Guilherme Soarez, CEO da Inspirali: “Brasil pode ter 1 milhão de médicos em 15 a 20 anos”

Guilherme Soarez, CEO da Inspirali: “Brasil pode ter 1 milhão de médicos em 15 a 20 anos”

No mais recente episódio de Futuro Talks, Guilherme Soarez, CEO da Inspirali, falou sobre a educação médica no Brasil, os desafios regulatórios e a qualidade dos cursos de medicina

By Published On: 23/09/2024
Guilherme Soarez, CEO da Inspirali: “Brasil pode ter 1 milhão de médicos em 15 a 20 anos”

O cenário da educação médica no Brasil tem se transformado para acompanhar as demandas de um sistema de saúde mais complexo e tecnológico, além de atender a uma população diversa e aos avanços científicos. Atualmente, o Brasil conta com cerca de 500 mil médicos, mas com fatores como o envelhecimento populacional e aumento de doenças crônicas, esse número pode chegar a 1 milhão nos próximos 15 a 20 anos. Esse foi o tema do mais recente episódio de Futuro Talks, que recebeu Guilherme Soarez, CEO da Inspirali, um dos principais ecossistemas de educação médica do país.

A Inspirali, do grupo Ânima, nasceu em 2019 com dois cursos de medicina e, em cinco anos, expandiu para 15 cursos, atendendo 12 mil estudantes. Ao longo da conversa, Soarez disse que a carreira médica ainda é uma das mais desejadas pelo retorno financeiro e altos índices de empregabilidade – segundo ele, “médico não fica desempregado”. O CEO também acredita a medicina continuará atraindo novos estudantes pela diversidade de oportunidades que a carreira oferece. Se antes a trajetória tradicional envolvia graduação e residência em uma especialidade, agora essa visão está se expandindo: hoje, muitos buscam a medicina para ser pesquisadores, professores, empreendedores, gestores ou para seguir múltiplas especialidades, tornando a carreira mais flexível.

Durante a entrevista, Soarez comentou ainda sobre os desafios regulatórios e a qualidade dos cursos de medicina, incluindo critérios de avaliação e a possível criação de um exame semelhante à OAB para médicos. Além disso, afirmou que, em sua visão, é um mito dizer que faculdades de medicina precisam ter obrigatoriamente um hospital para apoiar o ensino – para ele, a estrutura do SUS, com unidades de saúde, já possibilita a oferta de experiências práticas para os estudantes. 

Confira a entrevista a seguir:

A Inspirali nasceu há cinco anos. Qual o atual momento da Inspirali hoje?

Guilherme Soarez – A Inspirali foi criada em 2019, a partir da reorganização dos cursos de medicina da Ânima, um dos principais ecossistemas de educação do Brasil, com 21 anos de atuação. Completamos agora cinco anos, com um crescimento bastante significativo. Na época, tínhamos dois cursos de medicina. Hoje, já são 15 e 12 mil estudantes de medicina, além dos programas de educação médica continuada, que somam cerca de 3.500 médicos já formados em diversos cursos pelo Brasil. Estamos em uma jornada de consolidação do projeto Inspirali como uma instituição independente, buscando novas avenidas de crescimento para maximizar nosso impacto. Nosso propósito é inspirar o amor pela vida. Acreditamos que, devido à nossa escala e relevância, e com base no ensino médico transformador e de qualidade, temos uma grande responsabilidade de influenciar o setor de healthcare, a saúde e a formação médica. Hoje, 70% dos nossos estudantes são mulheres, futuras médicas, o que representa uma grande transformação em andamento. Elas são o elo de mobilização e transformação na saúde, e ao oferecermos oportunidades de uma forma diferenciada nessa formação, acreditamos ter um importante poder de transformação no Brasil.

Como se deu esse crescimento? Foi por meio da abertura de novos cursos ou da aquisição de faculdades já existentes? Como funciona esse mercado?

