Luciana Holtz, presidente do Oncoguia: “O câncer está na fila de espera do Brasil e não é tratado de forma prioritária pelo governo”

Luciana Holtz, presidente do Oncoguia: “O câncer está na fila de espera do Brasil e não é tratado de forma prioritária pelo governo”

No mais recente episódio do Futuro Talks, Luciana Holtz ressaltou o cenário do câncer no Brasil, as barreiras enfrentadas pelos pacientes e a importância da atuação do governo

By Published On: 29/01/2024
Luciana Holtz, em entrevista ao Futuro Talks

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que, até 2025, o Brasil deverá registrar 704 mil novos casos de câncer por ano. Se há muitos anos o diagnóstico da doença era quase uma sentença de morte, hoje o cenário do tratamento oncológico é diferente. Com novos avanços tecnológicos chegando, como medicamentos e terapias, os diagnosticados vivem mais e melhor. Porém a doença ainda não é tratada com prioridade pelo governo, segundo Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia. Ela é a convidada do novo episódio do Futuro Talks.

Durante a entrevista, a especialista em psicologia hospitalar, psico-oncologia e bioética falou sobre as missões da instituição e considerou fundamental que, após o diagnóstico, o paciente entenda o que vai acontecer com ele e receba informação adequada. Esse, aliás, é um dos principais pilares de atuação do Oncoguia, tanto no sentido de levar conhecimento para a sociedade quanto para buscar influenciar políticas públicas por meio do advocacy.

Ela também comentou a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC). Segundo ela, o instrumento será fundamental, mas é preciso acompanhar para garantir que ela seja de fato implementada e não fique apenas no discurso.

Ao longo da conversa, destacou ainda o acesso desigual aos tratamentos, as diferenças da saúde suplementar e da pública e as barreiras enfrentadas pelos pacientes – segundo Holtz, mais de 60% das pessoas com câncer no Brasil são diagnosticadas tardiamente. A fundadora da entidade também comentou o PL das pesquisas clínicas e o combate às fake news.

Confira a entrevista a seguir:

Qual a história do Oncoguia? Como você fundou o Instituto?

Luciana Holtz – Adoro compartilhar isso porque acredito que se conecta muito com as minhas escolhas e decisões profissionais. Diferentemente de muitas organizações internacionais, que servem como grandes referências para o nosso trabalho, as histórias começam muito com essa relação pessoal, seja da experiência própria com câncer ou de um familiar. No meu caso, foi uma escolha profissional. Sou psicóloga, optei por seguir a psicologia, e foi nesse campo que tracei meu percurso na saúde e na doença. Assim, atuei na psicologia hospitalar, dedicando-me a estudar diversas questões relacionadas ao luto, à morte e aos desafios do adoecimento, explorando os significados envolvidos nesse processo do ponto de vista emocional, físico, psicossocial e psicossomático, abordando todos os aspectos que permeiam a psicologia. Cheguei à psico-oncologia através da porta da dor, pois iniciei meu estágio na Clínica da Dor. Nesse contexto, escolhi focar na dor oncológica, que engloba tanto a dor benigna quanto a maligna. Optei por me dedicar à dor oncológica naquele momento e nunca mais saí. Sinceramente, digo que fui completamente envolvida por essa experiência de vivenciar de perto as dores, as dificuldades e as angústias que surgem na vida de um paciente no momento em que ele recebe o diagnóstico de câncer.

A partir desse contexto, você percebeu que tinha uma demanda?

