Fernando Maluf, oncologista e cofundador do Instituto Vencer o Câncer: “Brasil tem potencial para liderar pesquisa no câncer”
Fernando Maluf, oncologista e cofundador do Instituto Vencer o Câncer: “Brasil tem potencial para liderar pesquisa no câncer”
No mais recente episódio do Futuro Talks, Fernando Maluf falou sobre os avanços na oncologia e como o contexto pode mudar com nova política do câncer e o PL das pesquisas clínicas
A recém-sancionada regulamentação da pesquisa clínica e a nova política nacional do câncer têm o potencial de transformar o cenário oncológico no Brasil, aliado ao aumento do financiamento público, modernização dos critérios de custo-efetividade e digitalização da saúde – principalmente na área de dados. Essa é a expectativa do oncologista Fernando Maluf, cofundador do Instituto Vencer o Câncer (IVOC), entrevistado do mais recente episódio de Futuro Talks, ocasião em que ele traçou um cenário completo da oncologia no Brasil.
Segundo Maluf, que também é diretor associado do Centro Oncológico da BP e membro do Comitê Gestor do Centro de Oncologia do Hospital Israelita Albert Einstein, as novas regras de pesquisa clínica podem colocar o país em outro patamar. Isso porque, além de colocar o Brasil em papel de protagonista, a nova lei pode contribuir para o acesso de pacientes a tratamentos inovadores e desenvolver o ecossistema nacional, que já conta com pesquisadores de altíssimo nível, de acordo com ele.
Neste sentido, Maluf conta que o IVOC tem feito parcerias e levantado financiamento para criar centros de pesquisa pelo país. A ideia é identificar locais que já possuem certa densidade demográfica e treinar profissionais para aplicarem protocolos de pesquisa, transformando esses estabelecimentos em locais habilitados para estudo. Até o momento já são seis centros criados e a expectativa do instituto é elevar esse número para 50 nos próximos anos.
Ao longo da conversa, Maluf falou ainda da nova política nacional do câncer e afirmou que o texto é bom, mas a implementação na íntegra deve ser difícil. Ao fazer uma analogia com o futebol, ele disse que “queremos ganhar de 10 a zero, mas 2 a zero também é uma vitória”. Durante a entrevista ele abordou ainda os avanços da tecnologia, dos tratamentos e do diagnóstico. Falou também da incidência de câncer aumentando, dos desafios com hábitos saudáveis e a importância da prevenção.
Confira a entrevista a seguir:
No contexto da oncologia, o Brasil está passando por momentos significativos, como a implementação da nova política de câncer e a aprovação de pesquisas clínicas. Como a pesquisa clínica pode mudar no Brasil a partir desse novo projeto de lei?
Fernando Maluf – Esse projeto de lei recentemente aprovado acaba criando mais celeridade para a aprovação de protocolos, considerados muito importantes para os pacientes. Ele torna o Brasil mais competitivo, atraindo grandes farmacêuticas, que possuem as melhores medicações, a procurar o país com mais frequência. Dessa forma, o Brasil participa de modo muito mais protagonista do que no passado, fazendo pesquisa clínica de ponta, beneficiando os pacientes, obviamente se colocando no local que ele merece, que é um local de liderança mundial. Este projeto de lei possui várias nuances, mas uma das mais importantes é que ele acelerará o processo de submissão de um estudo para aprovação ética e técnica. Isso permitirá que os estudos, uma vez considerados eticamente e tecnicamente apropriados, cheguem mais rapidamente aos pacientes.
Para o paciente, isso pode representar mais acesso a novos potenciais tratamentos?
Fernando Maluf – Não tenho dúvida. A medicina do país, nos melhores locais, para mim, hoje, não deve nada aos melhores locais fora do país. Lembrando que o nosso país é extremamente heterogêneo. Temos hospitais filantrópicos, privados e SUS, mas os nossos melhores hospitais conseguem oferecer aos pacientes uma medicina de altíssima qualidade, com um grande calor humano e personalização, não só da doença, mas da pessoa como um todo. Esse é um grande avanço que temos no país, até por uma questão cultural, uma cultura mais latina. Por outro lado, o que existe lá fora de mais importante, em comparação ao nosso país, são os números de protocolos de pesquisa, novas alternativas, ou opções quando o que existe não é bom ou quando já esgotamos o que está aprovado e carimbado como algo que pode ajudar o paciente. A pesquisa clínica é, na verdade, algo extremamente importante e, sim, vai cada vez mais permear o país.
Por quê?
