Inovação na cardiologia: da molécula à IA
Inovação na cardiologia: da molécula à IA
Congresso Europeu de Cardiologia (ESC) trouxe novidades importantes para insuficiência cardíaca e debates sobre inteligência artificial e saúde digital
Congressos mundiais de especialidades como a cardiologia costumam mobilizar milhares de médicos para acompanhar de perto as grandes inovações da ciência. Ao longo da minha carreira, já cobri como jornalista mais de uma dezena deles (de várias áreas, da psiquiatra à oncologia) e pude ver de perto algumas tendências surgindo, breakthroughs sendo apresentados e a ciência sendo feita ali, aplaudida, contemplada e comemorada por milhares de médicos e pesquisadores que deixam os seus jalecos no país de origem para produzir e ecoar as novas evidências. Não foi diferente desta vez no Congresso Europeu de Cardiologia, o ESC, que aconteceu em Londres poucas semanas atrás.
São tantas salas, palestras e discussões simultâneas que para um jornalista é desafiador escolher qual cobrir e não sentir o famoso FOMO (fear of missing out). Passei rapidamente por mesas que discutiam a mudança de protocolos, os medicamentos para a obesidade, o impacto das mudanças ambientais para a saúde cardiovascular… mas concentrei boa parte do tempo no palco de saúde digital. Sim, havia um palco de Digital Health com uma programação completa e complexa com palestrantes de várias partes do mundo trazendo seus insights e experiências acerca do potencial da tecnologia para a cardiologia, dos wearables à inteligência artificial.
David Dunker, do Hannover Heart Center, por exemplo, questionou a trajetória da sobrecarga dos profissionais de saúde, enfatizando que “os médicos estão cansados e sobrecarregados e não conseguem ter empatia, então delegamos para as enfermeiras. Agora as enfermeiras estão cansadas e sobrecarregadas, então delegamos para os robôs. Será que essa é a solução?”.
A IA já está incorporada no dia a dia clínico, como exemplificado no case da Mayo Clinic, que utiliza IA para prever riscos em pacientes, mencionou Dunker. É fato que não estão todos completamente confortáveis com a adoção tecnológica e há sempre o embate sobre tratar os pacientes baseados em números. Tyna Baykaner, de Stanford, questionou: “Se os números estão certos, por que não? Se for para decisões pontuais e estratégicas, como quem vai ser monitorado ou não, eu já ficaria feliz”.
Emma Svenberg, do Instituto Karolinska, destacou que os wearables têm potencial e ganhado acurácia, mas não o suficiente ainda para o diagnóstico de fibrilação atrial. Ela disse ainda que os profissionais de saúde devem liderar a adoção da saúde digital, em vez de simplesmente seguir as empresas de tecnologia – uma provocação válida, diante da rápida evolução dos serviços e da busca por adaptação.
Chiara Bucciarelli-Ducci, do Hospital Royal Brompton and Harefield, no Reino Unido, defendeu que a IA poderia ajudar a melhorar o screening cardiovascular nas mulheres, a partir da identificação do risco, superando o viés diagnóstico, além da personalização e melhor compreensão dos sintomas. Enquanto Demilade Adedinsewo, da Mayo Clinic, lembrou que as tecnologias digitais podem ser usadas para melhorar a saúde um para aumentar as disparidades daqueles que não têm acesso.
Outro ponto crucial foi o papel da perspectiva do paciente no desenvolvimento de aplicativos para garantir a adesão, como apontado e a necessidade de maior foco na health literacy digital. Embora não haja consenso e todas as evoluções estão sendo vistas ao vivo, na prática e estudadas enquanto isso, é inegável o otimismo quanto ao potencial para a saúde – o que foi muito bem traduzido por David Dunker: um futuro em que os algoritmos de IA substituirão completamente métodos tradicionais como o ECG, assim como o Google Maps substituiu os mapas em papel. “Todos nós vamos confiar nesses algoritmos num futuro próximo”, concluiu.
A inovação “raiz” na cardiologia
Ainda que o palco de saúde digital tivesse debates interessantes e perguntas curiosas, o público majoritário certamente está focado nos grandes anúncios que têm o potencial de mudar a prática clínica e trazer impacto real e comprovado aos seus pacientes. No domingo, terceiro dia de congresso, a multidão de cardiologistas chegou cedo para guardar o lugar a maior sala do centro de convenções ExCel, em Londres, onde seria apresentado o resultado do FINEARTS-HF.