Luciana Holtz – Exato. Acredito que o que se alinha muito ao trabalho do Oncoguia foi o meu desconforto em relação à informação. Sempre defendi com veemência a importância de o paciente compreender, pelo menos minimamente, o que está ocorrendo consigo. Para isso, é crucial ter acesso a informações de qualidade, de modo a se situar e entender o que pode acontecer. Isso permite a preparação e a reorganização da vida do paciente, apresentando aspectos bastante positivos no acesso à informação. O que ocorreu foi que, já como psicóloga em meu consultório, comecei a vivenciar experiências negativas ao atender pacientes com câncer. Lembro-me muito da Dona Rita, que chegou a mim irritada. Ela era uma senhora moderna e ativa, porém, desconfiada em relação à internet. Eu sempre insistia com ela sobre a importância de ler e discutir as informações que buscava sobre sua doença. Um dia, ela chegou brava porque havia conseguido acessar a internet e descoberto que tinha apenas 27% de chance de sobrevida. Indignada com essa informação, compartilhei de sua indignação e comecei a questionar o que realmente constitui uma informação de qualidade. A partir desse momento comecei a estudar mais a fundo. Coincidentemente, durante minha pós-graduação em bioética, aprofundei-me ainda mais nessas questões e mergulhei nos princípios de uma informação de saúde com qualidade. O site Oncoguia nasceu no finalzinho de novembro de 2003.

Além do portal Oncoguia, a instituição atua com advocacy, com pautas que tentam mudar as políticas públicas com esse olhar para o paciente?

Luciana Holtz – Exato. Acredito que entre 2003, quando iniciamos o portal, e 2009, quando nos reunimos, com amigos e profissionais de saúde, incluindo a Sônia, uma paciente de câncer de mama, realmente nos aprofundamos no cenário oncológico. Eu estava liderando uma iniciativa global para o câncer de mama da Susan Coman, o que me permitiu aprender muito com a experiência americana e, ao mesmo tempo, me aproximar das ONGs, das instituições de saúde, dos hospitais e de diversos grupos de pacientes. Compreendi todo esse cenário e, obviamente, mais uma vez, já estava completamente envolvida e apaixonada. Percebi que havia espaço para atuar como uma organização de pacientes profissionais, ampliando nossa atuação para além do que já fazíamos, com um foco significativo na disponibilização de informações de qualidade. Foi nesse momento que decidimos fundar a ONG. Chegamos com o propósito de fortalecer o protagonismo do paciente e entender, a partir das demandas deles, como influenciar a política pública. Nos dedicamos a trabalhar por um cenário oncológico que, atualmente, é nossa bandeira: mais sustentável, mais efetivo e, acima de tudo, mais justo. Acredito que essa seja uma palavra-chave e, ao mesmo tempo, um desafio significativo que enfrentamos hoje.

Vocês escutam muitos pacientes. Há uma dor em comum? Uma demanda não atendida?

Luciana Holtz – Acho que ainda existe uma questão muito forte relacionada ao medo da doença, obviamente. Enquanto sociedade, eu percebo que é muito importante destacar o quanto ainda acredito que o estigma negativo e assustador associado à doença fatal continua sendo o nosso maior inimigo. Isso, enquanto sociedade, é algo que precisamos mudar. Acredito que continuamos enfrentando esse desafio e vejo isso com muita frequência. Enquanto discutimos tantas inovações, falamos sobre um câncer que não é fatal, um câncer que permite uma vida com qualidade, e percebo que isso está restrito ao âmbito oncológico. É só ultrapassarmos esse muro, esse verdadeiro muro do mundo oncológico, que as pessoas do lado de fora ainda pensam que o câncer continua sendo fatal. Portanto, acredito que esse ainda seja o nosso desafio principal: informar a todos que, sim, hoje o câncer é uma doença completamente diferente do que imaginam.

Os pacientes enxergam isso?

Luciana Holtz – Para o paciente, acredito que, a partir do momento em que, obviamente, ele está completamente assustado com o diagnóstico, ele quer ser curado. E se isso não for mais possível, ele busca tempo de vida, qualidade de vida, deseja viver bem para poder, obviamente, realizar projetos, continuar trabalhando, tentando ter uma vida o mais normal possível. Mesmo que nunca seja igual como antes. Mas, ao pensar um pouco nos motivos pelos quais ele nos procura, é interessante porque continua sendo a temática de direitos. E aí estou falando dos famosos benefícios legais. Como o auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e entender melhor essa questão dos impostos. Acho que há um sinalizador importante aí. Porque acredito que isso mostra quanto esse assunto é desconhecido por todos e, a partir do momento que a informação chega, requer uma orientação mais personalizada, que se conecta com o que fazemos hoje em nossa plataforma multicanal. Assim, de forma muito personalizada, tenho uma equipe hoje à disposição do paciente para ligar, enviar uma mensagem, mandar um e-mail, reclamar, desabafar ou compartilhar uma dúvida, ou um problema. Essas são as nossas quatro frentes hoje, todas à disposição de qualquer paciente no Brasil.

