Jogos de aposta se tornam tema central na saúde pública e governo começa a avaliar impactos

Jogos de aposta se tornam tema central na saúde pública e governo começa a avaliar impactos

Grupo de trabalho interministerial do governo vem discutindo o tema devido ao impacto econômico e mental na população

By Published On: 09/10/2024
Jogos de aposta se tornam tema central na saúde pública e governo começa a avaliar impactos

Foto: Freepik

Os jogos de aposta, conhecidos como bets, têm sido alvo de discussões. Desde sua liberação no Brasil em 2018, sem regulamentação adequada, as apostas esportivas online atraíram um número crescente de adeptos, resultando em impactos negativos nas famílias e comprometendo o bem-estar da sociedade. Conforme um relatório da XP Investimentos, o setor de apostas deve movimentar entre R$ 90 e 130 bilhões em 2024. 

O tema ganhou destaque em Brasília, abrindo diálogo entre diversas pastas do governo. Estudos apontam que o aumento dos gastos com jogos está gerando endividamento e afetando setores como o consumo e a poupança. Especialistas alertam ainda que o sistema de saúde pública não está preparado para lidar com a crescente demanda por serviços de apoio psicológico, à medida que as consequências da dependência em jogos se agravam. Em coletiva recente, a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, reconheceu a falta de um plano estruturado, mas destacou que a prioridade será reforçar as campanhas de conscientização e o fortalecimento das equipes de saúde da família. 

A discussão sobre o mercado de apostas online ganhou destaque também no Supremo Tribunal Federal (STF), onde o ministro Luiz Fux agendou uma audiência pública para 11 de novembro. O objetivo da iniciativa é reunir informações sobre os impactos das apostas na saúde mental da população e nas finanças do país. Associações empresariais e industriais alertam para as consequências negativas dessas atividades no consumo de bens e serviços, especialmente no comércio varejista, enfatizando o risco de um aumento na inadimplência.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que, em parceria com os Ministérios da Fazenda e do Desenvolvimento Social, integra um Grupo de Trabalho interministerial focado na elaboração de políticas públicas para prevenir e tratar a dependência em jogos patológicos. “Entre as medidas adotadas diante do cenário desafiador referente aos jogos e consequente crescimento da dependência, destacam-se a qualificação e atualização dos profissionais que atuam na assistência e ações de promoção e prevenção”, informa a nota.

Ainda segundo o Ministério da Saúde, desde o início de 2023, foram habilitados mais 117 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), totalizando 2.953 unidades em 2024, das quais 314 são dedicadas exclusivamente ao atendimento de crianças, adolescentes e jovens. A pasta compartilhou ainda que os números de atendimentos ambulatoriais relacionados a jogos patológicos mostram um aumento significativo: em 2022, foram realizados 841 atendimentos, enquanto em 2023 esse número subiu para 1.290. Até julho de 2024, já foram registrados 2.406 atendimentos.

No entanto, a qualificação dos profissionais é uma demanda destacada pelos especialistas. Segundo a psicóloga Mirella Mariani, mestre em neuropsicologia e supervisora do ambulatório do Jogo PRO-AMJO do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP, os profissionais que atuam nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) não estão adequadamente preparados para acolher aqueles que buscam ajuda. “Os profissionais que atuam no tratamento, por exemplo, de álcool e drogas, têm uma parte da formação. Eles não têm a formação específica para o tratamento contra o jogo. Então, para tratar essas pessoas, elas precisam ter uma formação específica”, salienta.

De acordo com ela, mesmo com a disponibilidade de recursos nas unidades de atendimento, persiste uma escassez de profissionais qualificados para prestar os serviços, o que gera preocupação, pois as pessoas afetadas exigirão cuidados especializados.

Jogos de aposta e o debate na saúde pública

Embora o tema tenha recebido considerável atenção da mídia brasileira só recentemente, as apostas esportivas têm experimentado um crescimento acelerado a nível internacional nos últimos cinco anos. Países como Reino Unido, França, Portugal, Espanha, Itália, Canadá e Estados Unidos – onde a prática foi legalizada em 2018 – já adotaram regulamentações para o mercado de apostas esportivas, buscando promover um ambiente mais seguro e legal para essa atividade. 