Fernando Maluf – Primeiro, porque o Brasil tem mais de 200 milhões de pessoas. Segundo, o Brasil possui uma biodiversidade que poucos países do mundo têm. Terceiro, e muito importante, o Brasil conta com incríveis pesquisadores e cientistas, muitos deles formados nos melhores centros do mundo. Em quarto lugar, a qualidade dos dados dos estudos realizados no Brasil é extremamente alta. Para termos uma ideia, o FDA audita vários estudos conduzidos no país, e o Brasil obtém nota 10. Portanto, temos uma população muito grande, biodiversidade, incríveis pesquisadores e boa qualidade de dados. Não tenho dúvida de que o Brasil tem hoje todo o conjunto necessário para liderar a pesquisa. A burocracia, sim, é um ponto que impacta, e essa lei vai nos ajudar um pouco mais a destravar esse processo.
Há algum outro ponto de atenção nessa área de pesquisa clínica?
Fernando Maluf – Um outro ponto importante, que tem sido uma missão do Instituto Vencer o Câncer, no qual o Dr. Buzaid e eu somos cofundadores, é que nós temos pouquíssimos centros de pesquisa no país. Um dos projetos, talvez hoje o que chama mais atenção do Instituto, é o Projeto de Amor à Pesquisa. Ele olha para os hospitais do SUS, que têm alta densidade populacional e que não têm pesquisa ao redor, e os qualifica, para além da assistência que eles prestam, para que sejam unidades de excelência de pesquisa clínica. E a partir daí, esse centro vai poder recrutar pacientes para estudos altamente inovadores, onde existem poucas alternativas ou que já se esgotaram as alternativas do dia a dia. E por que isso é tão incrível? Porque conseguimos permitir que pessoas com poucas condições socioeconômicas, que estão dentro do SUS – que é muito bom para algumas coisas, mas na área do câncer é claramente deficitária – sejam incluídos. Isso significa que essa pessoa terá a oportunidade, dentro de um protocolo de pesquisa, de ser tratada com o melhor padrão existente no mundo ou com algo que pode ser ainda melhor do que o existente, e isso será conhecido nos próximos dois a três anos. Em outras palavras, estamos realizando o sonho de alguém com poucas condições, sendo tratado como um paciente do Memorial ou do MD Anderson Cancer Center. Imaginamos que, mesmo em lugares com recursos limitados, esses locais consigam oferecer o mesmo tratamento que os melhores centros do mundo oferecem em tempo real.
Já está em curso esse projeto?
Fernando Maluf – Sim, já inauguramos seis centros no país. Um centro no estado do Amazonas, um na Paraíba, em João Pessoa, um no Maranhão, em São Luiz, outro no Pará, em Belém, outro na Bahia, em Feira de Santana, e outro em Mato Grosso, na cidade de Campo Grande. Temos vários pacientes que se encantam com a causa, e já temos agora financiamento para pelo menos mais 14 a 20 centros novos pelo país, onde vamos abrir um edital. Nosso planejamento é que, dentro de dois a três anos, inauguraremos 50 novas unidades de pesquisa em hospitais do SUS e filantrópicos. Ou seja, estamos ajudando a qualificar, a dar o selo, para permitir que aqueles hospitais, que já prestam assistência, se transformem em unidades de pesquisa.
“Mas não é só o paciente que ganha. Isso também gera mais empregos, aumenta a intelectualidade daquela instituição e coloca o Brasil como um país que, tendo múltiplos centros de pesquisa e múltiplos pacientes entrando, se posiciona novamente muito mais como protagonista do que era há alguns anos.”
Quando você fala ‘qualificar’ esses centros, o que exatamente significa ‘qualificar’? Isso envolve treinar ou trazer profissionais de outros centros para lá?
Fernando Maluf – É um pouco de tudo isso. O Instituto Vencer o Câncer, com esse dinheiro dos doadores, e agora tem empresas também interessadas nisso, contrata pessoas que são as pessoas básicas para um centro de pesquisa para cada um desses locais: data managers, enfermeiras de pesquisa. Existe todo um processo de educação continuada para os profissionais do próprio hospital. E existe todo o monitoramento do processo em termos de como começa o recebimento do estudo, comissão de ética, como é que se preenche o CRF. Quer dizer, toda uma construção para que consigamos, com qualidade, fazer esse centro poder ser um centro de pesquisa. A partir desse momento, o Instituto cobre os custos do centro de pesquisa de cada um desses centros por dois anos. Nós criamos um momento regular com as indústrias farmacêuticas para que elas comecem a visualizar um hospital, que até então era um hospital de assistencial e não de pesquisa, como centro de pesquisa, e checarem se o hospital preenche os critérios para fazer parte daquele estudo. Hoje, já temos seis lugares que estão fazendo pesquisa, e que até dois anos atrás isso não acontecia.
E é um projeto escalável.