E o que você diria para quem está recebendo o diagnóstico de câncer?

Luciana Holtz – Acredito que o paciente precisa ter muita clareza de que o medo faz parte e que esse susto inicial que provavelmente está sentindo neste momento, é esperado. Ele tem o direito de se preocupar, de chorar, se for o caso. Mas vale muito a pena se informar, buscar um oncologista que conheça o tipo de câncer que está enfrentando. Hoje em dia essa informação faz diferença. E, claro, aos poucos, quanto mais souber sobre o que está enfrentando, melhor. O paciente entrará nesse conjunto de informações sobre direitos, tratamento que realizará, se aquele tratamento requer algum tipo de teste molecular ou não. Hoje sabemos muito mais. Para cada fase da jornada de enfrentamento que tanto falamos, há um conjunto de informações que fará muita diferença. E aí buscar realmente se cercar de uma rede de apoio e conhecer o trabalho das ONGs.

“Esse olhar multidisciplinar, quanto mais você puder ser cuidado por todos esses diferentes pontos de vista, melhor será, embora nunca seja fácil. É muito difícil passar por um câncer.”

A pesquisa Percepções e Prioridades do Câncer nas Favelas Brasileiras, divulgada por vocês em 2023, realizado pelo Data Favela, o Instituto Locomotiva, mostrou que 70% dos moradores de favela entrevistados concordam que têm menos acesso à prevenção e diagnóstico precoce sobre o câncer. Como que você vê esse cenário de desigualdade de acesso? O que já mudou?

Luciana Holtz – Acredito que há avanços tecnológicos acontecendo e, dentro dessa nossa conversa sobre como o mundo do câncer mudou, percebemos que hoje estamos curando mais, tratando melhor e oferecendo tratamentos mais efetivos aos pacientes. No entanto, o problema reside em saber se esses avanços estão realmente alcançando quem mais precisa e o que observamos na prática é que não estão chegando. Portanto, a grande desigualdade mais evidente é a discrepância entre a saúde suplementar e o SUS. É uma questão de vida ou morte. Outra desigualdade, mais invisível, está dentro do próprio SUS, como destacamos em um estudo que realizamos há 5 ou 6 anos. Conseguimos iluminar verdadeiramente essa questão, mostrando que dependendo do seu CEP, você terá acesso a um tipo de tratamento diferente em comparação com outro local onde você morasse, devido à forma como os hospitais se financiam no SUS. Se ele consegue um financiamento diferenciado, extra, e não depende apenas do que vem do Ministério da Saúde ou da Secretaria de Saúde, ele pode oferecer mais. Caso contrário, ele oferecerá apenas o mínimo, que está cada vez mais defasado considerando a quantidade de novos tratamentos disponíveis. Esse é o ponto central. Além disso, essas desigualdades também existem na atenção primária e na atenção secundária. Na pesquisa sobre o câncer nas favelas, ouvimos muitas pessoas pedindo médico. O que elas mais querem é cuidar-se melhor, mas precisam que, ao procurarem ajuda, ela esteja disponível. Se decidirem cuidar-se, querem saber se há exames disponíveis. Isso é algo que discutimos muito.

E como falar sobre rastreio sem esse acesso?

Luciana Holtz – O que mais ouvimos é “eu até procuro”. Vimos isso na pesquisa também. “Mas eu chego no postinho, não tem médico”. “Eu chego no postinho, mesmo se eu consigo passar pelo médico e ele pede para eu fazer o exame, eu não consigo fazer o exame”. E o quanto eles pedem para que esses médicos façam exames, para que essa infraestrutura de saúde esteja mais perto. Porque entramos em outra discussão que é esse tempo que se percorre para realizar um determinado procedimento.

