Clínicas de hemodiálise afirmam que investimento liberado pelo Ministério da Saúde é abaixo do necessário

Clínicas de hemodiálise afirmam que investimento liberado pelo Ministério da Saúde é abaixo do necessário

Associação de clínicas diz que Ministério da Saúde não ouviu integralmente as reinvidicações do setor, que atende 90% dos pacientes que fazem hemodiálise no SUS.

By Published On: 19/07/2023

O Ministério da Saúde anunciou, no início de julho, o investimento de 600 milhões de reais na hemodiálise da saúde pública, com foco no reajuste de valores pagos pelo procedimento aos prestadores de serviços, através da tabela SUS, e no estímulo para realizar manutenção de equipamentos. Contudo, clínicas afirmam que o valor é aquém do necessário para cobrir os gastos.

O reajuste está previsto para ser realizado em duas parcelas, sendo a primeira agora em julho e a próxima em setembro de 2023. Com isso, o novo valor deve saltar de 218 para cerca de 240 reais, um aumento de cerca de 10%. De acordo com a Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT), o valor mínimo necessário é de 275 reais, o que demandaria um reajuste acima de 20% dos valores atuais.

O Brasil possui cerca de 150 mil pacientes renais crônicos que necessitam de diálise ou hemodiálise para sobreviver. De acordo com a Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBF), existem apenas 840 clínicas para atender essa demanda, sendo que aproximadamente 90% das que realizam o atendimento ao SUS são de iniciativa privada.

“Como a remuneração se tornou completamente inviável, você não tem hoje pessoas interessadas em abrir operações no SUS, pelo contrário. Há relatos de várias clínicas que não conseguem mais operar e começam a fechar, principalmente depois da pandemia, onde a inflação foi bastante relevante e não houve compensação por parte do Ministério da Saúde”, explica Bruno Haddad, presidente da DaVita, empresa internacional especializada em tratamento renal com 100 clínicas no Brasil.

Desafios das clínicas de hemodiálise no país

As clínicas de hemodiálise enfrentam alguns problemas simultâneos. Além da questão do pagamento pelo SUS ser abaixo do mínimo necessário, de acordo com a ABCDT, um destes desafios é a dependência externa em insumos e tecnologia pressionam os prestadores. “Hoje em dia nós não estamos com falta específica de insumos, porém o preço está muito mais alto. Um insumo básico, que é o soro fisiológico, passou por uma crise de abastecimento e o mercado ainda está se regularizando, só que a um preço duas ou três vezes maior do que a gente pagava há alguns anos atrás. Com a heparina é a mesma situação”, explica o presidente da ABCDT, Yussif Ali Mere Junior. 

Há ainda a questão do piso salarial de enfermagem. A decisão do Superior Tribunal Federal (STF) sobre o piso aponta que, para prestadores de serviços que atuam com mais de 60% da sua capacidade destinada ao SUS, sejam eles filantrópicos ou com fins lucrativos, a efetivação da lei está condicionada à transferência de recursos da União. Contudo, até o momento, os valores destinados ao aumento salarial dos funcionários ainda não foram repassados – e não há previsão. Até lá, as clínicas que se enquadram nessas regras não pagarão.

Se por um lado isso aliviaria o orçamento das clínicas, por outro Mere Junior aponta que há o risco de os funcionários começarem a trocar de trabalho, em busca daqueles que já estão efetivando o piso.

Outro desafio, de acordo com Bruno Haddad, da DaVita, é a falta de médicos especializados: “Existe uma escassez muito grande de nefrologistas. É muito difícil identificar profissionais disponíveis para atuarem nas operações clínicas. Por força da atual remuneração de mercado, desestimula muito os médicos a caminharem na especialidade de nefrologia. Há lugares no Brasil onde você não consegue às vezes um residente de nefrologia depois de um ano de formação”.

Ele ainda aponta que o cenário legal do Brasil não favorece a abertura de novas clínicas, já que além da questão do financiamento, há dificuldades em conseguir as autorizações necessárias junto à prefeitura dos municípios, Corpo de Bombeiros e vigilância sanitária, o que pode levar até 3 anos.

A situação das clínicas junto ao SUS se agrava na relação com os planos de saúde. Pressionados pelos custos, as operadoras dificultam o diálogo para reajustar os valores repassados às clínicas. No entanto, os serviços relacionados à hemodiálise figuram na liderança do ranking de procedimentos ambulatoriais ressarcidos ao sistema público, que ocorre quando uma pessoa possui um convênio médico mas é atendida pelo SUS.

O boletim “Utilização do Sistema Único de Saúde por Beneficiários de Planos de Saúde e Ressarcimento ao SUS”, elaborado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), aponta que, entre 2017 e 2021, foram realizados 333 mil hemodiálises, com um custo de 1,177 bilhão de reais a serem ressarcidos ao Governo.

