Fátima Gerolin, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz: “Qualidade, segurança e experiência do cuidado dependem de um modelo assistencial eficaz”
Fátima Gerolin, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz: “Qualidade, segurança e experiência do cuidado dependem de um modelo assistencial eficaz”
Em edição especial do Futuro Talks, a diretora-executiva assistencial Fátima Gerolin fala da importância do modelo assistencial para oferecer a melhor experiência possível para o paciente
Para um hospital funcionar, várias engrenagens precisam girar em harmonia. Da estrutura física e tecnológica até o desenho de processos, diretrizes e treinamento de todos os profissionais envolvidos, tudo impacta na qualidade, experiência e segurança do paciente. A orquestração disso tudo de maneira objetiva, formal e transparente recebe o nome de modelo assistencial, tema do mais novo episódio especial de Futuro Talks, que recebeu Fátima Silvana Furtado Gerolin, diretora-executiva assistencial no Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
Graduada em enfermagem pela Escola de Enfermagem da USP, mestre em saúde do adulto hospitalizado e doutora em ciências, Fátima é uma das responsáveis por desenhar e implementar, em 2015, o modelo assistencial da instituição em que atua. E não é tarefa fácil: segundo ela, todos os elementos precisam estar conectados para que tudo funcione adequadamente. A cultura da organização precisa ser levada em conta, pois os pacientes têm uma expectativa de receber um cuidado de acordo com a experiência da instituição que escolheu, ao mesmo tempo em que os profissionais que nela atuam absorvem o modelo mais fácil e aplicam isso de forma mais natural no dia a dia.
A autora do livro “O que aprendi cuidando de você” conta durante a entrevista que o modelo assistencial está intrinsicamente ligado ao conceito de paciente no centro do cuidado. Por isso, no Oswaldo Cruz, de acordo com Fátima, este modelo foi desenvolvido para que os profissionais criem conexão com os pacientes, pratiquem a escuta ativa e os incluam na tomada de decisão – fato que contribui no aumento do engajamento do paciente com sua própria saúde.
Ao longo da conversa, Fátima abordou ainda iniciativas da instituição para melhorar a jornada de atendimento – como os conselhos consultivos formados por pacientes e familiares –, a importância da transparência com as informações e necessidade de investir na formação dos profissionais, dos experientes às novas gerações, que precisam cada vez mais desenvolver habilidades sociais, as chamadas soft skills.
Confira a entrevista em:
Para começar, como podemos traduzir o que é um modelo assistencial?
Fátima Gerolin – O hospital é uma das organizações mais complexas de se gerir. Neste contexto, modelo assistencial nada mais é a maneira como articulamos os recursos físicos, materiais e humanos, além dos processos, para fazer a entrega do cuidado. Cada hospital tem um formato, um modelo, uma maneira de chegar na ponta, lá no paciente. Isso inclui todos o envolvimento de todos os profissionais que atuam: médicos, enfermeiros, técnico de enfermagem, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo etc. E é também como articulamos a maneira como estas pessoas vão entregar aquilo que o paciente mais precisa, que é o cuidado da sua saúde. Tudo isso tem um método por trás. No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, que é a experiência que eu tenho, temos um modelo que se estabeleceu em 2015 e que leva muito em conta a cultura da organização. A cultura tem que ser levada em consideração, pois o paciente também espera algo de nós. Obviamente que toda a parte científica, técnica, a prática baseada em evidência, isso tem que acontecer, mas além disso, muito mais. Só para dar um exemplo, quando falamos no modelo assistencial do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, o paciente e a família estão no centro do cuidado. Então, uma das regras é que os profissionais estabeleçam um vínculo, uma relação de confiança com os pacientes. Para que isso aconteça, temos que fazer organizar muitas coisas que antecedem a entrega do cuidado. Por exemplo, organizamos para que os mesmos profissionais cuidem dos mesmos pacientes enquanto ele estiver ali na instituição. Isso vai fortalecendo a relação e vai, com certeza, fazer com que ele tenha um melhor resultado.
Qual a importância dessa relação profissional-paciente e de se buscar uma conexão?