Guilherme Soarez – A educação médica é um setor que, como deve ser, é altamente regulado. Trata-se de um elo fundamental para a sociedade. Por isso, existem instituições tradicionais e outras que evoluíram ao longo do tempo. A faculdade de medicina, ou um curso de medicina, é a ‘joia da coroa’, a coração da jornada de um educador. Desde os primeiros mandatos do PT, o programa Mais Médicos criou regras para o surgimento de novas faculdades de medicina. Assim, a trajetória de crescimento da Inspirali seguiu esses caminhos: por meio de escolas de legado, já pertencentes ao ecossistema Ânima, novas aquisições, ou cursos que conseguimos aprovar nos editais do Mais Médicos.

Qual sua visão sobre a regulação para abertura de novos cursos?

Guilherme Soarez – Existem dados que indicam que, devido ao envelhecimento da população, às pandemias e à evolução das doenças, o Brasil pode precisar, em 15 a 20 anos, de até um milhão de médicos. Atualmente, são cerca de 500 mil. Existem estudos, inclusive internacionais, que afirmam que a demografia está mudando. Por consequência, será necessário um aumento no número de médicos. Esse crescimento já está em andamento por meio do programa Mais Médicos. Historicamente, o que ocorreu foi que, durante o governo Temer, houve o que foi informalmente batizado de moratória, que proibiu, por cinco anos, a abertura de novos cursos. Essa moratória foi encerrada no começo do ano passado. Enquanto não houve novos editais para a abertura de faculdades, criou-se um ambiente em que a decisão foi questionada judicialmente, principalmente com base na independência da iniciativa privada para pleitear a oferta de seu produto, no caso, a educação. Vale lembrar que esses processos judiciais sempre se fundamentaram no direito de pleitear um curso e nunca na obrigação de defini-lo. Isso resultou em uma proliferação desorganizada de demandas. Recentemente, o governo, em atuação a partir de um processo relatado pelo ministro Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal, estabeleceu uma série de critérios para a avaliação desses cursos. Assim, esse processo, que já se arrastava há algum tempo, começou a ter mais clareza nos últimos dois meses, pois a votação do Supremo se concluiu, e o Ministério da Educação (MEC) começou a aplicar esses critérios, que ainda geram questionamentos sobre sua adequação.

Quais são esses critérios?

Guilherme Soarez – Os critérios, basicamente, foram implementados a partir das visitas e incluem critérios de qualidade e de necessidade social. No entanto, existem dúvidas e questionamentos sobre se o momento da definição desses critérios foi adequado e se os critérios utilizados são os corretos, uma vez que nem todos são tradicionais ou equilibrados nas diversas frentes de abertura. Neste momento, estamos vivendo a conclusão desses processos judicializados, além da abertura de um novo edital do programa Mais Médicos, batizado coloquialmente de Mais Médicos 3, no qual o governo listou uma série de cidades e regiões da saúde onde novas instituições poderão se candidatar. Em paralelo, há também outro edital voltado para instituições, como hospitais, com uma série de critérios para pleitear a implementação de uma faculdade ou um curso de medicina. Portanto, esse é o momento.

E como encaram tudo isso?

Guilherme Soarez – A nossa visão é a seguinte: não acreditamos em reserva de mercado, pois, como brasileiros e cidadãos, acreditamos que a educação não tem concorrentes, mas sim parceiros de propósito. O mais importante não é a quantidade em si, mas a regulação da qualidade. É fundamental que não apenas os órgãos reguladores sejam capazes de abrir novos cursos, mas também de fechar aqueles que não atendem ao nível mínimo de qualidade necessário para uma função tão importante na sociedade. Acreditamos que fechar as barreiras não é o ideal, pois isso gera desequilíbrios. É necessário ter uma regulação que avalie e questione a qualidade dos formandos.

