Pessoas com obesidade enfrentam desafios como estigma, despreparo de médicos e falta de acesso a tratamentos em sua jornada de saúde
Pessoas com obesidade enfrentam desafios como estigma, despreparo de médicos e falta de acesso a tratamentos em sua jornada de saúde
Jornada de saúde de pessoas com obesidade é repleta de barreiras que dificultam as possibilidades de um tratamento realmente efetivo a longo prazo
A obesidade é uma doença crônica não transmissível (DCNT) com índices preocupantes. Até 2035, 4 em cada 10 adultos (41%) no Brasil podem ter a condição, segundo o Atlas Mundial da Obesidade. As pessoas com obesidade, porém, têm sua jornada de saúde comprometida por questões como o próprio estigma da sociedade e o despreparo de médicos e outros profissionais da saúde, além da falta de acesso a novos medicamentos.
A solução para esse problema seria a correção de rota dos sistemas de saúde, tanto no âmbito suplementar quanto no público, para oferecer um atendimento com mais infraestrutura para esses pacientes. Segundo Leonardo Correia, gerente nacional de acesso ao mercado da Novo Nordisk, na saúde suplementar, por exemplo, o paciente costuma ficar solto na rede e precisa ter a iniciativa, por conta própria, de buscar especialistas e frequentar consultórios diversos em busca de ajuda, desperdiçando recursos e tempo para o tratamento. E, na saúde pública, por mais que tenha acesso à atenção primária mais direcionada, acaba lidando com um ambiente que reforça a ideia de que o cuidado passa apenas por alimentação saudável e exercícios físicos, além da fatídica força de vontade.
“O Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para a obesidade, no qual o SUS se baseia, fala apenas de mudanças comportamentais, está muito atrasado. E no caso das operadoras de saúde, o acompanhamento mais próximo, via de regra, não existe e não é interessante a elas por conta do turnover – termo emprestado do idioma inglês, que se refere à mudança recorrente de pessoas em determinada organização ou função – muito alto no setor. A média de rotatividade de um paciente em planos de saúde é de dois anos e meio. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) faz campanhas de prevenção, mas o engajamento dos planos é muito baixo. As operadoras escolhem focar suas atenções nos desfechos de curto prazo e, no caso da obesidade, a intervenção oferecida é a cirurgia bariátrica. Uma solução interessante, seria uma visão mais abrangente para uma assistência em toda a rede, beneficiando o setor como um todo”, diz.
Nos últimos cinco anos, para se ter ideia, foram realizadas 311.850 mil cirurgias bariátricas no Brasil. Dessas, 252.929 foram feitas por meio dos planos de saúde. O problema, na opinião de Correia, é que geralmente há um hiato entre o diagnóstico e a intervenção cirúrgica, que faz com que essa solução nem sempre seja efetiva.
“Cerca de 20% dos pacientes que fazem a bariátrica têm reganho de peso e muitos acabam fazendo uma nova cirurgia depois de um tempo. Um estudo retrospectivo, financiado pela Novo Nordisk, comprovou um gasto para os planos de saúde de aproximadamente R$ 50 mil, considerando uma jornada de 3 anos antes e 3 anos após a intervenção cirúrgica. Mas com o reganho de peso, esse custo, consequentemente, pode dobrar. E isso acontece porque nem sempre há um acompanhamento efetivo e porque não são oferecidas outras soluções a esses pacientes, considerando caso a caso, porque a cobertura obrigatória do rol da ANS é baseada em uma visão hospitalocêntrica, que não inclui tratamentos medicamentosos domiciliares, o que considero uma visão ultrapassada, se analisarmos os avanços recentes da ciência”.