Fátima Gerolin – Na verdade, quando abordamos a questão da relação entre o paciente e o profissional de saúde, estamos tratando de uma verdade essencial. Acredito profundamente nisso, pois é uma realidade inerente à vida. Todos nós, enquanto seres humanos, somos mortais e suscetíveis a doenças, assim como nossas famílias. Se ainda não passamos por isso, é provável que em algum momento enfrentaremos uma situação desse tipo. A abordagem que procuramos transmitir aos profissionais e aos alunos é compreender cada vez mais as expectativas do paciente em relação ao seu cuidado. Embora os protocolos técnicos e científicos sejam fundamentais, a relação e a forma como o paciente deseja ser cuidado exigem que desenvolvamos essa competência de perceber suas necessidades e agir de acordo. Existem pessoas que preferem menos interação e toque, entre outras preferências. Por outro lado, algumas gostam de conversar e compartilhar aspectos de suas vidas. Quando nos formamos, por exemplo, não estamos completamente preparados para abordar aspectos como esses, que têm um valor imenso.
Nos últimos anos há uma tendência de um olhar mais voltado para a experiência do paciente. Como que você vê esse movimento?
Fátima Gerolin – Essa questão é relativamente recente na saúde. Falar de experiência do paciente é cada vez mais inserir ele e a família na tomada de decisão sobre sua saúde. É explicar o diagnóstico, quais são os tratamentos possíveis e envolvê-lo na tomada de decisão. A tendência é a pessoa aderir melhor aos tratamentos se ele estiver envolvido, compreender e ajudar na decisão do que ele vai fazer. Ele tem, inclusive, o direito de não querer fazer uma cirurgia, não querer fazer um tratamento. É uma decisão individual. Então, a experiência da pessoa, independente do contexto dentro do hospital, é extremamente valorizada. Passar por um hospital não precisa ser traumático. De novo, somos todos seres humanos e em algum momento a gente vai passar por isso. E, normalmente, uma situação de doença ou de um diagnóstico é de extrema vulnerabilidade. Temos que atenuar sofrimentos de uma forma mais simplificada. Então, melhorar a experiência do paciente é diminuir sofrimentos, é fazer com que a pessoa tenha uma passagem por aquela situação o mais leve possível.
E isso também exige um certo nível de educação do próprio paciente?
Fátima Gerolin – Isso é verdade. E nos últimos tempos as pessoas têm mais acesso à informação. Então, elas vão ler muita coisa na internet sobre seu diagnóstico, tratamentos propostos. O paciente tem informação. Por isso hoje em dia se fala muito do direito do paciente. Um dos principais é que ele tem o direito de saber o que ele tem, de tomar decisões. Cada vez mais ele vem bem informado e temos o dever de dar mais informações para que ele tome a melhor decisão e siga da forma que acredita ser o mais adequado. Mas ele tem que ter orientação e o encaminhamento correto. Isso sempre está em primeiro lugar.
Você tem exemplos práticos de formas de garantir que a voz do paciente seja realmente ouvida na prática?
Fátima Gerolin – Uma maneira que temos de ouvir o paciente é primeiro ter um modelo, inclusive, que estimule, eduque, ensine os profissionais a saber escutar, no sentido de ouvi-lo e ter ações a partir daquilo. Por exemplo, nós temos um conselho consultivo de pacientes e familiares. Essa é uma forma de ouvir os pacientes. Mas, na essência do cuidado, ouvir o paciente não significa simplesmente ele estar falando e você ouvindo. É, de fato, ter uma escuta ativa presente, estar inteiro na hora que está com o paciente e com a família, poder ter atitude de acordo com aquilo que ouviu. Mesmo em relação a sintomas, sempre valorizar uma queixa de dor, de desconforto, ou que ele não está de acordo com alguma coisa que está sendo feita. Até a alimentação. É você ouvir, entender, valorizar e agir mediante aquilo. Essas coisas vão, por exemplo, ajudando a definir o modelo assistencial.
E são pontos mais estratégicos. Eu sempre digo que valorizar a experiência do paciente vem da liderança da organização.
Se acreditam nisso e incentivam, investem – não estou falando só em dinheiro, mas de tempo e discussões nisso –, a organização toda percebe e as coisas acontecem nesse sentido. Você tem que estimular uma cultura e isso leva tempo.
Como funciona esse conselho de pacientes e familiares?
Fátima Gerolin – Temos um conselho consultivo de pacientes familiares desde mais ou menos 2018. A cada dois anos, convidamos pessoas que passaram pela organização, sempre 50% de pacientes e 50% de familiares. Dessas pessoas que se inscrevem, selecionamos cerca de 20 e temos reuniões bimestrais. Nessas reuniões levamos algum tema. Algumas vezes são eles que escolhem previamente ou nós definimos uma necessidade de uma discussão, de uma mudança que precisa ter no hospital.