“Um dos temas em debate é a possibilidade de uma certificação semelhante à da OAB. Por exemplo, um advogado se forma, mas só poderá exercer a advocacia após passar no exame de ordem. Esse é um dos assuntos que acompanhamos com bons olhos, pois isso representa uma forma de melhorar as chances do profissional. Essa possibilidade está em debate, inclusive, no Congresso.”

Mas a avaliação de qualidade já é feita atualmente? Temos uma regulação presente ou ela precisa ser mais efetiva?

Guilherme Soarez – Sim, isso existe. O Ministério da Educação possui todos os procedimentos e ritos necessários. Obviamente, por ser um órgão público, a dinâmica e a velocidade nem sempre condizem com o dia a dia. Mas vou dar um exemplo: temos um dos nossos cursos, no interior da Bahia, que foi o primeiro do programa Mais Médicos 2 a ser credenciado com nota máxima, 5. Portanto, há todo um rito de acompanhamento por parte do Ministério da Educação para avaliar essa qualidade. Contudo, sempre há discussões sobre se os critérios utilizados pelo MEC são condizentes com a realidade do dia a dia. Muitas vezes, há um peso desproporcional em alguns critérios, como infraestrutura, acessibilidade ou pesquisa, pois esses critérios se originam das faculdades públicas e universidades federais. Além disso, a evolução do setor mudou bastante. Portanto, vale a pena debater quais critérios estão sendo utilizados, e um dos principais pontos é o sucesso dos egressos. À medida que esses alunos se graduam e se tornam médicos com uma boa atuação no exercício da profissão, esse, para mim, é o principal critério para avaliar o serviço prestado na educação, de forma ética e correta.

Há muita discussão sobre a falta de hospitais e escolas atrelados a essas instituições. Essa é uma questão relevante?

Guilherme Soarez – Eu vejo isso mais como um mito. Hoje em dia, o sistema de saúde evoluiu muito com o SUS. Obviamente, há décadas, se você não tivesse um hospital, as possibilidades eram limitadas. Mas hoje, nossos estudantes, desde a primeira semana, já estão envolvidos nas UBS e nas UPAs, integrados ao Sistema Único de Saúde. Existem diversas formas de oferecer aprendizado prático para os estudantes. Esse mito, na verdade, se origina de uma formação mais tradicional, chamada de hospitalocêntrico, que foca excessivamente no hospital. No entanto, o médico não atua apenas no hospital, ele está presente em todo o sistema de saúde. Oferecer essa possibilidade de aprendizado mais abrangente é muito rico para a formação do estudante. Hoje, nossas escolas, espalhadas pelo Brasil, têm parcerias com o SUS e com parceiros privados para proporcionar essa experiência de aprendizado diferenciada. Além disso, oferecemos, em todos os nossos cursos, o que chamamos de Centro Integrado de Saúde, que são ambulatórios vinculados ao SUS e referenciados para ele, onde recebemos pacientes do SUS.

“É uma equação, uma teia de oportunidades de aprendizado, e acreditamos que esse modelo mais abrangente permite ao estudante ter uma gama de experiências mais completa e, por consequência, uma formação mais sólida.”

Você mencionou a possibilidade de hospitais abrirem suas faculdades. Como você vê esse movimento?

Guilherme Soarez – Esse movimento é pensado para hospitais de excelência e possui critérios específicos. O pioneiro foi o Einstein, aqui em São Paulo, que tem um curso de medicina que é referência. Ter hospitais de referência e excelência, com cursos de medicina também reconhecidos, agrega valor à formação médica. O importante é que esses diversos editais, sejam os do programa Mais Médicos para hospitais, tenham critérios e lógicas semelhantes. Posso dar alguns exemplos: o edital do Mais Médicos solicita que as universidades, faculdades e instituições de ensino superior apresentem propostas, como se fosse uma licitação, e o ministério vai definir o vencedor naquela região.

Você está aplicando para ganhar ou não a possibilidade de abrir um curso.