Fernando Maluf – É um projeto incrivelmente escalável, que você não tem que construir um prédio, comprar uma máquina, mas precisa contratar pessoas qualificadas e executar todo o fluxo. É um projeto que conseguimos escalonar, porque é um projeto muito barato para o impacto social que gera. E para o SUS, qual é a grande vantagem? Você eventualmente salva a guarda do SUS para investimento em outras áreas, porque aquele paciente está no estudo que é completamente pago pela indústria farmacêutica. E com o paciente incluído, é um paciente que o investimento, na verdade, o dinheiro pago pela indústria, paga muito bem, o próprio hospital e o laboratório que o recebe vai ter sua tomografia paga em um preço alto. É realmente um ganha-ganha para todo mundo, e por isso que achamos que esse projeto, por mais que não seja a solução para o SUS, certamente é uma dos potenciais soluções para o nosso sistema de saúde atual.
Acompanhamos o Brasil sofrer um movimento chamado de ‘fuga de cérebros’. Com esse movimento, é possível recuperar esse potencial aqui no Brasil?
Fernando Maluf – Eu não tenho dúvida. Vou citar dois exemplos que mencionei em um congresso na Suíça, de situações em que podemos fazer muita diferença, todas envolvendo a pesquisa. A primeira delas são tumores infrequentes nos países ricos e infelizmente frequentes nos países em desenvolvimento, como o câncer de pênis.
“O estado do Maranhão é o local com a maior incidência do mundo de câncer de pênis. E grande parte da população de pacientes com câncer de pênis, não todos, mas grande parte, são pessoas extremamente pouco favorecidas.”
São pessoas que, em mais ou menos 20% a 30%, não têm nem endereço fixo. São pessoas que têm um tumor que se correlaciona com o HPV, com a questão da higiene, com a falta de cuidado, sem nenhum demérito moral, mas é uma característica epidemiológica. Esse tumor é praticamente inexistente nos Estados Unidos e na Europa. Tem, mas é pouco frequente. E no Brasil, como eu falei, ele é epidêmico. Em lugares pobres, ele chega até 10% dos tumores em homens adultos. Nós fizemos um estudo com 11 centros brasileiros, a maioria ligados ao SUS. Esse estudo foi eleito para a plenária do ASCO, o que é algo incrivelmente meritório para esses 11 investigadores. Esse tumor, com esse número de pacientes estudados, com doença avançada, envolvendo uma nova forma de imunoterapia, esse estudo não seria feito dentro dos Estados Unidos ou da Europa em tempo hábil e recorde como nós fizemos. Então, esse é o primeiro exemplo de que tem tumores que nós podemos liderar e sermos o formador de opinião mundial.
Qual o segundo exemplo?
Fernando Maluf – Envolve tumores que são comuns em todos os lugares, mas que, por situações específicas nossas, conseguimos executar. Vamos começar um estudo nos próximos meses para responder uma pergunta que ninguém nunca respondeu. Alguém que tem um tumor de bexiga profundo, que invade a camada muscular, o tratamento é operar a bexiga, geralmente retirando toda a bexiga, e muitas vezes com a reconstrução – cirurgia que melhorou muito ao longo dos anos, obviamente, mas por melhor que ela tenha sido, ela não é igual a uma bexiga. Mas existem problemas para homens e mulheres que são operados. Há grande evolução da urologia, ótimos urologistas, mas ninguém quer perder a bexiga. Então, há alguns estudos preliminares que fizeram quimio e radioterapia para preservar a bexiga. O ponto é que nunca nenhum estudo comparou as duas modalidades. E quando você não compara algo com algo, você não tem um nível de evidência suficiente para falar que isso é melhor do que aquilo. Nós vamos começar no Brasil, por uma característica do nosso sistema, um estudo entre 300 a 400 pacientes, comparando metade dos pacientes que são operados — que é o tratamento padrão, não no Brasil, mas em vários lugares do mundo —, versus radioterapia e quimioterapia preservando a bexiga. Com a pergunta: será que, se eu mantiver o órgão anatômico e funcionalmente preservado, eu consigo manter as taxas de sucesso do que tirar a bexiga? Se esse estudo falar para mim que operar é melhor, excepcional. Mas se ele me falar que se preservar a bexiga, eu curo tanto quanto tirar a bexiga, nós vamos evitar mais de 300 a 400 mil cirurgias por ano no mundo inteiro.
E o terceiro exemplo?
