Ruas habitadas por ‘pessoas zumbis’, que utilizam fentanil e, em muitos casos, morrem por overdose. Estas cenas são cada vez mais comuns em muitas cidades dos Estados Unidos, com vídeos que viralizaram na internet. A poderosa droga é hoje, inclusive, considerada um problema de saúde pública no país. Mesmo em pequenas doses, pode ser mortal. Mais de 150 pessoas morrem todos os dias de overdoses relacionadas a opioides sintéticos como o fentanil, segundo o CDC.
O tema tomou tamanha proporção que virou uma das principais pautas do encontro bilateral entre o presidente Joe Biden e o líder chinês Xi Jinping em 15 de novembro, em São Francisco, EUA. A ideia é buscar medidas para aumentar o controle sobre os fabricantes de insumos chineses – os componentes por eles produzidos são utilizados para a fabricação da droga.
No Brasil, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), fentanila é uma substância analgésica narcótica e de uso controlado, constante da Lista A1 (Lista das substâncias entorpecentes) da Portaria nº 344/1998 do Ministério da Saúde. Atualmente, no Brasil, há 11 registros válidos para a substância fentanila, com medicamentos registrados por nove empresas distintas.
Contudo, a primeira apreensão de fentanil ilegal foi realizada em março, no Espírito Santo, e acendeu um alerta sobre o opioide estar sendo comercializado de forma ilícita no país. As apreensões feitas no Brasil até agora (Espírito Santo, Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro) são acompanhadas pelos pesquisadores e autoridades policiais.
Fentanil no Brasil
Francisco Inácio Bastos, pesquisador titular do Instituto de Comunicação e Informação em Saúde (Icict/Fiocruz), foi um dos autores do artigo “Reports of rising use of Fentanyl in contemporary Brazil is of concern, but a US-like crisis may still be averted”, publicado em maio na revista The Lancet Regional Health – Americas. O texto fala sobre o crescente uso da droga e traz importantes medidas que o Brasil pode adotar, por meio de autoridades e órgãos de regulação, para controlar a utilização de medicamentos.
Ele comenta que, embora nos Estados Unidos seja a quarta onda de fentanil, no Brasil é uma situação recente. “Precisamos de dados oficiais para ter uma ideia do crescimento de venda”, pontua. Para Bastos, aparentemente existe um mecanismo de desvio. Por isso, os pesquisadores mantêm diálogo com a Anvisa e o Ministério da Justiça para tentar entender qual é o processo de dispensação da substância:
“Com serviços mal regulados, pode acabar na rua. A impressão é que esses desvios não acontecem nas grandes unidades porque há vigilância. Pode ser que esteja acontecendo em unidades de menor porte, com regulação mais fraca. Também é difícil controlar cinco mil municípios.”
Para tanto, ressalta que duas frentes importantes são os serviços de vigilância bem feitos e a atuação das autoridades policiais, envolvidos de forma integrada.
O pesquisador da Fiocruz acredita que a curto prazo pode não haver problema de saúde pública porque o poder de compra dos brasileiros é menor. Entretanto, alerta sobre a necessidade de bloquear as substâncias que estão na rota de síntese – impedir precursores da venda de substância –, assim como observar as experiências já ocorridas nos EUA que trazem lições importantes: “Há publicações e relatos. Precisamos olhar para isso”, diz.
Como o Brasil pode evitar essa crise?
Para apoiar a causa, a Diretoria Colegiada da Anvisa decidiu, em março deste ano, incluir três substâncias usadas na produção de fentanila (-AP; 1-boc-4-AP e Norfentanil) na lista de substâncias precursoras de entorpecente/psicotrópicos da Portaria 344/1998.
Em nota, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) disse que desenvolve uma série de ações para controlar a expansão do uso indevido do fentanil no país, começando pela institucionalização do Subsistema de Alerta Rápido sobre Drogas (SAR).
O SAR, segundo a pasta, é um instrumento de vigilância que agrega dados epidemiológicos das áreas de saúde e segurança pública, produzindo informações sobre drogas e permitindo a identificação mais rápida de Novas Substâncias Psicoativas (NSP) no Brasil. É coordenado pela Senad e composto por representantes da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp/MJSP), Polícia Federal (PF), Ministério da Saúde, por meio da Anvisa, e Ministério da Fazenda, por meio da Receita Federal do Brasil (RFB). Conta, ainda, com a colaboração de instituições federais, estaduais e municipais, como polícias civis e científicas, secretarias de segurança e saúde, Centros de Assistência Toxicológica (CIATox) e universidades.
Na mesma nota, a Senad informou que o SAR está sendo fortalecido pelo governo para produzir dados qualificados sobre o consumo e o tráfico de novas drogas no país, “visando, a partir de eventuais alertas decorrentes de uma nova droga cuja difusão se destaque das demais, propor formas de atuação no combate ao tráfico e políticas de prevenção, redução de danos e apoio aos usuários”.