Guilherme Soarez – Exatamente, isso ocorre por uma série de critérios que o edital lista. Já o edital dos hospitais não tem essa concorrência. Em determinadas praças, pode acontecer que vários hospitais pleiteiem, e, como há concorrência, alguns acabam conseguindo. Isso gera inconsistência de critérios, pois um dos critérios utilizados nas judicializações leva em consideração, por exemplo, o número de médicos por habitante, a cada mil habitantes. No entanto, para o pleito dos hospitais, esse critério não está presente. Portanto, essa análise, sob o ponto de vista do órgão regulador, fica um pouco desequilibrada. No final do dia, isso acaba suscitando mais disputas na justiça.

O curso de medicina sempre foi um dos mais procurados e concorridos do país, mesmo com uma mensalidade alta. Por que a medicina continua sendo um curso tão desejado?

Guilherme Soarez – A gente faz muitas pesquisas e conversa bastante com os nossos estudantes e professores. Fundamentalmente, o motivo pelo qual se procura cursar medicina é a vocação. Em todas as pesquisas, esse é o principal motivo: seja porque a pessoa tem esse desejo de cuidar, seja porque vivenciou alguma questão de saúde, seja com ela mesma ou com um familiar. Nessa jornada, que muitas vezes está vinculada a momentos emocionais difíceis, a pessoa desperta essa vontade de cuidar. Isso é incrível. E, é claro, há também um outro elemento: o retorno desta profissão.

“Mesmo hoje em dia, não existe médico desempregado. Entre as carreiras, a medicina oferece o maior retorno sobre o investimento na educação. O mais rápido e uma das maiores remunerações logo após a formatura. Esse é um outro elemento que impacta a escolha da profissão.”

À medida que existe essa descentralização, que é um objetivo muito importante, o Brasil ainda apresenta, em números absolutos, um ‘gap’ em relação aos padrões internacionais de número de médicos por mil habitantes. No entanto, quando você desmembra esses dados por cidades e estados, percebe que a distribuição não é equilibrada. Há estados e cidades com um número maior de médicos e outras que estão muito aquém. A presença de mais médicos no sistema de saúde vai, naturalmente, preencher essas oportunidades e necessidades em lugares diferentes de São Paulo, por exemplo. Mas isso também demanda incentivos, projetos e planos do governo para incentivar os alunos a firmarem residência em outras localidades.

É preciso um incentivo para a construção de carreira?

Guilherme Soarez – Com a residência médica e as oportunidades oferecidas pelo Sistema Único de Saúde, o médico pode se estabelecer em locais onde deseja formar sua família e desempenhar sua função. Isso já tem acontecido, mas o mercado de trabalho se impõe. Hoje em dia, se não me engano, existem cerca de 30 mil vagas de residências médicas no Brasil. Contudo, uma boa parcela dessas vagas não se preenche porque são oferecidas em locais e especialidades que os estudantes recém-graduados não têm interesse. E por que isso ocorre? Porque eles enxergam oportunidades em outras áreas. Portanto, é essencial implementar incentivos para equilibrar essa situação, permitindo que o mercado se regule com o tempo.

De quem está estudando medicina, quais são as especialidades que mais querem fazer?

Guilherme Soarez – Isso evolui bastante. O estudante entra com um imaginário e, ao longo dos seis anos do curso, muitos mudam de ideia porque experimentam e têm contato com outras especialidades. A carreira médica é uma jornada longa, e o médico nunca para de estudar. Isso é muito interessante, pois, nas nossas 15 escolas, promovemos o que chamamos de ligas médicas. Cerca de 5 mil estudantes, dos 12 mil totais, participam dessas ligas, que são órgãos regulados, mas liderados pelos próprios alunos, com a supervisão de um professor. Esses estudantes realizam pesquisas, eventos, discussões e até algumas vivências em prestadores de serviços de saúde. Essa é uma forma de conhecer cada uma das especialidades. Além disso, conectamos essas ligas entre as 15 escolas. Por exemplo, a liga médica de pediatria se comunica e realiza projetos em conjunto. Participar desse ecossistema é extremamente rico. Um estudante nosso na UniFG, em Guanambi, no interior da Bahia, troca experiências com estudantes da Anhembi Morumbi, em São Paulo, e da UniBH, em Belo Horizonte. Esse intercâmbio é muito valioso para a formação e para auxiliar nas escolhas das especialidades.