“Os planos de saúde não favorecem o credenciamento direto dos serviços de hemodiálise. Então, o paciente começa a fazer pelo SUS. Não que seja mais barato ressarcir ao SUS, mas tem ação judicial e ação de cobranças que, no mínimo, atrasam esse pagamento. Existem casos que o paciente começa a fazer pelo plano de saúde e o SUS continua o atendimento”, explica Youssif, da ABCDT.

Financiamento insuficiente

A defasagem da tabela SUS é tema conhecido e recorrente entre os prestadores privados. Com as clínicas de hemodiálise não é diferente. Em setembro de 2022, a DaVita ameaçava se desligar do SUS caso o Ministério da Saúde não tomasse uma providência em relação à remuneração.

Em 2021, o Ministério da Saúde já havia feito um reajuste de 12,5%, o que elevou o valor de 194 reais para 218 reais. Com o novo reajuste anunciado para este mês, o valor passa para 229 reais, e em setembro para 240 reais. No entanto, segue abaixo do solicitado pelas clínicas privadas, que é de 275 reais por hemodiálise. “Dependendo da região onde você está, a média seria de 303 reais, de acordo com a base de custos. Estamos operando no negativo e vamos continuar dessa forma”, afirma Bruno Haddad, da DaVita.

A ABCDT também apontava que a aprovação do piso de enfermagem demanda um reajuste de 53% nos procedimentos, variando conforme os estados. São Paulo teria uma defasagem de 18%, enquanto a Paraíba de 55%, representando o menor e maior índices. O estudo que analisou o cenário foi contratado em parceria com a Sociedade Brasileira de Nefrologia e feito pela Global Auditores Independentes. Como o STF decidiu que a União tem que repassar o valor para aqueles que atendem mais de 60% de pacientes provenientes do SUS, até o momento não teve um impacto real.

O investimento anunciado neste mês melhora a situação, mas ainda é aquém do necessário. Por isso, a Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT) e as empresas do setor seguem pressionando o Ministério para reavaliar e melhorar ainda mais o reajuste.

“Há muitos que já não conseguiram pagar a folha de pagamento, que não estão conseguindo pagar médicos, reduzindo – que é um problema seríssimo – o tempo de diálise para economizar. Um paciente precisa no mínimo de 4 horas de diálise três vezes por semana. Se não for rapidamente identificada, vai se deteriorar ainda mais rapidamente. É um impacto de calamidade de saúde pública”, alerta Haddad.

Apesar de o Ministério da Saúde anunciar que o reajuste foi feito a partir de estudos elaborados pela pasta e discutidos com entidades ligadas ao setor, Youssif Ali Mere Junior, presidente da ABCDT, afirma que elas não foram ouvidos de forma integral, mesmo verbalizando os principais problemas desse novo investimento.

“Nós vimos que nas contas do Ministério não constava o imposto. A explicação deles é que na planilha que eles trabalham não constam os impostos. Eles incluíram ISS e PIS/Cofins, mas nós pagamos Imposto de Renda, que fica em pelo menos entre 7% e 9% dos valores”, explica. Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu até o fechamento desta reportagem.

Incentivo limitado para manutenção

O anúncio do Ministério prevê ainda a liberação de dois tipos de incentivos para a manutenção de equipamentos. O primeiro, no valor de 53 mil reais por unidade, para os serviços que tenham de uma a 19 máquinas; o segundo, de 9 mil reais por unidade, para prestadores que tenham entre 20 e 29 aparelhos. Porém, o setor vê com críticas essa liberação.

“Isso é um desincentivo para que existam mais serviços no Brasil, porque a grande maioria tem mais do que 29 máquinas e não está contemplada. Existem serviços que reduziram o número de equipamentos destinados ao SUS e cresceram na saúde suplementar, e que terão direito ao incentivo. Serviços que fazem mais pelo SUS e desafogam os hospitais públicos não vão receber nada”, aponta Yussif Ali Mere Junior, presidente da ABCDT.

O porta-voz da associação estima que a média nacional esteja entre 30 e 35 equipamentos por clínicas. Youssif critica ainda a disparidade de valores destinados de acordo com o porte da empresa, já que pode ser reduzido para 17%. Um clínica de até 19 equipamentos pode receber pouco mais de 1 milhão de reais, enquanto uma com 29 máquinas chega ao teto de 261 mil reais.

O presidente da DaVita, Bruno Haddad, explica que para uma clínica ser sustentável no atendimento ao SUS, ela precisa ter um número expressivo de equipamentos. Mesmo assim, é através da receita proveniente da saúde suplementar que a conta fecha, já que a remuneração, mesmo com o reajuste, segue abaixo do necessário.

“Além de uma disparidade grande entre os valores, o que o Ministério está fazendo é desestimular clínicas maiores a continuar. A DaVita, por exemplo, tem muitas clínicas acima de 30 pontos. Uma clínica pequena de 19, 20 ou 25 pontos não se sustenta para atender no SUS. A única chance de se sustentar uma operação do SUS é tendo uma escala, clínicas grandes para que possa diluir os custos”.

