Setor cobra Ministério da Saúde para regulamentar a lei das pesquisas clínicas
Setor cobra Ministério da Saúde para regulamentar a lei das pesquisas clínicas
Sancionada há oito meses, lei das pesquisas clínicas segue sem regulamentação do Executivo. Congresso também não analisou vetos.
A aprovação da lei das pesquisas clínicas, em maio de 2024, foi celebrada pelo setor farmacêutico e organizações que produzem estudos clínicos como um grande passo para trazer mais segurança jurídica e alinhar as regras do Brasil ao cenário mundial. A expectativa é que o país possa saltar de 20º para 10º no ranking das nações que mais recebem pesquisas. Contudo, a falta de regulamentação tem sido um dos entraves para esse avanço.
Cerca de oito meses após a sanção presidencial, o Ministério da Saúde ainda não publicou decretos e portarias que regulamentam a lei. São 31 referências a regulamentação previstas no texto, sendo quatro delas no escopo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de acordo com levantamento da equipe de Life Science e Saúde do Machado Meyer Advogados.
Uma das principais é a criação da Instância Nacional de Ética em Pesquisa, órgão responsável por editar normas regulamentadoras na área, assim como credenciar, acreditar, acompanhar e fiscalizar os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), responsáveis por aprovar os protocolos dos estudos propostos.
O setor também aguarda a análise do Congresso Nacional aos vetos presidenciais, em especial ao artigo que limitava o fornecimento de medicamentos pós-estudo em cinco anos, a partir da disponibilidade comercial no Brasil. O prazo para a avaliação dos parlamentares já expirou, podendo travar as pautas das casas legislativas.
Contudo, a perspectiva do setor é positiva. Mesmo sem ter uma data para as publicações do Ministério da Saúde e uma definição sobre os vetos, indústrias e centros de pesquisas aguardam que os temas tenham andamento em breve. Procurado, o Ministério da Saúde não se pronunciou sobre o tema.
“Temos que mostrar para o Executivo que a regulamentação é fundamental, gera empregos e desonera o Sistema Único de Saúde (SUS). Falamos de 50 mil pacientes que vão se tornar participantes de pesquisa. O governo precisa entender que isso é uma vitória que ele tem em mãos”, afirma Fernando de Rezende Francisco, gerente executivo da Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abracro).
Regulamentação da lei da pesquisa clínica
Apesar de sancionada em maio de 2024, a lei 14.874/2024 entrou em vigor 90 dias após a sua publicação no Diário Oficial da União, em agosto. Foi designado ao Poder Executivo regulamentar diversos trechos da portaria, que necessitam mais detalhamento e informações de como irão funcionar na prática.
“Há uma necessidade de regulamentar a disponibilização de informações sobre pesquisa, que deverá estar em site público como o ClinicalTrials.gov, dos Estados Unidos. Tem que regulamentar padrões operacionais e boas práticas de pesquisa, biobancos e repositórios, grupos especiais, procedimentos para suspender ou extinguir determinados CEPs, as regras de monitoramento, o cadastro nacional de voluntários para estudos de bioequivalência, entre outros”, explica Renata Rothbarth, partner de Life Sciences, Digital Health & Healthcare da Machado Meyer Advogados.
Com isso, a lei não está sendo cumprida na sua plenitude, o que provoca insegurança jurídica e confusão para o setor. Parte dela, que não necessita da regulamentação, é praticada. A outra parte, que precisa ser regulamentada pelo Ministério da Saúde, segue em aberto.
Entre os principais pontos está a regulamentação da Instância Nacional de Ética em Pesquisa. Atualmente, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), ligada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), é a maior instância no país, que realiza a coordenação dos CEPs e a dupla aprovação dos protocolos clínicos de estudos. Com a lei, a aprovação será única, através dos CEPs. Ainda não há informações sobre se a Conep será transformado automaticamente no novo órgão.
“De acordo com as instruções iniciais da própria Conep, deveríamos seguir com o que tinha de arcabouço antes da lei para esperar a regulamentação. Só que do ponto de vista jurídico a lei já está em vigor. Alguns pontos dela, que precisam ser regulamentados, ainda não estão. Essa conversa tomou muito tempo do setor”, observa Francisco.
Segundo informações obtidas pela Abracro, o Ministério da Saúde já realizou a parte técnica da regulamentação. O texto seguiu para a área jurídica e deve passar em seguida para a Casa Civil, seguindo o rito convencional até a publicação. Enquanto isso, o representante da Abracro explica que a pasta não deve falar sobre o assunto.
Para a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), empresas multinacionais associadas aguardam a regulamentação para trazer novas pesquisas para o país, com impacto esperado pelo setor. Estimativas da entidade apontam para um investimento anual de R$ 5 bilhões no Brasil. “ Isso vai ocorrer à medida em que essa regulamentação aconteça, que esse grau de segurança regulatório e legal esteja apresentado. Todos os dias novas empresas lançam estudos. Naturalmente teremos um ambiente adequado para que essa pesquisa seja internalizada no país”, defende Renato Porto, presidente executivo da Interfarma.