As escolhas evoluem.

Guilherme Soarez – Temos pesquisas internas que mostram que, embora os alunos inicialmente tenham preferências, suas escolhas evoluem ao longo da jornada. Em fevereiro de 2024, por exemplo, recebemos novos ingressantes em diversos cursos, e esses estudantes só estarão plenamente exercendo a profissão médica em 10 anos, após seis anos de curso, plantões e residências. Portanto, esses alunos que começaram agora se sentirão médicos de fato em 2034. É difícil prever como será o mundo nesse ano, não é? Hoje, a carreira médica tem evoluído bastante. Tradicionalmente, existia um “padrão ouro”: o estudante completava a graduação, a residência e escolhia uma especialidade. Mas essa visão já não é mais a única.

“Muitos médicos e estudantes buscam a medicina para se tornarem professores, pesquisadores, empreendedores, gestores na área da saúde ou especialistas em várias áreas. Para se especializar, alguns optam por residência médica, enquanto outros preferem cursos de especialização. Essa fluidez na carreira traz muitas mais opções, e nosso desafio como educadores é oferecer um leque diversificado de experiências para que cada estudante possa trilhar seu próprio caminho e realizar seus sonhos.”

E como atender todas essas necessidades, do ponto de vista até de negócio?

Guilherme Soarez – Acho que nosso papel é oferecer esse leque, essa gama de possibilidades e momentos de experiência para que nossos estudantes possam explorar. Já mencionamos o exemplo das ligas médicas, que servem como um incentivo para essa exploração. Além disso, temos ligas médicas focadas em empreendedorismo e outras iniciativas que também oferecemos, como nossas missões humanitárias.

Vocês fizeram uma para a Amazônia, inclusive.

Guilherme Soarez – Sim. Na verdade, um dos eixos da nossa formação são as missões humanitárias, e para a Amazônia já estamos na oitava missão. O que são essas missões? Nós abrimos o edital para alunos a partir de um determinado período no curso, porque é necessário ter uma certa maturidade e experiência. Esses estudantes viajam, supervisionados por professores médicos preceptores, para fazer atendimento em localidades. Isso se iniciou com a missão amazônica. Fizemos um compromisso de seis anos, que corresponde ao período de um curso, em uma determinada região da Amazônia, ancorado em Belterra, onde nos comprometemos a realizar, no mínimo, quatro missões por ano durante esse período. E mensuramos os indicadores de saúde daquelas regiões e vamos acompanhando. Já estamos no segundo ano de acompanhamento e, a partir daí, surgiram outras missões. Agora recentemente teve a primeira missão do Vale do Jequitinhonha, na região de Minas Gerais, que é bastante carente. Fomos lá também apoiar, para fazer um primeiro estudo e ver qual será o nosso compromisso. Selecionamos alunos de diversas escolas. São em torno de 30 a 40 estudantes que atendem às necessidades locais. Isso tudo é referenciado via SUS, porque temos um prontuário eletrônico integrado nacionalmente que gera esses dados. As localidades – os municípios nos quais esses atendimentos e intervenções acontecem – também recebem repasses do próprio Ministério da Saúde, o que representa outra oportunidade. Os melhores estudantes, os que se destacam nas missões amazônicas, tiveram a chance de participar de uma missão à África, no Benin, onde passamos duas semanas atendendo, para conhecer e entender. Estamos avaliando quais serão os próximos passos. É uma logística e uma mobilização bastante relevantes, mas são experiências incríveis. Em duas semanas, muda a vida desses meninos e meninas, sua visão de mundo, de saúde e da profissão. Eles se tornam muito mais humanizados, olhando o paciente de uma forma integral. Esse é um dos temas que acreditamos que fará a diferença.

