IA na fabricação de medicamentos: como a tecnologia pode acelerar a indústria farmacêutica
IA na fabricação de medicamentos: como a tecnologia pode acelerar a indústria farmacêutica
Especialistas destacam a economia de tempo e dinheiro que esses sistemas proporcionam nas fases iniciais no desenvolvimento de um fármaco, mas ainda há desafios
O processo de descoberta e desenvolvimento de medicamentos é complexo e caro: pode levar entre 10 e 15 anos para percorrer da pesquisa inicial até a comercialização. Para agilizar essa questão, as indústrias farmacêuticas estão recorrendo à inteligência artificial para desenvolver novas moléculas, o que promete estabelecer um novo capítulo no desenvolvimento deste setor. Com dados e modelos de IA apropriados, este caminho poderá ser significativamente mais fácil.
O McKinsey Global Institute (MGI) estimou que a tecnologia poderia gerar entre 60 e 110 bilhões de dólares por ano em valor econômico para as indústrias, em grande parte porque aumenta a produtividade ao acelerar o processo de identificação de compostos para possíveis novos medicamentos, acelerando seu desenvolvimento e aprovação, assim como melhorando a forma como são comercializados.
Na prática, os custos relacionados à produção de uma droga são imensos, girando em torno de U$ 1,5 bilhões. Além disso, durante os ensaios clínicos, a probabilidade de um medicamento passar em todas as fases é inferior a 12%. Análise recente da Grand View Research apontou que o mercado global de IA na descoberta de medicamentos atingirá US$ 9,1 bilhões até 2030. Inclusive, a IA generativa já está dando frutos para desenvolver potenciais medicamentos para resistência antimicrobiana. Pesquisadores da Stanford Medicine desenvolveram um modelo de inteligência artificial, SyntheMol, que cria receitas para químicos sintetizarem os medicamentos em laboratório.
“A IA pode ajudar na rapidez que a indústria farmacêutica descobre novos medicamentos, o que terá um resultado extremamente positivo no tratamento e cura de doenças”, avalia Renato Porto, presidente-executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma). “Também há potencial de usá-la na análise de dados de pesquisas clínicas, por exemplo, ou até mesmo de dados de pacientes. Ainda, podemos considerar o uso da IA pelas agências reguladoras para aprovação de novas tecnologias do setor, trazendo mais celeridade.”
A opinião é compartilhada por Marcel Saraiva, gerente de vendas da divisão enterprise da NVIDIA no Brasil. A empresa multinacional é conhecida por avanços em tecnologias de IA. Saraiva destaca que há um amadurecimento do setor da saúde para a adoção dessas tecnologias e as empresas de saúde estão cada vez mais reconhecendo o potencial da IA para otimizar processos, personalizar tratamentos e melhorar os resultados dos pacientes. Mas, segundo ele, “há uma necessidade de maior conscientização e educação sobre os benefícios da IA entre os profissionais de saúde e reguladores”. Embora haja um potencial enorme, há ainda muito a se desenvolver e os profissionais continuarão sendo importantes.
Renato Porto ressalta que, em julho de 2023, a Interfarma internalizou o Guia da International Federation of Pharmaceutical Manufacturers & Associations (IFPMA) sobre Princípios de Uso Ético da Inteligência Artificial. Através dele, as associadas se comprometem pelo uso responsável da IA para descobrir, desenvolver, fabricar e fornecer medicamentos e soluções de saúde. Segundo ele, o principal objetivo é agir com ética e integridade para manter a confiança dos pacientes e de todos os envolvidos.
Aplicações da IA no desenvolvimento de medicamentos
Geralmente, para produzir novas moléculas farmacologicamente ativas, os químicos utilizam métodos de síntese derivados de reações químicas já conhecidas e, em seguida, testam cada um desses métodos através de experimentos de laboratório. Entretanto, as recentes tecnologias também podem encontrar aplicação no campo da síntese de novos medicamentos.
Atualmente, a inteligência artificial é usada na produção farmacêutica de diversas maneiras, incluindo a otimização de processos, previsão de falhas, controle de qualidade e concepção de medicamentos. Isso se deve à capacidade de analisar grandes quantidades de dados com velocidade e precisão sem precedentes. Nesse sentido, os algoritmos de IA estão revolucionando a forma como os medicamentos são descobertos, concebidos e desenvolvidos. Por isso, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, deverá se tornar uma ferramenta cada vez mais importante no processo de investigação e desenvolvimento da indústria farmacêutica nos próximos anos.
Mas Gustavo Henrique Goulart Trossini, doutor em farmácia e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), faz um alerta: embora toda a tecnologia disponível, no processo de um desenvolvimento de fármaco não é possível excluir a fase experimentação. “Para comprovar que é seguro, é necessário a experimentação animal. Ou seja, teste em célula, no ratinho, nos animais maiores e depois na parte clínica em humanos”, pontua.
Conforme o professor, ao utilizar IA é possível diminuir o tempo da pesquisa de possíveis erros que podem acontecer. É o que também afirma Ana Marisa Chudzinski Tavassi, diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) do Instituto Butantan: “São vários aspectos. É possível diminuir o tempo, os custos e diversas partes do processo. Isso ajuda muito, mas não quer dizer que é milagroso.”