Fernando Maluf – É o da biodiversidade. Nós vamos começar um estudo, com uma combinação nova em câncer de próstata, um estudo muito interessante, avaliando qual o resultado desse tratamento, em uma população negra brasileira e em uma população hispânica da América Latina. E por que é tão importante isso? Porque no estudo original que foi feito, menos de 2% dos pacientes incluídos eram negros ou hispânicos. Então, a pergunta é: será que esses remédios funcionam tão bem nessa população? Será que eles funcionam melhor, igual, pior? Esse é um outro campo de estudo que nós temos a capacidade de fazer. Com esses três exemplos, eu diria que nós temos aqui um horizonte enorme de oportunidades, para não só fazer, mas liderar outra vez a pesquisa internacional.
Quais são os desafios para que a diversidade seja implementada na prática?
Fernando Maluf – Os investigadores brasileiros estão sendo mais visualizados pelas indústrias farmacêuticas globais, grupos cooperativos médicos e, outra vez, é um trabalho de formiguinha. Acredito que estamos melhorando a nossa reputação. E eu falo que hoje, pelo menos até 3, 4 anos atrás, para cada 20 projetos de pesquisa que eu desenhava, só um era aprovado. Ou seja, meu índice de acerto era 5%. Agora, estamos apresentando nas sessões orais da ASCO. Investigadores brasileiros estão publicando em boas revistas científicas. Vamos devagarinho, começando a permear esse grupo de investigadores. O Brasil deve ter pelo menos 50, 100 investigadores muito bons, para permear outra vez a literatura e os congressos internacionais. E nesse trabalho de formiguinha, a gente passa a ser mais visualizado, o país como um todo, os centros, os médicos. É um processo. E eu brinco que a gente está carregando a pedra pesada, mas para semear o solo das próximas gerações. Quando começarem a fazer pesquisa, vão encontrar o país muito mais maduro, muito mais aberto e muito mais reconhecido pelo que faz. Essas duas próximas gerações vão pegar o Brasil muito mais visualizado, onde as sociedades internacionais, os grupos cooperativos, a indústria farmacêutica, vão perceber que o Brasil tem todo o potencial e eles vão necessitar, na verdade, do Brasil para ser um excepcional local para se fazer pesquisa outra vez, por todas essas qualidades do país: população populosa, biodiversidade, qualidade dos estudos, ótimos centros, incríveis investigadores.
Mudando para a pauta da nova política do câncer. Tivemos a aprovação e agora há o processo de discussão e implementação. Qual sua percepção?
Fernando Maluf – Acredito que o texto é muito bom, muito completo, foi trabalhado a múltiplas mãos, o que é muito importante. Foi trabalhado por pessoas que entendem muito de saúde, de áreas diferentes. Teve, na minha opinião, um exercício muito saudável nessa construção. Mas é um grande desafio a implementação. Claro que quando vamos jogar uma partida de futebol, por exemplo, queremos ganhar de 10 a 0. Mas se ganharmos de 2 a 0, isso é uma vitória para quem estava empatando ou perdendo o jogo. Se eu gostaria que tudo que tivesse escrito fosse implementado, a resposta seria sim. Se eu acho que vai acontecer tudo, acho pouco provável, mas se algumas coisas acontecerem, já fizemos um incrível avanço. A má notícia é que há muitas coisas para serem feitas, muitas diferenças entre público e privado. Mas a boa notícia é justamente que há muitas coisas para serem feitas, porque existe espaço para fazer algo e fazer alguma diferença. Penso que as coisas que têm mais êxito para serem realizadas são as coisas mais práticas, rápidas que podem ser. Quando a gente tem um projeto muito complexo, começamos com coisas mais rápidas que vão dar um resultado e falar: dá para fazer. E passamos para o segundo, para o terceiro.
“Quando temos um projeto muito grande e queremos começar pelo lado mais complicado e a coisa não anda, criamos, entre aspas, um pouco de desânimo, um pouco de pessimismo. Temos o projeto todo e temos que começar com coisas práticas.”
E sobre o financiamento?
Fernando Maluf – Existe hoje também uma grande discussão no Congresso, e há vários deputados envolvidos nisso, como o deputado Weliton Prado, que propôs um projeto de lei para aumentar os recursos governamentais — municipais e federais — destinados à pesquisa, não apenas ao cuidado do paciente com câncer. A ideia é criar um fundo específico para o câncer. Sabemos que, atualmente, o dinheiro designado para a oncologia no país é menor que 0,05%. Ou seja, seria um aumento significativo dos recursos destinados a essa doença, que já é a principal causa de morte no Brasil, em várias partes do mundo, e em algumas cidades do país. Esse financiamento maior, designado para o câncer, é mais uma medida que complementa este projeto recentemente elaborado. Existe uma conjunção de medidas que estão se complementando. No entanto, além da confecção, como será a execução disso? Temos, por exemplo, a lei dos 30 dias e 60 dias, que é maravilhoso. A pergunta é: é cumprida de fato? Quer dizer, alguém está acelerando isso por causa da lei? Precisamos ter leis, mas o segundo grande desafio é como tiramos a lei do papel.
