e tecnologia:

“As discussões nesses países são muito mais maduras nesse aspecto. A questão deles não é se vamos usar o dado mas sim sobre como vamos usar. Aqui nós ainda estamos na fase do ‘se’. Há uma transformação brutal que está vindo com a inteligência artificial que traz já aplicações práticas para o nosso dia a dia, então essas discussões precisam ser aceleradas, senão vamos ser atropelados pela própria utilização prática das pessoas. Vamos perder a chance de fazer o melhor uso possível de todas essas tecnologias já com aplicações na jornada dos pacientes […] Se o paciente tiver uma informação mais qualificada e em tempo hábil e de forma segura, a jornada e a experiência dele vão ser muito impactadas, porque vamos ganhar tempo, que é o ativo o mais valioso que podemos imaginar em qualquer área de negócio”.

Claudio Giulliano, da FOLKS, indica que, ainda que existam ilhas de excelência em alguns países, como na Argentina, por exemplo, o Brasil está à frente na saúde digital em relação a América Latina, em especial na parte hospitalar. Ainda, Endrigo acrescenta que “tudo o que os países mais desenvolvidos têm, nós temos também, só que o problema é que isso fica restrito a uma camada. Novamente, é a questão da falta de equidade”.

Paola Costa

Estudante de Jornalismo da Cásper Líbero e graduada em Relações Internacionais pela UNIFESP. Compõe o time de redação do Futuro da Saúde desde setembro de 2022. Email: paola@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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