Algum exemplo prático que veio do conselho?
Fátima Gerolin – Por exemplo, um dos temas que nós discutimos numa época foi o manual de orientação do paciente em tratamento oncológico, por exemplo. Achávamos aquele manual sensacional, com toda orientação, manutenção de catéter, alimentação e tal. Fizemos de uma forma organizada grupos de trabalho naquela reunião e eles falaram que o manual era fantástico, mas deve ser para profissional de saúde, porque eles não estavam entendendo. Há muita coisa que o profissional de saúde planeja, organiza e acha que está ótimo. Só que quem vai receber aquela informação não é quem, de fato, avaliou, compreendeu. Começamos a entender que esse tipo de informação precisa passar pelo público que vai fazer uso daquele conteúdo. Outro exemplo é que eles percebiam uma necessidade de que houvesse voluntários pelo hospital para poder atender e eles indicaram até quais seriam as atividades. Nós nos organizamos e formamos um grupo de voluntários. Hoje, temos quase 80 voluntários na organização e foi uma ideia deles. Na pandemia, fazíamos reuniões com eles online. Alguns usaram o pronto-socorro e deram várias ideias de mudanças nos fluxos, abertura de ficha, de cruzar pacientes. Realmente enxergam coisas que a gente não enxerga.
E nem sempre as ferramentas de avaliação trazem esses insights.
Fátima Gerolin – Exatamente, pois o trabalho é conduzido de maneira sistemática e organizada, seguindo um método. Por exemplo, já discutimos o conceito de qualidade, o qual pode ter interpretações distintas por parte dos profissionais de saúde e dos pacientes. Realizamos dinâmicas, levamos as questões ao grupo e, a partir disso, adaptamos os nossos processos. Apenas para dar uma ideia do interesse das pessoas, na última vez que conduzimos o processo de seleção, tivemos 750 inscrições. É um número considerável de interessados, e cerca de 20 a 25 membros são selecionados, no máximo. Portanto, é um processo seletivo rigoroso, e é, de fato, desafiador fazer a seleção. As inscrições e o processo são realizados totalmente online. Para participar, pedimos que os candidatos expliquem o que os motiva a se envolver nesse projeto. As respostas são notáveis, demonstrando um desejo genuíno de retribuir o apoio que receberam durante seus tratamentos na organização. Isso demonstra um propósito significativo, o que, acredito, é o que agrega tanto valor a essas reuniões. É gratificante fazer parte delas.
Quais são as métricas utilizadas e como elas medem a satisfação dos pacientes e dos familiares?
Fátima Gerolin – O clássico é a pesquisa de satisfação, baseado no NPS, Net Promoter Score, usado para muitas experiências de clientes em outros ramos de atividade. No hospital não é diferente. Valorizamos bastante esse indicador, porque ele aponta se alguém indicaria ou não aquela organização para um familiar ou um amigo. Você consegue avaliar especificamente a área que ele foi atendido, pronto-socorro, ambulatório, ainda a internação. E a partir da pesquisa, há os campos de oportunidades de melhoria. Utilizamos isso fortemente dentro da organização. Além disso, tem ouvidoria, tem SAC. Há busca ativa, de conversar numa amostragem de pacientes, independente se ele tem uma manifestação ou não. Há as redes sociais. Tem o Reclame Aqui. Mas o mais importante é o que a gente faz com isso. É bastante desafiador. Nos casos mais críticos, entramos em contato com o paciente, às vezes o próprio gestor da área, para entender um pouco melhor. Eu mesma já fiz alguns trabalhos com pacientes de pronto-socorro, para entender determinada manifestação crítica que ele fez. Mas mesmo com as ferramentas, o que mais importa é a abertura de quem está na área, principalmente o líder principal, de ouvir, dar feedback, dar o retorno, assumir questões. Porque, muitas vezes, existe uma necessidade de mudar o processo. E em uma situação como essa você reverte a experiência. Ele se sente ouvido.
Às vezes foi uma falha mesmo, você tem que se desculpar e fazer com que o resto da experiência dele seja o melhor possível.
Muitas vezes as pessoas não querem preencher os questionários porque acham que não têm efeito algum. Mas você está mostrando que tem um efeito.
Fátima Gerolin – Ele gera feedback e insights para mudança. Seria bom se as pessoas valorizassem esses questionários. Procuramos fazer sempre um questionário mais enxuto possível. O do pronto-socorro, por exemplo, tem cinco questões.
