Inteligência artificial: mais saúde real
Inteligência artificial: mais saúde real
Para os médicos, a inteligência artificial é uma poderosa aliada de sua prática assistencial e otimização de rotinas. Para os sistemas de saúde, uma ferramenta importantíssima para superar desafios e promover a equidade
Quando Steven Spielberg lançou em 2001 o blockbuster “A.I. – Inteligência Artificial”, dando forma a um antigo projeto de Stanley Kubrick, ficamos entre encantados e espantados com a história em que humanos conviviam com androides, compartilhando razão e sensibilidade. À época, parte da força do filme provinha do fato de sabermos que a tecnologia que sustentava aquele mundo ficcional tinha faces que bem poderiam tornar-se realidade. Visível ou invisível, o fato é que desde então a inteligência artificial (IA) está cada vez mais presente em nossas vidas, inclusive na área da saúde. Mas neste setor, assim como acontece em outros, é marcada por encantamentos e também por temores, debates e certo espanto.
O tema da vez é a inteligência artificial generativa, que segundo alguns vai nos deixar menos aptos. Será? Lembro que quando era adolescente ganhei uma calculadora de última geração e, na época, muitos defendiam não deixar estudantes usar essa tecnologia, pois perderiam a capacidade de raciocinar e fazer contas. Depois surgiram os celulares e, com eles, supostas novas ameaças, como a de que suas listas de contatos desestimulariam nossa memória. Até hoje lembro números de telefones e endereços de 30 ou 40 anos atrás. Mas será que os jovens da atualidade, que não sabem nenhum telefone ou endereço de cor (e também só fazem contas com a calculadora embutida no celular), são menos inteligentes? Ao contrário. São mais inteligentes, questionadores e desafiadores.
O meu convívio com estudantes da Faculdade de Medicina do Einstein me mostrou isso de maneira explícita e às vezes me pegando de surpresa. Um exemplo que não esqueço aconteceu quando eu estava dando aula sobre cirurgia de câncer de cólon para a turma do 2º semestre. Um aluno não teve dúvidas em comentar que, na sua visão, parecia pouco conveniente o processo de grampeamento adotado para juntar os dois segmentos de cólon, com uma parte do dispositivo que é inserida pelo ânus e se encaixa em outra chamada ogiva, inserida no outro segmento do cólon através da abertura no abdômen. Ele observou que, já que havia a passagem de 1 centímetro da laparoscopia, o certo seria ter algo em miniatura que, ao entrar por ela, faria o mesmo papel, dispensando o acesso pelo ânus. Expliquei que o modelo de grampeador era utilizado há décadas e que não tínhamos nenhuma outra solução do tipo que ele sugeria que pudesse ser usada com segurança. Mas afirmei que era uma ótima ideia e emendei: “Espero que você invente isso até o final do curso”.
Novas tecnologias sempre vêm acompanhadas de resistências à sua adoção. E não é diferente o que temos observado com a IA generativa. No que diz respeito aos médicos, eu repito o refrão: a tecnologia não vai substituir o profissional, mas aqueles que não abraçarem a tecnologia serão substituídos pelos colegas que o fazem. Da simplificação de rotinas ao apoio à decisão, a IA faz coisas que seriam impossíveis ao ser humano.
Feitos inimagináveis há poucos anos já estão materializados e fazem parte do dia a dia. No Einstein, por exemplo, desde 2018, um sistema monitora em tempo real sinais vitais e outros indicadores dos pacientes internados e avisa quando algum parâmetro sai do padrão de normalidade. Só para dar uma ideia, um paciente na UTI gera cerca de 21 mil dados por hora. A partir de algoritmos, a IA pode extrair inteligência deles em prol do cuidado do paciente. Um médico jamais teria capacidade de fazer isso, ainda que ficasse full time ao lado do paciente. Outro exemplo: no Cerner Millenium, nosso sistema de prontuário eletrônico e gestão de dados dos pacientes, temos há anos uma solução de IA que, a partir das informações disponíveis, entrega para o médico hipóteses diagnósticas do seu paciente.
Imaginação não tem limites com a inteligência artificial (IA)
IA anda de mãos dadas com big data e, tendo grandes volumes de dados, a imaginação não tem limites. Suponha que tenhamos bancos de dados do setor público de saúde estruturados e conversando entre si. Em um atendimento na atenção primária, a IA poderia definir planos de consultas/acompanhamento periódico para cada paciente, levando em conta sua condição de saúde e risco para desenvolver determinada doença ou sofrer um agravamento da atual. Isso significaria melhoria da saúde da população e melhor gestão dos recursos, com mais prevenção e controle das enfermidades e menos quadros evoluindo para tratamentos mais urgentes, complexos e custosos.
Horizontes amplos se abrem com a IA generativa, inclusive com projetos desenvolvidos no Brasil que podem ganhar o mundo. Para um deles, o Einstein recebeu apoio da Fundação Bill e Melinda Gates para realizá-lo. Trata-se do projeto SAMPa (Smart Assistant for Monitoring Prenatal health care with Large Language Models), um sistema de IA para melhorar o atendimento de mulheres que fazem o acompanhamento pré-natal em regiões do Amazonas carentes de especialistas em Ginecologia e Obstetrícia. O sistema “escuta” informações e queixas relatadas pelas pacientes durante as consultas e, por meio de inteligência artificial generativa, que utiliza Modelos de Linguagem Grandes (Large Language Models-LLM), elabora sugestões de perguntas para ajudar o médico não especialista que está conduzindo a consulta a aprimorar sua avaliação e conduta, portanto, a qualidade e eficiência do atendimento. Atualmente, a ferramenta está sendo aplicada em contexto de pesquisa, e as descobertas do projeto contribuirão para a construção de uma base de evidências para testar LLM que possam preencher lacunas no acesso e promover a equidade em saúde – aqui no Brasil e em qualquer lugar do mundo.
É verdade que não devemos ter preconceitos em relação às novas tecnologias, porque não faz qualquer sentido fechar os olhos para o imenso potencial que elas oferecem. No entanto, igualmente verdade é que precisamos ter evidências científicas de que elas funcionam e não irão causar qualquer prejuízo aos pacientes. Isso só se consegue com pesquisas como essa que citei como exemplo.
Não tenho certeza de que um dia teremos androides com sentimentos como no filme “A.I. – Inteligência Artificial”. Mas sei que a inteligência humana conta com imaginação e propriedades generativas capazes de usar cada vez mais esses recursos para gerar um mundo da saúde que hoje ainda é ficção: um mundo da saúde com cuidados de qualidade, amplo acesso, equânime e sustentável.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.