O cenário do câncer tem mudado muito nos últimos anos, com inúmeros avanços. De tudo isso que tem acontecido na oncologia, teve alguma coisa que mais te impressionou?
Fernando Maluf – Tem algumas coisas muito importantes. Se olharmos para a área de diagnóstico, temos testes sendo desenvolvidos em várias plataformas, pelo menos cinco, tentando encontrar um vestígio de tumor anos antes do aparecimento do tumor. Existem várias plataformas que estão sendo estudadas e validadas em outros bancos de dados. Uma dessas plataformas, chamada PanSeer, foi desenvolvida na Califórnia, mas há outras que antecipam o desenvolvimento do câncer, que você consegue detectar anos antes, a nível celular. Então, para mim, este é um grande potencial avanço.
Quais outros destacaria?
Fernando Maluf – Outro grande avanço é o entendimento melhor dos tumores. O entendimento de quais são os marcadores mais importantes para cada tipo, não só de câncer, mas do câncer daquela pessoa. É como se fosse uma digital, cada um tem a sua. O terceiro avanço é a biópsia líquida. Quando alguém é operado para tratar um câncer de mama, é crucial ter a certeza de que aquela pessoa não tem mais nada além do que foi removido na cirurgia. Se ela não tiver mais nada, evitamos tratamentos desnecessários e seus efeitos colaterais, além de economizarmos recursos do sistema. Portanto, a biópsia líquida, com todas as utilidades que oferece, será fundamental. O quarto avanço envolve as terapias.
Quais destaques apontaria na parte de terapias?
Fernando Maluf – Estamos entrando na era das terapias que envolvem os radiofármacos, que são as medicações radioativas. Estamos melhorando as terapias-alvos, que vão especificamente desligar caminhos pelo qual o tumor vai tentar crescer, invadir e criar as metástases. E temos a imunoterapia, que outra vez tem um componente muito importante, porque esse é um leque que se abre de vários tipos de imunoterapia, que vai dessas novas imunoterapias que hoje têm mais de 20 indicações, que vão também dos anticorpos conjugados às drogas que se ligam ao tumor, e quando se liga, joga para dentro dele a quimioterapia, ou seja, não teoricamente tanto na circulação. Falamos que são as drogas com mecanismo de Cavalo de Troia. Nós temos o Car-T Cell, dentre outras. E tem mais um quarto grande bloco, de terapias genéticas. Essas terapias modificam os genes alterados em uma célula, permitindo que ela se reconstitua e que o tumor eventualmente desapareça. Estamos explorando um mundo de tratamentos, cada um com variações.
“Minha impressão é que, ao entendermos melhor os alvos e desenvolvermos medicamentos em diversas abordagens, poderemos obter resultados ainda mais significativos no futuro próximo, comparado ao que temos hoje.”
Sobre prever com bastante antecedência a possibilidade de desenvolver um tumor, quanto falta para chegarmos lá? Já existe algum progresso significativo nesse sentido?
Fernando Maluf – A minha impressão é que nos próximos poucos anos teremos essas duas coisas incorporadas à nossa rotina. No entanto, é importante considerar que com o desenvolvimento de novos testes surgem novas questões, além da questão do acesso. Inicialmente, nenhum desses exames será tão acessível.
Não é como um hemograma?
Fernando Maluf – No final, quando você tem um teste, ele pode ser um pioneiro ou ter dois ou três pioneiros; o custo inicial é alto, mas tende a diminuir. Na verdade, não estamos longe, estamos perto. E isso será muito importante. Se conseguirmos detectar algo em um órgão e tratá-lo profilaticamente, isso abrirá uma nova discussão e, eventualmente, poderemos curar um tumor potencialmente letal com pouco tratamento, o que seria magnífico. Por exemplo, o teste PanSeer possui uma acurácia de 91% para prever tumores no intestino, fígado, esôfago e pulmão – tumores graves. Agora, imagine se conseguirmos identificar algo nesse órgão e tratá-lo de forma focal.
E aquele debate sobre o momento em que o paciente não precisará mais visitar o oncologista, pois o câncer deixará de ser uma preocupação da oncologia. Estamos nos aproximando desse ponto?
Fernando Maluf – Acredito que sim. Por exemplo, uma pessoa que foi operada para tratar o câncer de mama ou de intestino, e não apresenta outras características relevantes ou defeitos genéticos hereditários, teoricamente, após a completa cura, poderia continuar o acompanhamento com seus médicos generalistas. Não vejo necessidade de consultas regulares com um oncologista para um acompanhamento clínico geral. Um médico generalista seria mais indicado, pois poderia identificar uma variedade maior de questões de saúde que o oncologista poderia não observar tão prontamente após a remissão do câncer.