Além das 100 clínicas, a DaVita atua em 400 hospitais no país, realizando a diálise intra-hospitalar. Ao todo, 75% do atendimento da empresa é de pacientes do SUS, em torno de 14 mil pessoas. Sendo considerado o maior prestador de tratamento renal no país, recebe cerca de 10% dos pacientes do sistema público que necessitam de hemodiálise. No entanto, com o cenário de subfinanciamento, o grupo tem focado no momento em abrir novas clínicas voltadas à saúde suplementar.

“Continuamos o nosso processo de aquisição. A DaVita tem realizado uma média entre 15 e 20 aquisições por ano e continuamos também incrementando ainda mais o nosso perfil de construir clínicas próprias. Só esse ano devemos entregar em torno de 9 novas clínicas próprias, mas agora nesse momento com foco e perfil em pacientes privados. Não estamos olhando mais nesse momento específico muitas operações que tenham um alto mix de SUS. Se a situação melhorar, voltaremos a olhar com mais foco”, afirma Haddad.

Cenário de tratamento

O processo de filtragem é necessário quando os rins dos pacientes param de funcionar em sua totalidade, como decorrência de alguma doença. Por isso, é preciso que equipamentos façam a filtragem do sangue de forma a realizar a limpeza que deveria ser feita pelo órgão. É preciso que o paciente faça o procedimento por algumas horas em diferentes dias da semana.

“Nos últimos 25 anos não havia nenhuma novidade para você evitar a evolução da progressão da doença crônica dos rins. Até então, os únicos medicamentos que dispúnhamos atuam no sistema que cientificamente se conhece como renina angiotensina, que eram ou inibidores de renina ou bloqueadores de receptores de angiotensina II, que tinham a finalidade de diminuir a pressão nos intra-filtro dos rins”, explica Miguel Carlos Riella, nefrologista e fundador do Instituto Pró-Renal.

Atualmente existem dois métodos principais para conseguir fazer com que o paciente tenha uma substituição do funcionamento dos rins, sendo a hemodiálise realizada em clínicas e hospitais a mais comum. A outra, chamada de diálise peritoneal, pode ser feita em casa, mas é pouco estimulada no Brasil, sendo utilizada por cerca de 6% dos pacientes.

No entanto, a ciência busca alternativas, seja para facilitar o processo de hemodiálise ou para preservar os rins dos pacientes ou reduzir o impacto de outras doenças nos órgãos. O diabetes é o principal alvo de estudos e pesquisas, já que as complicações decorrentes da doença crônica, junto à hipertensão, representam cerca de 60% dos casos de pacientes que precisam de diálise.

Em medicamentos, novos alvos foram identificados. O GLP, sigla para peptídeo semelhante a glucagon, em tradução livre, é um hormônio responsável por estimular a secreção de insulina e foi descoberto por cientistas que elaboraram medicamentos análogos a esse hormônio, que recebeu o nome de semaglutida – que ficou popularmente conhecida pelos seus efeitos no controle do diabetes e na perda de peso. 

“Paralelamente os estudos mostraram também uma certa proteção cardiovascular e renal, então poderia ser bom também para o rim. Não existe nenhum estudo especificamente para que analise o uso dessa linha de medicamentos para os rins. O único, que está terminando possivelmente este ano, se chama Flow, produzido pelo laboratório Novo Nordisk, e que vai responder essa pergunta”, explica Riella. O Instituto Pró-Renal participou da pesquisa, que deve ser publicada em agosto de 2024.

Outros medicamentos desenvolvidos nos últimos anos já foram incorporados no SUS, como a dapagliflozina, voltada para o diabetes, e a finerenona, para pacientes que já possuem a função renal afetada, mas visando diminuir a progressão da doença. “Assim como na cardiologia, com um controle melhor da pressão arterial e uma redução de colesterol, tivemos uma redução também das complicações de infarto de miocárdio. Assim se espera também na doença renal crônica com esses medicamentos”, explica o fundador do Instituto Pró-Renal.

Já na área de dispositivos médicos, empresas buscam soluções para desenvolver novas tecnologias. “Nos últimos anos, novos métodos de hemodiálise estão sendo oferecidos no Brasil, como a hemodiafiltração, que exige máquinas de última geração. Tais máquinas, podem ser conectadas à distância com prontuários eletrônicos em que o médico tem todos os dados do tratamento em tempo real, durante a sessão dos pacientes”, aponta o nefrologista Tiago Cerqueira, coordenador de Ensino, Pesquisa e Inovação em Saúde do Hospital Evangélico de Belo Horizonte (HE),

O médico também aponta que foi lançado nos Estados Unidos um aparelho para hemodiálise em casa, ainda inédito no Brasil. Com um custo de 47 mil dólares, permite que o paciente não precise ir a uma clínica com frequência e realize todo o processo em seu lar. Ele é vendido com o nome comercial de Tablo Hemodialysis System, e foi produzido pela Outset Medical.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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