Foco na jornada e não na intervenção
Essa visão menos focada na intervenção cirúrgica e mais no acompanhamento da jornada, que inclui prevenção e medicação, tem o potencial de evitar o agravamento do problema – afinal, o aumento significativo de taxas de obesidade está ligado diretamente à sobrevida e qualidade de vida dos pacientes. Além de ser associada a mais de 200 comorbidades, estimativas apontam que o aumento do Índice de Massa Corpórea (IMC) reduz a expectativa de vida de forma progressiva: pessoas com IMC considerado normal, entre 18,5 e 24,9, têm 80% de chance de chegar aos 70 anos. Com a taxa subindo para 35, a probabilidade diminui para 60% e aqueles que contam com um IMC acima de 40, perdem mais 10% de chance de chegar a essa idade.
Thais Ushikusa, ginecologista e gerente médica da área de obesidade da Novo Nordisk, lembra que, hoje, existe um amplo portfólio de produtos no mercado que trazem bons resultados e de forma segura, acarretando mais qualidade de vida e provável redução de custos. “Agora, já é possível preencher as lacunas do tratamento com medicamentos, mas ainda falta o acesso que é um dos maiores desafios a ser enfrentado”.
O caminho para resolver esta questão é longo, mas o cenário tem atraído cada vez mais a atenção de gestores públicos e da própria sociedade, que começou a falar mais sobre a doença até como consequência da pandemia, que demonstrou o agravo da infecção em pessoas com essa condição. A boa notícia, segundo Correia, é que, no Brasil, há centros de referência e estados que estão olhando para a questão da obesidade e criando suas próprias soluções:
“Como não há indícios de que novos medicamentos sejam incorporados em âmbito federal em um futuro próximo, uma das soluções é trabalhar com ambientes descentralizados. Um bom exemplo disso é o estado de Goiás, que já publicou um protocolo próprio para o tratamento da obesidade com oferta de medicamentos para um perfil específico de pacientes, e que inclui uma abordagem multidisciplinar. Alguns centros de referência, em São Paulo e no Rio de Janeiro, também já contam com medicamentos e outros locais estão interessados em fazer o mesmo. Não é, certamente, abrangente como deveria ser, por meio do Ministério da Saúde, mas é um começo e um meio de fazer mudanças. O ideal é que, com o tempo, essas soluções cheguem aos mais diversos perfis de pacientes”.
O que leva pessoas com obesidade aos consultórios
Mas por mais que as consequências da obesidade ganhem notoriedade, nem todos os pacientes chegam ao consultório médico cientes de sua doença. Ushikusa relata que, além daqueles que já buscam um médico especializado, como endocrinologista ou nutrólogo, há também quem vá ao consultório médico por outros problemas, sintomas ou demandas e, só então, se depara com o apontamento dessa questão.
“Quem chega já buscando a redução do peso está no que chamamos de final da jornada, é um paciente que passou, provavelmente, por diversos médicos, tentou receitas caseiras, dietas, academia e entendeu que não consegue resolver esse problema sozinho. Há aqueles que nem pensam na obesidade como doença e que vão entender isso na consulta médica. E há também aqueles que até sabem que a obesidade é uma doença, mas já desistiram da jornada, porque tentaram emagrecer diversas vezes, e não tiveram o acolhimento que necessitavam e, consequentemente, não tiveram sucesso. Todos eles, geralmente, carregam muita culpa e, não raramente, acreditam que sua condição não é passível de ajuda, e que emagrecer é sua responsabilidade e de mais ninguém”, afirma.
A ideia de que a responsabilidade da obesidade é do paciente, de acordo com Andrea Levy, psicóloga especialista em obesidade e co-fundadora do Instituto Obesidade Brasil, ainda tem muito a ver com o estigma que esses pacientes enfrentam e que, infelizmente, muito comumente é encontrado também no ambiente de saúde.
“É comum receber nos consultórios pessoas que chegam se desculpando, prestando contas por sua obesidade, dizendo que não têm controle e que não conseguem parar de comer. Ao escutar esse discurso, é preciso quebrar essa barreira, validar que aquela é uma pessoa disposta só pelo simples fato de estar pedindo ajuda e explicar que a obesidade é uma doença e que precisa ser tratada como todas as outras. Nenhum médico manda uma pessoa com diabetes para casa sem tratamento e fala ‘você precisa parar de comer doce, tenha força de vontade’. E o mais interessante é que quando o paciente com obesidade entende isso, ele assusta, porque não está acostumado a ser validado”, comenta.