Quando discutimos o câncer, estudos apontam um aumento em pessoas mais jovens. Existe alguma orientação específica que podemos fornecer para essas gerações mais jovens?
Fernando Maluf – O câncer está crescendo em todo o mundo, e o Brasil não é uma exceção. Não se trata apenas de uma relação direta com a expectativa de vida aumentada. Nas últimas décadas, a expectativa de vida do brasileiro aumentou em mais de 20 a 25 anos. E, naturalmente, quanto mais avançada a idade, maior a suscetibilidade ao câncer, infarto e AVC. Mas não é apenas isso. Acredito que nossa capacidade adaptativa e de proteção do corpo é muito mais lenta do que a capacidade de evolução da modernidade. Portanto, é verdade que os mais jovens estão apresentando mais casos de câncer. Essa é uma percepção compartilhada por diversos estudos e também uma observação pessoal. Além disso, há a questão da obesidade ou sobrepeso. Nos últimos 40 anos, o número de pessoas obesas no Brasil aumentou em 10 vezes. O sedentarismo também é um fator significativo, com um aumento substancial. Atualmente, as pessoas passam horas usando o celular, enquanto o nível de atividade física diminuiu consideravelmente. A dieta também mudou radicalmente.
“Hoje em dia, é muito mais caro consumir alimentos orgânicos do que ultraprocessados. Essas mudanças na dieta e no estilo de vida estão impactando diretamente na incidência do câncer.”
Assim como a obesidade e o cigarro?
Fernando Maluf – A obesidade é apenas uma parte do problema. A dieta desempenha outro papel crucial. Mesmo aqueles que não são obesos, mas consomem alimentos ultraprocessados regularmente, enfrentam um risco significativo. Esta tríade é tão relevante nos dias de hoje que sua importância rivaliza com a do cigarro no passado, quando era considerado o maior vilão devido ao câncer. Hoje, essa tríade praticamente se equipara. Além do cigarro, temos agora um novo grande problema: o vape. Este dispositivo é sinalizado como uma ameaça epidemiológica em quase todos os países do mundo, sendo ilegal no Brasil. O vape apresenta o perigo das milhares de substâncias carcinogênicas, além dos aromatizantes utilizados para melhorar o sabor, que também são carcinogênicos. O aspecto visual atraente desses produtos pode induzir especialmente os jovens a consumirem grandes quantidades. Eu vi tomografias e raios-X de jovens que fumam vape. Se você não soubesse a idade, diria que têm 70 anos, devido aos efeitos da combustão, do aroma e do calor. O vape é um fator crucial. Além disso, há a poluição. Um estudo publicado no Launceston College, envolvendo sete países europeus, mostra uma relação entre a quantidade de poluentes e o câncer de pulmão em mulheres. Interessante é que eles analisam as ruas onde essas pessoas moram. Quanto mais carros passam em uma rua, maior a chance de câncer de pulmão. Quando você combina tudo isso, o câncer aumenta no mundo, tanto em idosos quanto em jovens. Na minha opinião, os jovens são uma consequência do aumento geral do câncer, que vai além da expectativa de vida, mas está diretamente relacionado ao meio ambiente.
A indicação é tentar manter o estilo de vida mais saudável possível.
Fernando Maluf – Estilo de vida saudável, mais uma vez, requer disciplina e amor próprio. Porque, mais uma vez, precisamos amar e cuidar do nosso corpo. Eu digo que consertar um copo quebrado é muito mais complexo do que limpá-lo todos os dias. Então, acho que as pessoas precisam entender isso. E é importante considerar que algumas questões relacionadas ao estilo de vida estão ligadas ao nível socioeconômico. Como mencionei, hoje em dia é caro comer bem, enquanto é barato comer mal. Esta parte é muito complexa e envolve discussões sobre impostos para alimentos processados, impostos mais altos para álcool e tabaco, e benefícios fiscais para a agricultura. Mas há coisas que não dependem tanto da condição socioeconômica. Por exemplo, uma caminhada ou exercício de 30 minutos a uma hora por dia é viável para todos. Não fumar também, especialmente considerando que fumar implica em gastar dinheiro. O mesmo se aplica ao álcool. Portanto, há hábitos que até mesmo as pessoas menos favorecidas podem adotar. E tem coisas como a dieta, que aí é mais difícil. Precisa de um plano governamental para colocar na mesa do brasileiro e das crianças e adolescentes algo mais saudável. De cada cinco crianças obesas, quatro continuam obesas durante a vida. E muitas delas são obesas porque as escolas, muitas vezes, não têm uma orientação tão interessante na compra da merenda escolar.