Pensando no mundo ultra tecnológico, com todo o potencial da inteligência artificial, como você vê o papel do médico dentro desse cenário?

Guilherme Soarez – Quanto mais tecnologias surgem, mais humanizados precisamos ser em todas as profissões, e na medicina isso é ainda mais evidente. A inteligência artificial não será capaz de substituir a relação médico-paciente. Ela não pode acolher o paciente nos momentos mais difíceis. Quem nunca vivenciou um atendimento em um momento de fragilidade emocional, diante de uma doença ou situação grave, e foi bem acolhido pelo profissional de saúde, pelo enfermeiro, pelo médico ou pela médica? Isso impacta o emocional e ajuda na resolução da enfermidade. Nossa formação visa que os médicos formados em nossas escolas tenham esse olhar integral sobre o paciente. O paciente não é algo que possa ser dividido. O emocional, o físico, a alimentação e a relação com o meio ambiente são interconectados, especialmente diante de todas as pandemias que enfrentamos. Esse é um olhar importante. Afirmamos que o médico não perderá o emprego para a inteligência artificial. Provavelmente, perderá para o outro médico que souber usar melhor essa tecnologia. Por isso, oferecemos, ao longo desses seis anos, possibilidades de interação com essas novas tecnologias, como telemedicina, inteligência artificial e o uso de imagens. Precisamos equipar esses jovens profissionais dessa forma.

Como treinar e investir em soft skills, como comunicação e interação?

Guilherme Soarez – Esse é um dos eixos principais do currículo da Inspirali. O nome ‘Inspirali’ vem de uma espiral do conhecimento. Ao longo do curso, nossos estudantes são expostos a diversos métodos de ensino para justamente desenvolver essas habilidades. Desde o primeiro momento, eles acompanham enfermeiros nas unidades básicas de saúde, fazem rotações e têm interações com tecnologias, como realidade virtual e troca com inteligência artificial, além de trabalhar com pacientes virtuais e tocar peças anatômicas, mas também interagir com pacientes atores. Dentro do currículo, há uma progressão no uso de tecnologia e pacientes atores. Por exemplo, nossos cursos têm um estúdio onde o estudante assume o papel de médico, muito semelhante a este nosso ambiente. Um ator interpreta um paciente enquanto os colegas observam por meio de um aquário, como em um antigo focus group ou em debates de política. Após essa interação entre paciente e médico, onde o paciente é um ator e o médico é um estudante, o ator oferece feedback: ‘Olha, você não me olhou nos olhos. Você me deu o diagnóstico de uma forma muito fria. Você não me perguntou isso.’ O professor também observa, junto com os colegas que fazem anotações. Depois, é a vez do estudante que estava fora. Após sua interação, ele também trabalha com equipamentos, bonecos de alta fidelidade e tecnologia para realizar procedimentos. Até chegar aos internatos e estágios, ele acompanha isso diariamente com médicos preceptores durante os atendimentos. Nessa jornada, ele desenvolve empatia e humanização, que são um dos grandes diferenciais dos cursos da Inspirali.

No passado, o aprendizado era mais linear – recorríamos a livros físicos, como a Barsa, e mais tarde ao Google. Hoje, com a inteligência artificial e o aumento da produção científica, o volume de informações cresce em uma velocidade sem precedentes. Como os estudantes de medicina absorvem esse conhecimento atualmente, e de que maneira a Inspirali se adapta para oferecer novos métodos de aprendizagem, diante dessa realidade tão diferente de tempos atrás?