Veto da lei das pesquisas clínicas
Da mesma forma, a análise dos vetos feitos pelo presidente Lula (PT) aguarda apreciação do Congresso, sem uma data prevista para sua realização. Nos bastidores, deputados ligados ao setor apontam que há intenção de derrubar o principal deles, que diz respeito ao fornecimento de medicamentos pós-estudo.
Um dos pontos centrais da lei pleiteado pela indústria farmacêutica durante as discussões para aprovação do texto final era sobre estabelecer um limite de 5 anos para que empresas fossem responsáveis pela continuidade do tratamento a pacientes que participaram da pesquisa. Segundo o setor, isso seria inviabilizado pela falta de previsibilidade sobre os custos da operação no país.
“Atualmente, é assegurado a todos os participantes, no final do estudo, por parte do patrocinador, acesso gratuito e por tempo indeterminado a métodos profiláticos, diagnósticos e terapêuticos que se demonstraram eficazes. A interrupção da oferta do medicamento no período pós-estudo fere os direitos dos participantes de pesquisa e compromete o eventual desenvolvimento de pesquisas éticas baseadas em princípios de dignidade, da beneficência e da justiça”, justificou a Presidência da República em seu veto.
No entanto, a lei sancionada afirma que o programa de fornecimento pós-estudo deverá assegurar a continuidade do acompanhamento de segurança do participante, de forma a garantir o recebimento do tratamento experimental após o término do ensaio clínico, por “prazo determinado”. Para a Abracro, também é preciso definir e regulamentar esse trecho.
“Nós brigávamos pela lei, para minimizar as incertezas no Brasil, tirando a dupla análise ética, colocando prazos bem definidos, uma série de coisas. Mas a falta de regulamentação cria um ambiente de incertezas. Esse período de transição é como se tivéssemos dado um passo para trás, porque há muita dúvida sobre o que seguir”, afirma o presidente da Associação.
“O Brasil leva em torno de três a cinco anos para que um medicamento chegue ao país, seja no sistema público, seja no sistema privado. Esse seria o tempo natural para as empresas arcassem com essa responsabilidade de fornecimento pós-estudo. O veto aumenta em muito os custos da execução de um estudo clínico”, avalia Porto, da Interfarma.
Para os entrevistados, o clima político e as discussões do segundo semestre no Congresso, como a regulamentação da reforma tributária, atrasaram a análise dos vetos em geral. O tema pode voltar com a retomada dos trabalhos em 2025 do Senado e da Câmara dos Deputados.
Anvisa e outras regulamentações da pesquisa clínica
No Brasil, a Anvisa é responsável pela aprovação tanto dos estudos clínicos como do posterior registro das medicações e, em novembro de 2024, a agência atualizou seu marco regulatório, indo na direção da lei. Algumas novidades apresentadas pelo órgão foram a possibilidade de antecipar a importação dos medicamentos em investigação enquanto o dossiê está em análise, regulamentação do uso da submissão contínua, introdução de definições mais precisas para categorias de risco, fases dos estudos e requisitos técnicos, além da harmonização com normas internacionais.
“Foi um reflexo, porque no fim do dia já havia uma demanda há bastante tempo por parte do setor de rever as normas sobre pesquisa clínica com medicamentos no Brasil. Essa revisão já considera alguns dispositivos que estão na lei. A Anvisa tem uma intenção de avançar na avaliação dos processos que envolvem a submissão de documentos que passam por ela”, observa Renata Rothbarth, da Machado Meyer Advogados.
De acordo com o presidente da Interfarma, as novas regras da Anvisa já estão sendo aplicadas pelo setor. Elas passaram por participação social, através de consulta pública, e seguiram os trâmites previstos. No entanto, sem a regulamentação, Porto explica que falta segurança suficiente.
“O ambiente de saúde no país está muito atrasado. O Ministério já poderia ter feito a regulamentação para que tenhamos condições de concorrer, de dizer para o mundo que pesquisa clínica no Brasil está mais harmonizada internacionalmente. Assim como dizer que as pesquisas clínicas poderão vir para cá com um grau de segurança”, aponta.
Recentemente, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma nova resolução para regulamentar o uso ético de bancos de dados em pesquisas científicas envolvendo seres humanos. Apesar de a publicação ter ocorrido em janeiro de 2025, a aprovação aconteceu na 350ª Reunião Ordinária do CNS, entre janeiro e fevereiro de 2024, um ano antes. Os especialistas questionam a validade da resolução, já que a nova lei não confere esse dever ao CNS.
“As normas eram discutidas no âmbito do CNS, que não é uma instância nem fiscalizadora e nem normatizadora. Por isso, tudo que passa pelo CNS tem que ser aprovado pelo Ministério da Saúde. Agora, a lei resolve de forma bastante clara essa questão da competência, cria-se a Instância Nacional de Ética em Pesquisa”, elucida Rothbarth.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.