Indústria farmacêutica nacional vê oportunidade e mira mercado OTC
Indústria farmacêutica nacional vê oportunidade e mira mercado OTC
Com aquisições e lançamento de marcas próprias, indústria foca no mercado OTC com produtos de higiene, alimentação, autocuidado e saúde.
Com o mercado de prescrição e genéricos estabelecido, tendo sido o carro-chefe nos últimos 20 anos, a indústria farmacêutica brasileira tem buscado ampliar seu portfólio de produtos e viu no mercado OTC (over the counter ou “sobre o balcão”) uma oportunidade de expansão. Através de lançamentos de marcas próprias e aquisições de empresas do setor – e aproveitando o know-how químico e a experiência com pontos de venda em farmácias – há um movimento de ampliação de seus negócios para além de medicamentos, avançando em higiene, vitaminas, alimentação e beleza.
“Dados de 2023 mostram que o mercado de OTC movimenta 46,1 bilhões de reais, com um crescimento de 12% em relação ao ano anterior. A expectativa é que esse mercado chegue até 130 bilhões em 2026. Somente os medicamentos isentos de prescrição representam 16,4 bilhões, com potencial para atingir, em 2032, cerca de 35,5 bilhões”, analisa Fátima Pinho, sócia de Life Sciences & Health Care da Deloitte.
Apesar de algumas empresas já atuarem nesse mercado há anos, foi a partir da pandemia de Covid-19 que houve uma intensificação na estratégia da indústria para ampliar o segmento e aumentar o marketshare. Isso porque o período pandêmico mudou o perfil do consumidor, que busca por mais autocuidado, bem-estar e saúde. Pesquisa da consultoria Kantar divulgada em julho aponta que a cesta de produtos OTC, em especial medicamentos isentos de prescrição, estão presentes em 75% dos domicílios brasileiros. Os compradores mais assíduos, que representam 49% desse mercado, têm o ticket 15% maior que a média dos consumidores e realizam compras 3 vezes mais.
Empresas brasileiras como EMS e Eurofarma, tradicionalmente focadas em medicamentos, fizeram movimentos recentes nesse sentido. Em 2022, a Eurofarma adquiriu os ativos do Laboratório Canonne, passando a ser dona da marca de pastilhas Valda, além de lançar uma marca própria de higiene e cuidado pessoal. Já a EMS adquiriu em julho a Vitamine-se, startup de vitaminas personalizadas com receita prevista de 50 milhões de reais em 2024.
“Hoje, o cuidado com doenças consome 89% dos gastos de saúde globais. Cuidados de saúde são apenas 11%. Nossa estimativa é que em 2030 o cuidado com saúde chegue a 20% do share, e o cuidado com doenças reduza para 80%. É por isso que as farmacêuticas focam muito em medicamentos, mas ao mesmo tempo estão aumentando os gastos com saúde”, explica Bruno Porto, sócio e líder do setor de saúde da PwC Brasil.
Mercado OTC
Assim como na medicina, existe um movimento no mercado farmacêutico de não olhar apenas para o tratamento de doenças, mas investir em produtos para bem-estar e prevenção. Isso tem sido visto como resultado de uma demanda da população após a pandemia de Covid-19. “Nos Estados Unidos, para cada um dólar gasto em OTC se poupa sete do sistema de saúde americano, de acordo com a Health Care Product Association. Se uma pessoa está com dor, febre ou em algum processo alérgico, toma uma medicação e melhora, evita de ir ao médico e gerar exames. Esse é um mercado que ajuda a diminuir essa utilização posterior”, analisa Fátima Pinho, da Deloitte.
Além de medicamentos isentos de prescrição, produtos de higiene, suplementos, alimentos, autocuidado e beleza estão no escopo das indústrias farmacêuticas que buscam uma fatia desse mercado. A relação com os principais pontos de venda, as farmácias, facilita com que elas ofereçam esses produtos aos consumidores.
No entanto, na análise de Bruno Porto, da PwC, elas devem seguir dentro das suas especialidades. “A indústria farmacêutica continua focando no medicamento revolucionário porque as pessoas vão continuar tendo doenças em algum momento da vida, mas a indústria nacional não é um grande farol das grandes inovações. Ela está logo na sequência. Genérico e desenvolvimento de moléculas próprias têm sido objeto dela, não vai haver essa migração”, explica.
Em relação aos produtos OTC, Porto explica que a indústria farmacêutica passou a ter uma análise sobre o consumidor, como já ocorria no mercado de varejo. Isso tem permitido entender melhor a demanda e comportamento, para trazer produtos que se tornem atrativos à população.
A flexibilidade da regulação também é vista como um ponto de oportunidade, já que para a pesquisa, desenvolvimento e venda de medicamentos, há critérios de segurança e eficácia que devem ser seguidos de forma rígida. Produtos OTC não medicamentosos possuem regras mais brandas em geral. “Lá fora, em muitos países você consegue encontrar OTC no mercado, incluindo medicamentos. No Brasil ainda não tem essa possibilidade, mas não tenho dúvidas que existam planos comerciais sendo executados pelas empresas para pensar como conseguir deixar cada vez mais disponíveis os produtos, principalmente os ligados a questões de saúde”, afirma Fátima.
Aquisições e mercado brasileiro
Diante desse cenário, o mercado de aquisições segue quente neste setor, com oportunidades no Brasil e no mundo, já que grandes multinacionais farmacêuticas têm optado por seguir um caminho focado no P&D de tratamentos complexos. Também existem pequenas empresas que ganharam espaço ao longo dos anos, mas que podem se desfazer de ativos. “A Haleon possui 5,9% de market share mundial. Tem outras empresas importantes também. Globalmente esse movimento é mais aquecido que no Brasil, que ganhou força recentemente. Tem bastante espaço de crescimento com possibilidade de colaboração, pensando em mecanismos de produção e distribuição”, aponta a sócia da Deloitte.