Ela cita exemplos de como isso deve funcionar na prática. Um é que a IA pode ajudar a recrutar pessoas na etapa final de um estudo clínico. Outro é a utilização de IA no banco de dados para encontrar padrões para doenças específicas. Há ainda o uso no começo do desenvolvimento, para descobrir potenciais alvos moleculares. Porém, um desafio é a falta de profissionais treinados para fazer a utilização da ferramenta da melhor forma possível, ou seja, com conhecimento desde programação até desenvolvimento de fármacos.
“A inteligência humana é o comando para a IA. Não vai nos substituir”, explica a pesquisadora do Instituto Butantan.
Regulamentação é importante
Outro debate é que o uso crescente da IA para descoberta de medicamentos vem acompanhado da necessidade de regulamentações e leis claras. Fora do país, o tema já é mais maduro. Inclusive, a Food and Drug Administration (FDA), agência federal do governo dos Estados Unidos, responsável por regulamentar a segurança e eficácia de diversos produtos, publicou três documentos de discussão sobre o uso de inteligência artificial e aprendizado de máquina em três áreas mais críticas: fabricação de medicamentos, controle de alterações para dispositivos médicos e desenvolvimento de medicamentos e produtos biológicos.
No Brasil, há ainda uma necessidade de o país regular o uso de IA nos mais diferentes setores. O PL 2338/23 estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas da tecnologia no país – e tenta se inspirar no recente AI Act, da União Europeia, aprovado recentemente. Para Renato Porto, é importante o debate dos parlamentares e também a atenção aos modelos adotados em outras nações “para garantir que o Brasil não tenha um sistema exclusivo de regulamentação, caso seja essa a decisão”.
A preocupação é um ponto relevante, porque quanto mais a inteligência artificial se torna difundida na prática farmacêutica, é importante considerar as implicações legais da sua utilização. Os desafios incluem a segurança de dados, ética na tomada de decisões, a necessidade de profissionais especializados e a complexidade dos sistemas, já que, além de promover inovação, é responsável pela proteção e pelos interesses dos pacientes. Segundo Gustavo Henrique Goulart Trossini, “a regulação é fundamental quando se fala de medicamentos para pessoas porque é preciso ter certeza, regras e regulação. Esse é um passo importante”.
Mas ao mesmo tempo que a rápida evolução da IA na investigação farmacêutica apresenta desafios regulatórios, incluindo a necessidade de diretrizes claras para garantir a segurança e eficácia dos medicamentos desenvolvidos com IA, ela não pode impedir a inovação, destacam os especialistas.
Mercados promissores
Se as farmacêuticas estão recorrendo à inteligência artificial, um vetor importante são os serviços comercializados para que as indústrias consigam realizar esse processo. Nesse caso, entram as ferramentas de desenvolvimento de software. Comprometida em impulsionar a inovação na área da saúde, a NVIDIA lançou recentemente microsserviços de IA generativa para avançar na descoberta de medicamentos, tecnologia médica e saúde digital.
Os microsserviços lançados podem acelerar a transformação para as empresas de saúde, à medida que a IA generativa introduz inúmeras oportunidades para empresas farmacêuticas, médicos e hospitais. Isso inclui a triagem de trilhões de compostos de medicamentos para trazer avanços para a medicina, melhorar a coleta de dados dos pacientes – ajudando na detecção precoce de doenças – e implantar assistentes digitais mais inteligentes. Pesquisadores, desenvolvedores e profissionais podem usar os microsserviços para integrar facilmente a IA a aplicações novas e executá-las em qualquer lugar, equipando-os com recursos para aprimorar esse trabalho que salva vidas.
Mas ainda existem alguns entraves significativos, como questões de privacidade e segurança de dados, integração de sistemas legados e regulamentações complexas: “Estamos trabalhando em estreita colaboração com parceiros da indústria e reguladores para superar esses desafios e garantir que as soluções de IA sejam implementadas de forma ética e eficaz”, afirma Marcel Saraiva.
Ele explica que o mercado local brasileiro enfrenta desafios específicos para o avanço do uso da IA, especialmente na área farmacêutica. Um deles é a disponibilidade de dados de alta qualidade e em grande escala para treinar modelos de IA robustos. Para isso, está nos planos da NVIDIA expandir a presença local, fortalecer parcerias estratégicas e fornecer suporte aos clientes e parceiros: “Queremos investir em programas de capacitação e educação para desenvolvedores, pesquisadores e profissionais de saúde interessados em aproveitar o poder da IA. Além disso, continuaremos lançando soluções inovadoras e colaborando com a comunidade científica para enfrentar os desafios globais de saúde e medicina.”
Além das ferramentas que ajudam nesse processo, startups têm se especializado em auxiliar as farmas. É o caso da InsilicAll, que surgiu em 2019 e atende clientes como Eurofarma, Blau e Formil. Rodolpho Braga, CTO da startup, conta que, comparado com países lá fora, o Brasil está atrasado, mas que irá crescer muito: “O mercado de saúde é muito conservador. É preciso romper isso.”
Clientes da InsilicAll a contratam para usar o software da startup que gasta menos para desenvolver um medicamento e lançar no mercado. Como exemplo, Rodolpho destaca uma empresa que conseguiu diminuir uma etapa que durava anos para algo próximo de 45 dias. “Esse tipo de economia que a inteligência artificial proporciona para a área farmacêutica pode acelerar o processo e reduzir custos, porque você diminuiu o número de animais, ensaios e substâncias que se aposta e depois falha”, pontua.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.