Uma pesquisa do Itaú revelou que, entre junho de 2023 e junho deste ano, os brasileiros perderam R$ 23,9 bilhões em apostas esportivas, com um impacto significativo sobre a população de baixa renda. O estudo aponta que, nesse período, o total movimentado pelo mercado de apostas no Brasil foi de aproximadamente R$ 68,2 bilhões. Nesse contexto, as apostas começaram a representar uma parcela crescente da renda familiar. Além disso, um levantamento da Strategy & Brasil indica que a porcentagem do orçamento das famílias das classes D e E destinada a apostas aumentou de 0,27% em 2018 para 1,98% atualmente, quase quadruplicando em apenas cinco anos.

Uma das ideias para enfrentar a questão é a formação de uma comissão nacional composta por diversos profissionais, incluindo representantes de organizações como jogadores anônimos e outras que atuam no setor de apostas esportivas. Essa medida garantiria uma abordagem mais abrangente e informada sobre a problemática em questão. “É preciso trazer mais a voz de especialistas para debater possíveis soluções para conseguir lidar com a questão do jogo. Estamos sentindo um pouco de falta da prestação de tantos especialistas na área para serem consultivos na audiência de novembro”, afirma o psiquiatra Vinicius Oliveira de Andrade, professor do Ambulatório de Transtornos do Impulso-IPq-FMUSP.

A psicóloga Mirella Mariani destaca a necessidade de que as pesquisas sobre o tema incluam amostras representativas da diversidade da população brasileira, em vez de se limitarem a grupos específicos, pois essa abordagem é importante para entender o alcance e o impacto das apostas no país. Ela também enfatiza que os tratamentos devem ser desenvolvidos com base na realidade cultural e social do Brasil, evitando a mera reprodução de modelos de outros países que podem não se adequar ao contexto local. “Eu não vou conseguir fazer um tratamento que seja adaptado da população de Reino Unido, por exemplo, porque é outra realidade, outra cultura e condição social”, diz.

Ainda de acordo com os especialistas, os pacientes com alta impulsividade podem transitar entre diferentes comportamentos compulsivos. Por exemplo, uma pessoa que para de jogar pode começar a consumir mais álcool ou desenvolver novas compulsões, como compras excessivas ou distúrbios alimentares. Essa dinâmica reforça a importância de os profissionais de saúde monitorarem e abordarem essas questões para evitar a troca de uma dependência por outra.

Tratamento para o jogo patológico

A prevalência do transtorno do jogo é de aproximadamente 1% da população, e o problema já é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas a popularização das apostas esportivas online trouxe um novo perfil de jogadores. Apesar da confusão sobre a legalidade desses sites, a procura por tratamento aumentou, especialmente entre indivíduos com predisposição genética. Com mais de 3 mil sites de apostas esportivas, muitos dos quais ilegais ou não regulamentados, as pessoas se veem envolvidas nesse universo sem clara distinção entre o que é legal ou não. “As pessoas nem sabem se os sites são legais ou regulamentados. Existe uma dificuldade de nomenclatura, principalmente porque a população que faz uso desse tipo de aposta é das classes D e E”, explica Mirella Mariani.

O transtorno do jogo foi classificado como uma “dependência” a partir das mudanças no DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o que significa que ele é tratado de maneira similar a dependências de substâncias. Ou seja, o tratamento adota uma abordagem multidisciplinar, englobando intervenções medicamentosas, terapia cognitivo-comportamental, terapia familiar e grupos de apoio, como “Jogadores Anônimos” e “Gaming Addicts Anônimos”, que estão se expandindo no Brasil.

Mariani esclarece que não há diferença significativa no tratamento para pessoas com dependência de apostas esportivas, pôquer, bingo ou outros jogos. O fator determinante é a perda de controle sobre o ato de apostar, com ênfase em tratar o comportamento de dependência, independentemente do tipo de jogo. “Essas pessoas vão demandar um atendimento que é muito especializado e é muito difícil de fazer, porque exige cuidados que são específicos. É diferente tratar uma pessoa que tem depressão de uma pessoa com transtorno dos jogos”, explica.

Ela atua no Programa Ambulatorial do Jogo do Instituto de Psiquiatria da USP, uma divisão do Hospital das Clínicas que oferece tratamento gratuito para pessoas que enfrentam o “Transtorno do Jogo”, incluindo a dependência em apostas e sites de “bets” online. Fundado em 1996, o programa foi pioneiro no Brasil, atendendo até hoje 6 mil pacientes registrados no ambulatório, com cerca de 200 indivíduos atualmente em tratamento, todos maiores de 18 anos.