A EMS é um dos exemplos que tem focado em aquisições para ampliar seu mercado OTC, que atualmente representa 15% da receita da farmacêutica. Nos últimos 2 anos, a proprietária das marcas Dermacyd, Multigrip, Bálsamo Bengué e Caladryl intensificou o trabalho para ampliar o market share e a força do segmento dentro da empresa, com foco em mulheres e longevidade.
“A aquisição da Vitamine-se traz coisas interessantes para a EMS e para o consumidor. Traz a possibilidade para competir em um dos maiores mercados de OTC no Brasil e expertise de um case de startup focada em vitaminas. Ela oferece o produto ao consumidor através do benefício, não a concentração. O consumidor entende uma linguagem que não é a da indústria”, explica Cínthia Ribeiro, diretora comercial e de marketing das unidades de negócios de marcas e OTC da farmacêutica.
Segundo ela, vitaminas estão entre os 5 maiores mercados de produtos OTC no Brasil. No entanto, aponta que para ampliar o acesso da população, empresas reduziram a qualidade e concentração dos produtos, o que muitas vezes deixa de trazer benefícios à saúde da população. Por isso, a EMS também busca ter um papel de educar o consumidor desse mercado, trazendo informações sobre produtos e formas de uso.
“O varejo nos diz que as gôndolas não são elásticas para tudo, mas há espaço para produtos que agreguem valor para o consumidor. E para isso, depende de discutir com o consumidor o que ele precisa e como ele vê a saúde daqui pra frente. Hoje nosso debate para crescer, dentro das marcas que já temos, é acompanhar a tendência e longevidade do consumidor”, observa Ribeiro.
Os produtos OTC da empresa possuem grande penetração nas farmácias pelo Brasil. Dos mais de 90 mil estabelecimentos no país, Bálsamo Bengué está em 70 mil deles, enquanto Multigrip está presente em 60 mil. Também há espaço para avançar pela América Latina, onde produtos como Dermacyd já estão presentes.
Ribeiro explica que houve um movimento das farmacêuticas brasileiras em busca de ocupar um gap deixado pelas estrangeiras. “As multinacionais estão saindo do mercado de OTC, focando em projetos para produtos complexos, com foco em doenças raras, câncer e doença de Alzheimer, por exemplo. Pfizer saiu desse mercado, Johnson & Johnson e Sanofi fizeram spin-offs. Com isso, tem oportunidade para as nacionais agregarem valor. Elas conhecem muito do mercado e chegam em pontos de venda que as multinacionais não chegam”, explica.
Nova marca própria
Quem também está se movimentando nesse mercado é a Eurofarma. “A Eurofarma priorizou outras áreas antes de entrar no mercado OTC. Como atuamos na área de prescrição, genéricos, oncologia e hospitalar, era um desejo do presidente desenvolver essa área. Começamos com produtos que eram tarjados e os transformamos em OTC, seguindo a regulação da Anvisa, de forma tímida para entender esse mercado”, explica Donino Scherer, diretor da unidade de negócios OTC e Genéricos da farmacêutica.
A empresa adquiriu os ativos do Laboratório Canonne em 2022 e obteve a Valda, marca de pastilhas e 3° produto não medicamentos mais vendido em farmácias no país, além de Fixaderme, Practivar, Paravision e Inove Cálcio. Paralelamente, a Eurofarma criou uma marca própria de produtos de higiene e cuidados pessoais, chamada OAZ.
“Na previsão de faturamento da empresa vamos representar 3%. É a divisão mais nova, mas a velocidade de crescimento é muito boa para essa arrancada. É promissor. Neste momento não estamos colocando metas de faturamento. Estamos vislumbrando oportunidades e daqui a 3 anos teremos mais noção do potencial. Já estamos colhendo os frutos e tendo boas diretrizes, mas tateando algumas coisas e fazendo ajustes”, afirma Donino.
A expectativa é que somente a linha verão, que conta com protetor solar e loção pós-sol, fature entre 80 e 100 milhões nos próximos 18 meses. A marca Valda é vista como uma das principais oportunidades, fazendo colab com os produtos de higiene e cuidados pessoais da marca.
Uma das principais dificuldades de lançar uma nova marca, explica o diretor, é o risco que corre em produzir e não conseguir espaço neste mercado, já que existe uma gama de marcas e produtos consolidados. Ele explica que ter um bom produto não é garantia de sucesso e é preciso encontrar oportunidades, principalmente com redes de farmácias lançando suas próprias marcas.
“Além da resistência de cadastrarem seus produtos e colocarem nas prateleiras mais um concorrente para eles, se você lançar um produto que tenha um preço para o consumidor com as marcas próprias das farmácias, dificilmente vão colocar ou precificar acima do dele. É um desafio enorme, mas entendemos que tem oportunidade”, explica Donino, que aponta que a Eurofarma tem boa relação com estabelecimentos independentes e unidades associativistas.
Questionado se é possível manter o investimento em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos em paralelo com o investimento no mercado de produtos isentos de prescrição, higiene e autocuidado, o diretor da unidade de negócios OTC e Genéricos explica que são mercados distintos e que merecem um olhar individualizado: “Para lançar uma molécula inovadora demanda tempo, por exemplo. Por outro lado, dermocosméticos e alimentação tem grandes oportunidades. Isso obriga a segregar o P&D, com duas equipes dedicadas cada uma para uma área. Uma droga inovadora pode levar 15 anos para ser desenvolvida, mas em cosméticos a cada 2 anos tem que lançar um produto novo.”
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.