Como está essa jornada hoje?

Luciana Holtz – Infelizmente hoje falamos de uma jornada que não é transparente. As pessoas não sabem. Ficam perdidas sem saber qual é o próximo passo. E não há ninguém à disposição, não há um telefone, não há uma listinha sobre o próximo passo. E o que percebemos é que, com muita frequência, até conseguem fazer o exame, mas não recebem o resultado. Ou o resultado vai para algum lugar e essa pessoa não sabe para onde esse resultado foi. Esse resultado precisa ser visto por um especialista. Para ser dado um diagnóstico alterado, é necessário seguir para o próximo passo. Isso também não ocorre muitas vezes. Exames e mais exames ficam lá numa gaveta sem ninguém analisar e dar uma devolutiva para a pessoa. Se o exame deu alterado, é preciso passar pelo especialista, saber se o especialista realmente me examinou e precisa de mais exames, que muitas vezes é a própria biópsia. As barreiras para realizar a biópsia no Brasil são muitas. Vai desde a demora do agendamento, alguns municípios têm cotas para realizar a biópsia e essas cotas acabam rapidinho, além da demora para obter o resultado da biópsia. Tudo isso, obviamente, vai atrapalhando e, assim, o resultado é esse número gigante que temos no Brasil, com mais de 50% dos novos casos já sendo descobertos nas fases avançadas ou metastáticas. Não conseguimos realizar o diagnóstico precoce no Brasil.

Falta mais ação do poder público?

Luciana Holtz – Estamos cansados e ansiosos e até um pouco decepcionados com a falta de ação. Literalmente nada acontece. Mesmo as coisas que comemoramos não têm efetividade. Vamos dar um exemplo. Na lista de medicamentos que foram positivamente recomendados pela Conitec e que até hoje não foram adquiridos pelo Ministério da Saúde, ou que tiveram uma atualização de APAC. Ou seja, para quem não entendeu nada do que acabei de falar, apesar de uma agência dar o aval positivo, o paciente não tem acesso. Portanto, continuamos com muitas pacientes com câncer de mama que convivem com diagnósticos avançados, perdendo a oportunidade de viver anos a mais. E temos outra tecnologia que literalmente pacientes estão perdendo a chance de evitar uma recidiva, perdendo a chance de se curar, porque esse medicamento ainda não foi adquirido. Posso te dizer sinceramente que a sensação que temos é que o câncer está na fila de espera no Brasil. Não é tratado de forma prioritária pelo nosso governo. O que estamos esperando para ser?

“Daqui a muito pouco tempo será a doença que mais vai matar os brasileiros. Já existem cidades em que é a doença que mais causa mortes. O que mais falta para conseguirmos, de fato, que o câncer tenha a atenção que merece?”

A nova política nacional do câncer pode desempenhar esse papel?

Luciana Holtz – A lei é o que nos permitirá não depender apenas de algumas portarias e tem um peso diferente. Estamos falando de uma lei, ela é robusta, envolve muitas questões, muito mais do que estamos discutindo aqui. Mas agora há um esforço importante que precisa acontecer a partir do momento de sua sanção. É necessário insistir para que as regulamentações ocorram, para que as regras sejam estabelecidas e os orçamentos sejam alocados. Não podemos cair novamente na armadilha de ter mais uma lei que não seja efetiva no Brasil.

Pensando em 2024, você acha que o câncer vai ganhar esse olhar prioritário?

Luciana Holtz – Eu queria estar um pouco mais segura para te dizer. Não tenho uma visão otimista. Acho que há uma vontade muito grande, mas estamos aguardando para que realmente alguma mudança aconteça, mesmo que seja pequenininha. A nova política vem com uma complexidade importante. Ela possui uma robustez significativa que quase preocupa. Há muitas coisas ali que precisam acontecer. E hoje estamos sentindo falta de pequenas mudanças começarem a ocorrer. Não vemos nem essas pequenas mudanças acontecendo. Não temos o medicamento para oferecer aos pacientes metastáticos, mas também não estamos tendo um cuidado prioritário para aumentar o rastreamento, melhorar o rastreamento de câncer de colo de útero e erradicar ele no Brasil, aumentar a adesão às mamografias. Começamos a ouvir uma conversa sobre uma possível discussão para uma diretriz para câncer colorretal, que é o segundo mais incidente no Brasil, mas há aspectos importantes que precisam de um olhar mais atento e ação.