Na visão de Levy, essa reação deixa claro um fator que deveria ser a prioridade no combate à obesidade: os médicos precisam estar preparados para lidar com esses pacientes, sejam eles especialistas no tema ou não. “O profissional pode não querer se especializar em pessoas com obesidade, mas tem que saber pelo menos receber, acolher e encaminhar, principalmente porque quando o paciente é muito frequentemente julgado pela sua própria doença, ele desiste de buscar ajuda, de acreditar nos tratamentos possíveis e sente vergonha e medo de sua condição”.
Todas as especialidades médicas devem dar atenção à obesidade
Toda consulta médica é uma oportunidade de dar início – ou ao menos encaminhar o paciente – a um tratamento para a obesidade, segundo Ushikusa. No caso dos ginecologistas, esse papel se faz ainda mais importante: “Primeiro porque a maior parte das pessoas com obesidade são as mulheres e segundo porque o ginecologista faz parte da rotina de cuidados em saúde feminina. É uma especialidade médica com a qual existe uma proximidade e uma confiança. No caso dos homens, a porta de entrada pode ser uma consulta com um urologista ou cardiologista. O importante é que essa jornada comece o mais breve possível”.
Segundo a especialista, a perda de 5% do peso de uma pessoa com obesidade já significa melhoras em parâmetros como diabetes e colesterol alto. Quando a perda é mais acentuada, de 10%, é possível reverter quadros como o pré-diabetes e até a hipertensão. Se a redução for de 15%, há uma redução também do índice de mortalidade.
“Quando um paciente faz avanços na luta contra a obesidade, todo mundo ganha. Há estudos que apontam que ao reduzir o IMC médio da população em apenas 1%, já se chega a uma redução de 72 mil casos de doenças cardíacas e AVC, por exemplo. É uma conta que pode parecer difícil de fazer, porque ela não é direta, mas se traduz em um significativo impacto econômico. E essas mudanças podem começar em uma consulta rotineira ou quando a pessoa procura um ortopedista porque está com dor no joelho ou qualquer outro sintoma que pode ou não ser relacionado à obesidade em si, mas que pode servir de ponte para o início de um tratamento”.
Apesar do desconforto de ter o peso abordado em consultas diversas, a maioria dos pacientes (68%) gostaria que o seu médico iniciasse a conversa sobre o tema e apenas 3% dizem se sentir ofendido quando isso acontece. Para que essa abordagem seja bem sucedida, porém, de acordo com Levy, é preciso investir em acolhimento. “Se o profissional mostrar que entende do que está falando, se souber escutar o paciente e propor caminhos adequados e sem julgamento, a adesão será muito maior, esse paciente vai voltar e vai confiar naquele profissional. Por outro lado, se a conduta for desrespeitosa, como ainda acontece muito, o paciente vai se retrair e fica reticente de buscar até outros profissionais, o que pode acarretar danos ainda maiores”.
As consequências da inação ou da ação inadequada, como reforça Ushikusa, é o aumento da obesidade, como tem acontecido até agora. “Qualquer gráfico que você pegar, em qualquer período de tempo, há um aumento da obesidade na população. Então, se as coisas continuarem como estão, não chegaremos a outros resultados. Todos os tipos de abordagem feitos até agora não deram certo. Chegou a hora de mudar a forma de enxergar e tratar a obesidade. Só assim será possível acertar a rota e trazer melhorias significativas para os pacientes e para o sistema de saúde como um todo”, conclui.
Este conteúdo faz parte de uma série de reportagens sobre desafios e tendências das doenças crônicas não transmissíveis produzida em conjunto com a Novo Nordisk. Para acessar os demais, acesse a página especial.
BR23NNG00257
Recebar nossa Newsletter
NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.