Falamos das inovações quando pensamos no futuro da oncologia e nesse potencial de tratamento. A pergunta agora é o contrário: no que não estamos conseguindo avançar? Quais são as zonas cinzentas da oncologia onde é difícil pesquisar?
Fernando Maluf – Talvez o maior desafio hoje seja como vamos curar pacientes com doença muito avançada. O motivo disso é porque, à medida que a doença se prolifera, as células vão ficando um pouco diferentes das células originais. Existe um estudo muito interessante publicado no New England Journal of Medicine, onde em um paciente com câncer de rim foram feitas biópsias em áreas diferentes do tumor, revelando diferenças moleculares no mesmo tumor e no mesmo paciente. Isso significa que vamos ter que encontrar, para cada tipo de tumor de cada paciente, um conjunto de medicações que seja tolerável, mas que silencie o tumor de todas as maneiras possíveis.
A inteligência artificial pode ajudar?
Fernando Maluf – Muito. É um grande desafio trabalhar através do entendimento melhor da doença nesse sentido. A outra questão vai ser o diagnóstico precoce, da validação desses testes que é extremamente importante. Mas, além de tudo, eu falo que tecnologia só é perfeita quando ela é entregue para grande parte das pessoas. Não adianta termos coisas incríveis para poucos enquanto muitos não têm nem 1% disso. Tecnologia, para mim, só tem o ciclo completo quando ela chega na ponta. Se ele chegar só para 1% das pessoas, nós temos globalmente falando só 1% de beneficiados.
O quanto a inteligência artificial ainda é apenas um sonho e o quanto já está sendo aplicado na prática?
Fernando Maluf – Vou dar um exemplo: há dois estudos publicados no Lancet Oncology que mostram que uma máquina bem treinada pode diagnosticar tumores benignos e malignos de próstata com mais acurácia do que o patologista, ou até mesmo diagnosticar o tipo de tumor com mais precisão. Ninguém está dizendo que não precisamos de patologistas. Eles são extremamente importantes. Mas estamos sugerindo que, por exemplo, em áreas onde não há um super patologista disponível, poderíamos eventualmente recorrer a essa estratégia para preencher essa lacuna de recursos. Isso também se aplica à radiologia.
“A inteligência artificial tem muitas vantagens. Ela pode aumentar a precisão em algumas situações, pode contribuir para a percepção do diagnóstico e de novos tratamentos, mas principalmente em áreas com infraestrutura limitada, ela pode ser uma solução significativa e manter a alta qualidade do diagnóstico, seja na patologia ou na radiologia.”
Qual seria o próximo passo, talvez para direcionar o tratamento de forma mais eficaz?
Fernando Maluf – Não há dúvida de que ela pode caracterizar uma alteração específica de um tipo de tumor não apenas em um banco de dados de 100 pacientes, mas sim de 5000 pacientes, permitindo a avaliação de uma droga para essa situação específica. A inteligência artificial é uma realidade hoje, não é mais apenas o futuro. O desafio está em como podemos aproveitá-la da melhor forma. E, obviamente, temos um vasto horizonte de novas possibilidades sendo estudadas e que serão implementadas.
Diante dessas possibilidades, estamos avançando em direção a uma medicina cada vez mais personalizada?
Fernando Maluf – Total. Acredito que esse é um ponto importante. A pergunta é: se eu sei de antemão que aquela pessoa tem uma alteração e que ela torna aquele remédio o melhor, por que vou usar outro? Por que vou gastar dinheiro com remédio que sabidamente não funciona? Por que vou atrasar o melhor tratamento, por que vou colocar efeitos colaterais? Então, no fim do dia, as estratégias estão melhorando, mas precisamos entender para quem a chave daquele chaveiro que se encaixa.
No cenário Brasil, para onde estamos indo? O que precisamos fazer para melhorar essa nossa situação na oncologia em vários aspectos e como você vê esses próximos passos até no curto prazo mesmo?
Fernando Maluf – Penso que a questão do projeto de políticas nacionais do câncer é um passo interessante. Mesmo que não implementemos tudo, parte já será uma enorme vitória. Conseguimos aumentar o financiamento para a saúde e discutimos todos os protocolos oncológicos de custo-efetividade. A questão da APAC é algo de muitos e muitos anos, não atualizada. Acredito que isso precisa ser rediscutido. Uma parte muito importante é que equipamos o país e criamos centros de alto volume para tratar de modo curativo tumores potencialmente curáveis. Por que falo isso? Fizemos um estudo recentemente e o enviamos para publicação. Como spoiler, a curabilidade de quem está no SUS com câncer de próstata localizado é muito pior do que para quem está no sistema privado. Não estou falando de falta de remédio. Se a curabilidade é pior, temos alguns motivos, mas um deles, que é o mais provável, é que em vários locais do país pacientes com tumores curáveis são tratados paliativamente. Por quê? Porque sabidamente 70 mil pacientes por ano não fazem radioterapia quando ela está indicada e sabemos que milhares de pacientes não são operados quando têm indicação cirúrgica.