E quem precisa fazer isso? Uma vontade política, uma articulação no paralelo entre estados e municípios, com organizações sociais e com o setor privado?

Luciana Holtz – Sempre sabemos que, quando é uma questão federal, ela se aplica a todos. No entanto, essas iniciativas pontuais, esses pilotos, essas experiências, vamos citar, por exemplo, o que ocorreu em Indaiatuba (SP), que foi um piloto relacionado à incorporação do HPV DNA para o colo do útero, foi extremamente importante. Temos outro caso ocorrendo agora em Recife. Há iniciativas em várias cidades desenvolvendo estratégias, por exemplo, com aplicativos para rastreamento de melanoma. Uma discussão significativa ocorreu recentemente com três sociedades médicas em torno de um consenso para começarmos a discutir o rastreamento de câncer de pulmão no Brasil. Não tenho dúvida. Acredito que temos uma sociedade ativa se articulando, trabalhando para demonstrar a relevância do tema.

Sobre o PL das pesquisas clínicas, há uma expectativa, principalmente por parte da indústria farmacêutica, mas também de outros setores da sociedade, de que aumente a velocidade dessas pesquisas e tire a burocracia da segurança jurídica. Qual é a visão do paciente dentro desse cenário? Porque também temos desinformação nesse contexto.

Luciana Holtz – Nossa, muita desinformação. Temos setores antagônicos trabalhando de forma muito contrária ao projeto de lei. Vou falar agora até como uma experiência pessoal minha. Eu já fui monitora de pesquisa clínica. Já fui membro de comitê de ética e coordenadora de centro de pesquisa clínica. Literalmente já acompanhei de muito pertinho, de diferentes lugares, o quão importante é a pesquisa clínica. Defendo muito que esse projeto de lei caminhe. Claro, respeitando todas as regras que precisam ser respeitadas. Temos uma questão regulatória no Brasil, obviamente, com nosso sistema CEP/Conep, que olha para o participante da pesquisa clínica com muito cuidado. Óbvio que isso precisa ser respeitado. Mas não podemos mais continuar perdendo a oportunidade de participar de tantos estudos clínicos como perdemos hoje. E perdemos porque demora. Infelizmente, depois de contar para você tudo que sabemos hoje dos desafios da oncologia, pesquisa clínica é acesso. As pessoas não gostam desse termo, mas essa é a realidade. É a oportunidade, muitas vezes, de um paciente conseguir tomar um medicamento que ele não vai ter a possibilidade de tomar no SUS. E não tem nada de errado. Ele está absurdamente cuidado, monitorado e está contribuindo com a ciência. Tomara que esse PL caminhe, que todas as vozes ali, todas as vontades e preocupações sejam respeitadas da melhor maneira possível. Que todo mundo consiga conversar. Porque o que não dá é para seguir do jeito que está.

Vimos muitas fake news de Covid, mas está muito presente dentro do cenário do câncer. O quanto isso está dentro do radar do Oncoguia para conseguir realmente capacitar as pessoas para que elas não caiam mais nisso?

Luciana Holtz – Acho que hoje enfrentamos a falta de informação e enfrentamos a informação ruim. A falta de informação não tem muito jeito. Precisamos, obviamente, continuar mantendo o melhor portal. Continuar compartilhando muita informação nas redes sociais. Utilizando diferentes formatos. Temos o texto, mas também temos o carrossel, os reels, o podcast, a TV Oncoguia no YouTube. O que podemos diversificar na forma como explicamos um conteúdo e contamos uma história. O que significa chegar até a outra pessoa tocando, mas permitindo que ela compreenda minimamente o que está acontecendo em sua vida. Acho que esse é um ponto central. E temos o mundo das fake news. Esse desafio constante de histórias mentirosas em torno de tratamentos milagrosos, chás, sucos e pílulas. E todos os nossos kits.