A expectativa dos cardiologistas de várias partes do mundo era saber dos resultados do estudo avaliou a finerenona em 6 mil pacientes com insuficiência cardíaca e fração de ejeção levemente reduzida ou preservada — uma condição que ocorre quando o coração não relaxa o suficiente entre os batimentos, dificultando o bombeamento adequado de sangue, apesar de sua força de contração parecer normal.
“Esse é um momento importante”, disse José Francisco Kerr Saraiva, médico, pesquisador e professor titular de Cardiologia da PUC Campinas, responsável pela participação brasileira no estudo. Os resultados mostraram que o medicamento reduziu hospitalizações e mortalidade por insuficiência cardíaca em 16%. É o primeiro e único antagonista do receptor de mineralocorticoide (ARM) não esteroidal a atingir um desfecho cardiovascular composto primário em um estudo de Fase III.
A introdução da finerenona pode sinalizar o início de uma nova era no tratamento da insuficiência cardíaca. Atualmente, a condição é tratada principalmente com diuréticos e inibidores de SGLT2, mas as opções eram limitadas para pacientes com fração de ejeção preservada. Scott Solomon, professor de Medicina da Universidade de Harvard e autor do estudo, reforçou que o FINEARTS-HF oferece a primeira evidência concreta de que uma nova classe de medicamentos pode ser eficaz nesse grupo de pacientes, que antes tinham opções mais restritas. “Nossos achados apontam para a finerenona como um novo segundo pilar de tratamento para esses pacientes.”
A poucos passos da plenária, logo na primeira fileira, estava o cientista alemão Peter Kolkholf, responsável pelo desenvolvimento da molécula 25 anos atrás. “Hoje, aqui, neste congresso, temos o verdadeiro ‘momento Eureka’,” disse ele. “Quando você vê os primeiros testes, é apenas um número, algo esperado. Faz parte do meu trabalho. Não há histeria. Mas o que estamos vendo agora é o verdadeiro impacto no mundo real”, contou, logo após a apresentação dos resultados.
Insuficiência Cardíaca: uma condição crescente e subdiagnosticada
A insuficiência cardíaca é uma condição que atinge mais de 60 milhões de pessoas no mundo todo. No Brasil, estima-se que entre 2% e 4% da população viva com a condição, muitas vezes sem sequer um diagnóstico. E o cenário é pior para aqueles com insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada (HFpEF), uma condição em que o coração não consegue relaxar adequadamente entre os batimentos, apesar de sua força de bombeamento parecer normal.
De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Cardiologia, a insuficiência cardíaca é uma das principais causas de internação hospitalar no país, especialmente entre os idosos. Além de sobrecarregar o sistema de saúde, essa condição frequentemente passa despercebida nos estágios iniciais, levando os pacientes a uma busca interminável por diagnóstico, com visitas a consultórios de diversas especialidades. Nessa condição específica, sintomas como falta de ar e fadiga são muitas vezes atribuídos a outras condições, como o envelhecimento ou o excesso de peso.
O estudo
No total, 6.001 pacientes foram randomizados de mais de 650 centros em 37 países. A idade média era de 72 anos e 46% eram mulheres. A fração de ejeção do ventrículo esquerdo (LVEF) média era de 53%. Ao longo de uma média de 32 meses, a finerenona reduziu significativamente o desfecho primário, com 1.083 eventos no grupo finerenona e 1.283 eventos no grupo placebo, o que representa uma redução de aproximadamente 16%.
Os resultados do estudo, apresentados durante o Congresso Europeu de Cardiologia e publicados simultaneamente no periódico New England Journal of Medicine, deverão mudar os protocolos de cardiologia para os pacientes com insuficiência cardíaca de fração de ejeção preservada em breve. A Bayer, que está desenvolvendo a molécula, anunciou posteriormente que os dados mostraram ainda que os pacientes com insuficiência cardíaca e uma fração de ejeção ventricular esquerda maior ou igual que 40% tiveram um risco reduzido em 24% de desenvolver diabetes, em comparação com o placebo.
Embora o medicamento já esteja disponível no Brasil para o tratamento de doença renal crônica em pacientes com diabetes, sua aprovação para a insuficiência cardíaca com fração preservada precisará passar por processos regulatórios adicionais, como a avaliação da Conitec na esfera pública e da ANS, na saúde suplementar. “Depois da atualização dos protocolos, vamos ter que passar por todo processo de submissão para uma nova indicação para chegar aos pacientes do SUS”, explica a professora Lídia Zytynski, da PUC Paraná.
*A jornalista viajou a convite da Bayer.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.