Guilherme Soarez – O currículo da Inspirali é resultado de um estudo aprofundado dos principais cursos de medicina do mundo, como Harvard, Kaiser Permanente e Maastricht, na Europa. Diversos cursos foram analisados, sempre em alinhamento com as diretrizes curriculares nacionais. Com base nisso, incorporamos diferentes metodologias de ensino. Nos primeiros semestres, os alunos são incentivados a desenvolver suas capacidades críticas de estudo e análise. Hoje, há menos aulas expositivas e testes baseados em memorização, como quantos músculos existem no corpo, priorizando uma formação fundamental mais sólida. À medida que o aluno se especializa, esses temas ganham maior relevância. Na Inspirali, utilizamos metodologias como a educação baseada em problemas e a sala de aula invertida. Nesses métodos, uma situação-problema é apresentada para grupos de estudo, circulando por diferentes abordagens. Ela pode ser trabalhada com pacientes simulados, equipamentos de simulação realística ou visitas supervisionadas. A discussão é guiada por tutores, que facilitam o debate e a análise dos estudantes. Esse processo funciona como um estudo de caso, aprofundado de vários ângulos, com uma progressão curricular que vai tornando os temas mais complexos ao longo do tempo. Com isso, os alunos aprendem a estudar, debater e defender suas opiniões, em vez de apenas memorizar conteúdos.

A faculdade de medicina enfrenta algum problema de retenção, como abandono do curso, ou geralmente os alunos que ingressam permanecem até o final?

Guilherme Soarez – Dados na educação mostram que, quanto maior o investimento do estudante no curso, melhor tende a ser sua relação com ele. Isso ocorre porque, em casos onde as mensalidades ou tíquetes são muito baixos – não só na medicina, mas em outras áreas – a decisão pode ser tomada de forma impulsiva. Já quando o investimento é maior, a escolha se torna mais racional. Além disso, a carreira médica é uma vocação, não apenas uma profissão. O estudante que escolhe ser médico, geralmente, não decide por impulso. É algo planejado, muitas vezes desde a infância, e costuma ser um projeto familiar.

“Embora possa haver casos de abandono por motivos pessoais, como a perda de um familiar ou mudança de cidade, esses índices são muito baixos, justamente porque a decisão de cursar medicina é muito pensada, diferente de outras carreiras, onde a escolha pode ser feita em resposta a uma promoção, por exemplo.”

Vocês acompanham toda a jornada do médico? Está no radar de vocês?

Guilherme Soarez – Uma das instituições do ecossistema da Inspirali é o IBCMED, situado em Porto Alegre, com tradição em educação médica continuada e pós-graduação. Desde a sua integração, temos trabalhado em parcerias para fortalecer o vínculo com a formação médica contínua. Nossa estratégia é acompanhar os médicos ao longo de suas carreiras, sempre com um foco educacional. Embora invistamos bastante em tecnologia, isso é feito a serviço da educação. Atualmente, não priorizamos apoiar a jornada médica fora do ambiente educacional. Contamos com parcerias com o São Paulo Futebol Clube, focadas em medicina esportiva, além de colaborações com o Mater Dei e a DASA em nossa escola de ultrassom. Também temos diversas parcerias com clínicas em todo o Brasil, abordando áreas como endoscopia, pediatria e dermatologia, proporcionando um amplo leque de opções para a formação contínua dos estudantes.

A saúde mental tem sido apontada como um dos grandes problemas atuais da nossa sociedade, especialmente entre os médicos. Existe alguma iniciativa dentro da Inspirali que aborde a saúde mental dos estudantes e futuros médicos?