Segundo Mirella, indivíduos com predisposição para comportamentos compulsivos, como jogadores de pôquer ou frequentadores de bingo, encontraram na tecnologia uma maneira mais fácil e conveniente de perpetuar seus hábitos. O uso de celulares e da internet não apenas facilita, mas também intensifica essa prática, ampliando o acesso àqueles que já possuem essa tendência, embora não crie a dependência do zero. Nesse contexto, três fatores principais são destacados como gatilhos para o desenvolvimento do transtorno do jogo: a predisposição genética relacionada a familiares com histórico de dependência (como substâncias, cigarro ou compras compulsivas), a experiência de um grande ganho que pode incentivar a repetição do comportamento e a prática recorrente de jogar, especialmente após um ganho significativo, que eleva o risco de dependência.

No Programa Ambulatorial do Jogo do Instituto de Psiquiatria da USP o tratamento para jogadores patológicos inclui 20 sessões de psicoterapia, seguidas por um processo de manutenção. Durante esse período, os pacientes são monitorados e avaliados com base em escalas específicas que analisam seu comportamento de jogo. Aqueles que enfrentam dificuldades persistentes têm a opção de integrar grupos de apoio para recaídos, onde recebem suporte adicional. “80% dos pacientes que entram em psicoterapia se tornam abstinentes do comportamento de jogo. Isso sugere a eficácia do tratamento oferecido. Também houve uma observação de que a faixa etária dos apostadores diminuiu, com uma média de 35 anos”, explica. Ainda conforme a profissional, o perfil continua a ser predominantemente masculino, e essa mudança pode refletir o aumento da acessibilidade e popularidade das apostas esportivas entre os jovens.

Para o psiquiatra Vinicius, o Brasil, devido à sua vastidão continental, enfrenta desafios significativos em termos de infraestrutura e da disponibilidade de profissionais qualificados para tratar o transtorno do jogo, o que limita o acesso ao tratamento. Ele ressalta que a facilidade de acesso ao jogo por meio de celulares, em comparação com modalidades tradicionais como o bingo, amplifica esse problema. “Essa situação pode se agravar nos próximos anos, com base nas experiências de outros países que já enfrentaram esse desafio”, afirma.

Ações para avançar sobre o tema

O reconhecimento do impacto financeiro do jogo patológico na saúde pública está mobilizando o governo, que deve promover cada vez mais audiências e discussões em Brasília sobre o assunto. Pesquisas com consumidores revelam que os brasileiros estão desviando recursos de gastos regulares e do mercado de consumo para apostas. Um levantamento realizado em maio pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo indica que 63% dos entrevistados tiveram parte de sua renda comprometida pelas apostas, com 23% relatando que deixaram de comprar roupas, 19% de fazer compras em supermercados e 11% de pagar contas.

O Programa de Transtornos do Impulso do IPq (Instituto de Psiquiatria do HC) conta com um ambulatório específico para o atendimento de jogadores patológicos. Em 2023, foram registrados 160 pacientes, dos quais 66 continuam em tratamento e 94 estão em espera. Para 2024, 115 novas pessoas se inscreveram para triagem, elevando o total para 209 pacientes aguardando atendimento. Devido ao aumento da demanda desde 2023, as triagens para novos casos estão suspensas por tempo indeterminado, esclareceu a assessoria em nota.

O Ministério da Saúde informou em nota que o Guia para o Uso Consciente de Telas e Dispositivos Digitais por Crianças e Adolescentes, coordenado pela Secretaria de Políticas Digitais do Governo Federal, está em fase final de validação. O documento resulta do trabalho conjunto de sete ministérios e 19 representantes da sociedade civil, academia e entidades especializadas. O objetivo do guia é orientar familiares, educadores e cuidadores sobre os riscos associados ao uso excessivo de telas e subsidiar políticas públicas nas áreas de saúde, educação e proteção à infância.

A psicóloga Milena destaca que a promoção da prevenção deve ser uma prioridade, enfatizando a necessidade de regulamentações mais rigorosas para a publicidade de apostas, a fim de evitar que atletas e figuras públicas incentivem comportamentos de jogo irresponsáveis. “Essas estratégias de marketing pelo CONAR já existem, só que elas não são aplicadas. Tudo que o CONAR preconiza como situação impeditiva para a propaganda para a aposta esportiva, não é cobrado”, diz.

Angélica Weise

Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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