Estamos deixando de curar?
Fernando Maluf – Nós não estamos defasados apenas na falta de remédios, estamos deixando de curar pessoas que, se tratadas, poderiam viver mais 30 ou 40 anos. Quem tem uma doença muito avançada, às vezes, pode ter a vida prolongada um pouco mais com medicamentos. Não estou falando apenas de prolongar a vida, mas de mudar a história da vida de alguém. Esse é um ponto importante: criar mais centros de excelência, como na Índia, focados especificamente em uma doença ou procedimento. Além disso, é extremamente importante digitalizar o país. Primeiro, porque quando temos informação, sabemos como trabalhar as deficiências. Segundo, quando entendemos as deficiências, conseguimos ser mais custo-efetivos. Portanto, seria essencial, e para mim um passo crítico, termos prontuários digitais para homens, mulheres, adolescentes e crianças brasileiras, para monitorar, evitar desperdícios, reduzir gastos desnecessários, aumentar a efetividade e implementar medidas preventivas mais eficazes.
Além dessas pautas que você mencionou, o que mais precisamos ficar de olho aqui no Futuro da Saúde?
Fernando Maluf – Prevenção. Por exemplo, um projeto de lei que está começando a tramitar agora é a vacinação. Eu tenho uma dificuldade emocional de ver: semana retrasada, duas pacientes que morreram de câncer de colo de útero vieram me procurar com uma doença muito avançada, uma de 28, outra de 31 anos. Ou seja, são duas pessoas que, se tivessem sido vacinadas, não teriam desenvolvido esse câncer. Portanto, a prevenção de várias doenças relacionadas ao vírus é muito importante. Para hepatite B, câncer de fígado, HPV, nós temos cinco cânceres relacionados: colo de útero, pênis, vulva, canal anal e orofaringe. Apenas 30% a 40% das crianças e adolescentes são vacinados, então o caminho para fazer isso acontecer agora é criar um projeto — que já está em andamento — para que tenhamos o dia da vacina, em quatro dias nas escolas. O governo deve montar uma estrutura, federal, estadual e municipal, porque as escolas são locais onde as crianças estão presentes. Quase ninguém deixa de se vacinar contra o HPV por causa do preconceito, isso não é o ponto importante. Talvez haja algumas exceções, mas a vacinação é essencial. As pessoas não se vacinam, nem levam suas crianças para serem vacinadas, porque não sabem, não lembram ou porque, para vacinar, o pai e a mãe têm que tirar um dia de trabalho, e isso nem sempre é possível na realidade das pessoas.
No campo da prevenção, o que mais pode ser feito?
Fernando Maluf – A questão da vacina, para mim, é prioritária, assim como programas de governo para o tratamento da obesidade infantil, adolescente e do adulto. São extremamente importantes programas de incentivo ao exercício físico, assim como a questão da taxação de impostos para produtos que causam câncer. O cigarro já tem essa taxação. Ultraprocessados e benefício fiscal para alimentos orgânicos são medidas que poderiam ajudar a tornar esses alimentos mais acessíveis. Acredito que os programas de prevenção são fundamentais na minha visão. Não aceito que o Brasil tenha quase 18 mil casos de câncer de colo de útero por ano, enquanto a Austrália tem apenas 250, sendo que a Austrália é do tamanho do Brasil. Para mim, isso é um dos tópicos de interesse. Gastamos 20 vezes mais com tratamento do que com prevenção, olhando para o indivíduo. Então, não é só uma questão de ser melhor, é também muito mais barato.
Acredita que isso está dentro das prioridades do governo?
Fernando Maluf – Acho que sim. Esse é um governo que está olhando para a saúde como um todo. A nossa ministra é extremamente competente. A pergunta principal é: o cobertor é curto e como é que nessa matemática vamos cobrir da melhor forma a maior parte do corpo. Acho que nesse governo, e nos futuros governos, espero que esse olhar seja muito importante. Óbvio que eu olho para a área do câncer, mas eu entendo que o indivíduo é um todo. Acredito que sim, o câncer vai ter que ser olhado com cada vez mais carinho, não porque é a área que eu faço, mas porque, outra vez, os números estão mostrando que já é em algumas cidades do país e vai ser nos próximos anos a causa número 1 de mortalidade do brasileiro e da brasileira.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.