É preciso trabalhar muito para capacitar o público?

Luciana Holtz – E desmentir. E não é fácil explicar para uma sociedade que não é alfabetizada nas questões de saúde, principalmente nessa linguagem que se conecta com a informação baseada em evidência. O que é essa evidência? Do que estamos falando? Porque aí você vai entrar em estudo clínico, começa a olhar com muito mais atenção para essa questão de porcentagem, relevância, onde foi publicado, onde não foi publicado. Não é fácil explicar tudo isso. Tentamos mostrar que tudo o que defendemos tem que ter essa conexão e essa comprovação.

No futuro o paciente vai ser ainda mais protagonista, participando realmente de todo o processo da saúde dele e não só da doença. Como você vê esse cenário?

Luciana Holtz – Eu acredito nisso. Sou uma defensora. E, inclusive, temos projetos para permitir que o paciente assuma esse lugar. São as nossas capacitações de paciente que acontecem todo ano. Encerramos o ano de 2023 com quase 120 pacientes voluntários que passaram o ano aprendendo, literalmente, a serem mais protagonistas, a entenderem o que é uma informação de qualidade, a compreenderem todo esse processo de participação social, mesmo como controle social. Isso já fazemos no nosso dia a dia. A única coisa que acho central no meu trabalho e no seu trabalho é que, para ele entrar nesse mundo, precisa virar uma chavinha. E não é todo mundo que vira. Eu defendo que não tem certo ou errado. Tenho muitas conversas em casa com minha mãe e com meu pai. É uma geração completamente diferente da nossa. E, para eles, é muito estranho. Eu falo: “pai, você tem que fazer todas as perguntas”.

Ele não quer fazer.

Luciana Holtz – “O que vou perguntar? O que tenho que fazer? Posso perguntar qualquer coisa? Ele vai responder qualquer coisa”. Vejo muito ali o que chamamos de uma relação mais paternalista entre o médico – detentor do conhecimento – e o paciente, pronto para fazer o que ele mandar. Vamos caminhar para uma relação que acreditamos cada vez mais, que é de parceria. O médico sempre saberá mais do que nós, mas, sim, posso me informar e sei de mim. Sei as minhas vontades, as minhas prioridades, o que vou tolerar e o que não vou tolerar. E nem isso algumas pessoas se permitem compartilhar. E é muito ganha-ganha essa nova relação. Fica menos pesado para o médico. O paciente divide e assume o seu lugar também. Vejo que, para isso, precisamos obviamente de um paciente mais antenado, aberto, disponível para receber toda essa nova informação e assumir esse novo lugar. Mas precisamos de um novo médico também.

Os oncologistas estão preparados para isso? Temos mudanças acontecendo, a tecnologia, a inteligência artificial e novos tratamentos. O paciente compartilhando informações.

Luciana Holtz – Já ouvi de tudo. Tem médico que adora, tem médico que se incomoda muito. Ele fala que o paciente está dando mais trabalho, já que às vezes ele vê uma bobagem e chega insistindo nisso, e o médico precisa explicar para ele que não faz sentido. Eu falo que parece ser esse o seu papel, né? Mas também há oncologistas parceiros e que estão muito próximos do nosso trabalho, que usam e abusam até de indicar o Oncoguia no seu dia a dia para os seus pacientes como ferramenta de apoio para toda a jornada e para todo o tratamento que vem pela frente. Eles estimulam também o paciente a entender que existe uma causa, que ele pode se envolver com as ONGs, que ele pode, sim, ser um porta-voz, que o paciente pode também ter seu próprio canal nas redes sociais para se comunicar, compartilhar as suas prioridades, seus aprendizados e também ser um veículo que transforma e que pode ajudar muito em todo esse nosso mundo do câncer. Temos as duas coisas aí.

Como você vê esse futuro do advocacy?