Guilherme Soarez – Existe, sim, e esse é um ponto fundamental. Historicamente e estatisticamente, os desafios da saúde mental, especialmente entre jovens de 18 a 24 anos, já apresentam uma prevalência maior na população. Nos cursos de medicina, essa proporção é ainda mais significativa, por diversos motivos. Primeiro, pela pressão interna e externa: cada estudante se cobra, a família cobra e a instituição também exige bastante. Além disso, muitos escolheram a carreira médica devido a experiências pessoais relacionadas à saúde ao longo de suas trajetórias. Esse público que tratamos é proporcionalmente mais vulnerável a esses desafios, especialmente no contexto atual. Temos um programa chamado Angatu, batizado pelos próprios estudantes, que é um aplicativo. Por meio de algumas perguntas e acompanhamento, ele consegue identificar problemas de saúde mental. Esse processo é apoiado por um grupo de psiquiatras que realizam os primeiros atendimentos. Temos estatísticas impressionantes de casos que puderam ser tratados e evitados. Hoje, mais de 5 mil estudantes estão cadastrados nessa plataforma e recebem acompanhamento. Além disso, criamos em cada um dos nossos cursos, em todos os períodos, um grupo de “anjos”, que têm um olhar mais atento para os colegas e podem nos alertar sobre os primeiros indícios, permitindo que possamos apoiá-los. Esse trabalho não é apenas para os estudantes, mas também para os professores e nossos docentes, pois é um ambiente de parceria que envolve todos os lados.

O que está no radar em termos de próximos passos? Quais áreas pretendem desenvolver?

Guilherme Soarez – A Inspirali, como mencionei, concentra as escolas de medicina da Ânima Educação, e conta com um acionista adicional, a DNA Capital, um fundo privado focado na cadeia de valor completa do healthcare e na educação médica em parceria com a Inspirali. Nosso projeto é ampliar esse impacto. Temos diversas avenidas de crescimento, seja através da participação no novo edital do Mais Médicos, seja com projetos que estão em trâmite no Ministério da Educação, a partir das nossas escolas que não oferecem cursos de medicina. Também buscamos atrair instituições que vejam valor em integrar-se ao ecossistema da Inspirali, para que possamos honrar o legado de educadores e mantenedores que realizaram trabalhos notáveis. Essa estratégia também inclui a continuidade de legados de outras famílias que, por diferentes razões, desejam fazer parte da Inspirali. Isso se refere, principalmente, à graduação.

Aquisições?

Guilherme Soarez – Pode ser aquisição, sociedade ou troca de ações. O modelo depende principalmente do desejo dos mantenedores atuais. A Inspirali se destaca por atender os cursos de medicina e, por fazer parte da Ânima, também pode dar continuidade a cursos como Direito, Engenharia, Administração e Medicina Veterinária. Assim, há um leque de oportunidades para dar seguimento a esses legados.

E como você vê o papel do médico nesse cenário atual do Brasil? Considerando os desafios já conhecidos na saúde pública e na saúde suplementar, você acredita que o médico desempenhará um papel importante nessa próxima transformação? Como ele pode conectar a sustentabilidade do sistema de saúde com a chegada da tecnologia?

Guilherme Soarez – Vejo que o médico desempenha um papel crucial, tanto atuando diretamente quanto desenvolvendo novas políticas. Por isso, uma formação mais abrangente e fluida é fundamental, permitindo que esses profissionais pensem de maneira sustentável ao criar políticas que equilibrem os incentivos e evitem os desequilíbrios atuais no sistema de saúde. Somente um médico que compreende essa experiência e tem um olhar integral pode promover mudanças. Acredito que em nenhum lugar do mundo o sistema de saúde e o healthcare se transformam sem a influência do médico.

Quais são as pautas que precisamos prestar atenção no Futuro da Saúde?

Guilherme Soarez – Hoje, especialmente com os eventos recentes, o tema de cybersecurity é importante, e na saúde, ainda mais. Com a evolução da inteligência artificial, quando utilizada com más intenções, o risco de impacto é exponencial. Há casos alarmantes de ataques cibernéticos que paralisam hospitais, comprometem equipamentos e divulgam dados pessoais. Enquanto os dados pessoais comuns podem não ser tão relevantes, informações de figuras como presidentes de república, CEOs de multinacionais ou governadores são extremamente críticas. Portanto, estamos monitorando esse tema com muita atenção.

Natalia Cuminale

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, com as reportagens, na newsletter, com uma curadoria semanal, e nas nossas redes sociais, com conteúdos no YouTube.

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