Ação que também está sendo feita pelo Departamento Estadual de Investigações sobre Entorpecentes (DENARC) da Polícia Civil do Estado de São Paulo, que também acompanha o uso ilegal no Brasil. Paul Henry Bozon Verduraz, Delegado de Polícia Divisionário da Assistência Policial, disse ao Futuro da Saúde que o Denarc segue atuando em consonância a suas atribuições legais, promovendo dentre outras tarefas a repressão ao tráfico de drogas, e que “há sim uma integração entre órgãos de segurança e saúde para discutir formas de enfrentamento do problema”.
Explicou ainda que, em São Paulo, há o Centro Integrado de Comando e Controle Regional (CICCR) – onde se reúnem cerca de 60 órgãos municipais, estaduais e federais de diversas áreas para prevenção e enfrentamento de situações ligadas ao tema. Além disso, ressaltou que o Denarc já participou de reuniões com o tema fentanil.
“As apreensões que ocorreram em São Paulo foram esporádicas e decorrentes de desvios ou subtrações do sistema de saúde, onde o fentanil é distribuído após a regular importação, já que não é produzido no Brasil. Existe um rigoroso monitoramento sobre o eventual crescimento nos casos, que, no entanto, por ora, não vem ocorrendo”, pontuou.
O pesquisador Francisco Inácio Bastos ainda analisou outra questão, que futuramente pode se tornar rotina: realizar a apreensão combinada com toxicologia. “É preciso analisar o que tem ali. Esse mercado é muito dinâmico. Não sabemos de onde está entrando a substância porque não estamos testando. Elas entram num lugar, mas ninguém sabe por onde”, alerta. Para ele, o serviço de vigilância integrado é fundamental: “A Anvisa não vai conseguir realizar esse trabalho sozinho. É necessário juntar órgãos de segurança, institutos de IML, além de fazer um trabalho de educação para a população”.
Como funciona o fentanil
O fentanil é um poderoso opioide sintético comumente usado para aliviar dores intensas em pacientes submetidos a cirurgias de grande porte. Foi desenvolvido na década de 1960 como uma alternativa aos opioides naturais, como a morfina, para alívio da dor. Mas apesar do seu uso médico legítimo, o fentanil tornou-se uma droga ilícita cada vez mais comum devido à sua potência e efeitos viciantes.
O uso indevido dessa substância pode ser extremamente perigoso e até fatal, já que o fentanil destaca-se por sua notável potência, sendo aproximadamente 100 vezes mais eficaz do que a morfina. Alvaro Pulchinelli, médico toxicologista e patologista clínico e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial (SBPC/ML), relata que o fentanil, inicialmente concebido para aliviar dores intensas, é uma substância que age como um depressor do sistema nervoso:
“Em outras palavras, quando chega ao cérebro, ele se conecta com os receptores, liberando, entre outras substâncias, dopamina no organismo. O resultado é uma sensação de relaxamento, bem-estar, calma, prazer e a redução da dor e da ansiedade. No entanto, o fentanil também acarreta uma diminuição da atenção e da frequência respiratória. O tronco cerebral, responsável pelo controle da respiração, possui receptores opióides. Quando eles são sobrecarregados com fentanil, é possível que a respiração pare.”
Para Pulchinelli, se usado de maneira inadequada, o fentanil pode facilmente levar a uma overdose, representando um sério risco de morte, dependendo da sensibilidade individual. Dessa maneira, em caso de suspeita de intoxicação, é fundamental buscar assistência médica, uma vez que o efeito pode se manifestar de maneira imediata, com risco iminente de depressão respiratória: “Não há ações eficazes que possam ser tomadas fora de um ambiente hospitalar. Portanto, é de extrema importância procurar ajuda médica imediatamente, aumentando as chances de identificar a substância envolvida”, explica.
A história do fentanil nos Estados Unidos
A substância chegou às ruas dos Estados Unidos na década de 1990 e durante a pandemia espalhou-se à velocidade da luz. Hoje, o cenário é desafiador. Por lá, segundo o DEA (Drug Enforcement Administration), a maior parte do fentanil vem de ingredientes fabricados na China, prensados em comprimidos ou embalados em pó, e contrabandeados do México por cartéis de drogas. Ou seja, a produção e distribuição do fentanil são geridas pelo crime organizado, que possui laboratórios ilegais nestes países.
Esta tendência tem sido impulsionada, em parte, pela combinação do fentanil com outras drogas, como o álcool, a heroína ou a metadona. E o aumento nas mortes por fentanil e estimulantes constitui a “quarta onda” na longa crise de overdose de opióides nos Estados Unidos, com o número de mortes aumentando vertiginosamente.
Pesquisa publicada na revista científica Addiction revelou que a proporção de mortes por overdose nos Estados Unidos envolvendo fentanil e estimulantes aumentou mais de 50 vezes desde 2010, passando de 0,6% (235 mortes) em 2010 para 32,3% (34.429 mortes) em 2021, ano que estimulantes como a cocaína e a metanfetamina tornaram-se a classe de drogas mais comum envolvida na overdose de fentanil em todos os estados dos EUA.
O artigo aponta que a crise dos opioides nos Estados Unidos começou com um aumento nas mortes por opioides prescritos (primeira onda) no início dos anos 2000 e por heroína (segunda onda) em 2010. Em 2013, um aumento na overdose de fentanil sinalizou a terceira onda. A quarta onda, overdose de fentanil com estimulantes, começou em 2015 e continua a crescer.