Luciana Holtz – Acho que, cada vez mais, o advocacy, em prol de um coletivo, requer conhecimento, estratégia e know-how mesmo. Para você conseguir propor uma mudança, você precisa conhecer muito bem o problema ao qual está inserido. Acho que todas essas vozes podem contribuir. O paciente, ao ter esse envolvimento, fazendo um automonitoramento e entendendo também tudo o que está acontecendo, só contribui. Acho que essa situação fica ainda mais fortalecida.

O quanto aqui no Brasil estamos entendendo esse movimento e tendo isso de uma forma mais organizada?

Luciana Holtz – Acho que tem muita coisa acontecendo e às vezes as coisas não acontecem sincronicamente. Às vezes, isso pode ser um movimento até não tão positivo para a causa. Obviamente, quanto mais pudermos, todo mundo empurrar na mesma direção, para o mesmo caminho, melhor é para a causa. O objetivo é comum para todo mundo. Essa capacitação dos pacientes, entendermos todos os atores envolvidos, se todo mundo está falando a mesma língua. Eu já vivi situações, por exemplo, de participar de uma aprovação, de uma discussão de alguma tecnologia na Conitec, onde a voz técnica de uma sociedade médica, a voz técnica de um médico ali defendendo aquela tecnologia, somada à experiência de um paciente, foi incrível e deu certo.

“Acho que essa soma entre a experiência técnica e a experiência de vida, precisamos valorizar cada vez mais e ver de que forma conseguimos, juntos, mudar mesmo os desafios.”

E você sente que Brasília, pensando no legislativo, até no executivo também, está mais preparado para pensar em oncologia?

Luciana Holtz – Eu acho que assim, um pequeno time, sim. Onde é o desafio? Quando a gente troca todo mundo. Ter que do zero criar relacionamento, treinar, levar todas as demandas de novo. Temos uma história acontecendo ali, pelo menos no Congresso Nacional. Temos uma comissão do câncer que ficou, que está acontecendo de maneira permanente, com os líderes também atuando de forma fixa. Hoje contamos muito com a deputada Silvia, o deputado Weliton, deputado Frederico. Temos lideranças muito engajadas no mundo do câncer que já entenderam todas essas dores. Que já falam muito bem sobre todos os problemas, lideraram toda essa discussão em torno do projeto de lei. Isso facilita muito. Mas, por exemplo, se formos olhar para o executivo, temos uma turma muito nova que entrou. Temos o Fernando Maia super à disposição, solícito e envolvido. Mas agora está completando 7, 8 meses de quando ele entrou nesse mundão da oncologia. Estamos ansiosos e querendo muito ver as mudanças, mas talvez tenha um pouco mesmo ainda de tempo para irem se adequando.

Quais pautas devemos ficar de olho tanto em 2024?

Luciana Holtz – A gente vai ter que ficar de olho nessa política nacional, sem dúvida nenhuma. Eu acho que tem um ponto importante que é essa discussão em torno de saúde digital, que está também na agenda do Ministério. E vamos ter que seguir com essa questão mesmo de educação do paciente, de fortalecer, de ter uma atuação mais em parceria, usar mais a colaboração, porque a causa merece. Temos um compromisso muito grande para seguir garantindo que todo o paciente com câncer possa passar por tudo isso de uma maneira menos dolorida. Porque além de todo o impacto da doença, hoje temos um sistema de saúde que não está minimamente preparado para amenizar toda essa dor.

Natalia Cuminale

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, com as reportagens, na newsletter, com uma curadoria semanal, e nas nossas redes sociais, com conteúdos no YouTube.

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  • Isabelle Manzini

    Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

  • Rebeca Kroll
    Rebeca Kroll

    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

  • Luciana Holtz
    Luciana Holtz

    Luciana Holtz é psicóloga, especialista em psico-oncologia e bioética. Fundadora e presidente do Instituto Oncoguia, ONG voltada para educação, apoio e defesa dos direitos de pacientes com câncer. Ativista na área, já coordenou iniciativas globais de conscientização, integra comitês internacionais e foi reconhecida como empreendedora social da Ashoka. Seu trabalho busca ampliar o acesso à informação confiável e garantir que o câncer seja tratado como prioridade no Brasil.

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