Agora, pensando em cultura. Qual a importância do engajamento por parte dos profissionais com esses formulários?
Fátima Gerolin – Bom, eu tenho uma experiência muito longa no Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Sou enfermeira de formação. Algo que ajuda muito a manter os valores da organização – e as questões relacionais são muito fortes lá – é a transmissão para aqueles que estão entrando. O comportamento das pessoas que estão trabalhando na organização serve de exemplo para novos profissionais. Então, temos que desenvolver e fortalecer nos profissionais que trabalham na organização e, sempre que entra um novo, ele percebe isso no outro para replicar.
Vai pelo exemplo.
Fátima Gerolin – Vai pelo exemplo. Inclusive, se a pessoa não se acultura de tudo isso, acaba não se adaptando e sai, inclusive. E não estou falando só de profissionais diretamente do cuidado, mas de todos os setores. Então, além dos treinamentos e protocolos, o exemplo é extremamente importante. E foi assim que eu aprendi também desde que entrei na organização. Isso é algo cultivado e demorado. Uma característica que temos, que eu acho que ajudou sempre na nossa cultura, é a existência há mais de 40 anos de um programa de estágio extracurricular, no caso dos enfermeiros. Ele fica ali no quarto ano como estagiário. Quando se forma, já se aculturou e a grande maioria é absorvida. Assim, já traz aquilo muito jovem. E vai aprendendo, desde então, como é a maneira correta de se relacionar com as pessoas. Isso ajuda demais.
Hoje você sente que os profissionais entendem mais o valor disso?
Fátima Gerolin – Tem sido mais desafiador, apesar dos exemplos, inserir isso nos profissionais que estão se formando hoje, da equipe multiprofissional, e as gerações mais jovens. As pessoas querem coisas mais rápidas. É difícil mostrar para elas a importância da relação humana. No passado isso era mais fácil. Hoje, quem tem 23 anos tem outra relação comparado aos que têm 50. E, obviamente, quem tem uma vivência pessoal mais longa, às vezes tem outras experiências pessoais que também vão te transformar a ponto de você compreender momentos de vulnerabilidade do outro na relação do cuidar. O jovem nem sempre tem isso. Ele vai observando, vai vivendo e, ao longo do tempo, vai ficando maduro a ponto de conseguir perceber melhor o outro. Isso não é fácil.
Tenho ouvido muito sobre essas questões do ensino relacionado à saúde, da necessidade de se ensinar mais do que a parte técnica, as chamadas soft skills. Dá para ensinar isso?
Fátima Gerolin – Temos no hospital escola técnica e faculdade de enfermagem. E estamos com um modelo novo que começou esse ano, um curso integral, com um conteúdo bastante amplo. Mas de novo, é no exemplo, na experiência, no observar que conseguimos transmitir. Dificilmente vai transmitir o que é importante na relação humana com teorias. Ele tem que viver algumas coisas, ver essa relação. Dar oportunidades para estágios bem acompanhados e monitorados, acreditamos que isso vai ajudar bastante.
É por isso que estamos empenhados com essa faculdade, agora num período integral, para que o aluno fique imerso com conteúdo teórico e prático, mas vivendo mais a realidade do hospital.
E tem que ser uma vivência de vida real.
Fátima Gerolin – Exatamente. No nosso caso, temos o hospital. O ensino saiu bem depois da existência do hospital. Então, o campo de estágio é o próprio hospital. Ele vai acompanhar os profissionais. E isso é uma grande oportunidade. Uma coisa é você se relacionar com atores ou fazer simulações, que também tem que acontecer, mas previamente. O que a gente percebe muitas vezes, atualmente, com um grande volume de escolas, faculdades e tal, é que as pessoas têm menos oportunidade de viver a realidade na relação com o paciente. Então, o interessante é poder ter, seja na escola técnica ou na graduação, oportunidades de ele estar lá dentro do hospital, na vida real, dentro do centro cirúrgico, no ambulatório, na unidade de internação, na UTI. Isso vai modificar a formação dele. Ele vai desenvolver soft skills também nessa formação.
E hoje, quais são as soft skills para esse cuidado?
Fátima Gerolin – Diria que a principal soft skill está nas questões relacionais. O saber ouvir, comunicação. É na minúcia da relação humana. A situação hospitalar é humano dependente. Sempre foi e sempre será. A tecnologia vem, tem muitos recursos e tem que existir, mas o humano vai sempre estar ali. Então, se a pessoa não conseguir desenvolver certas habilidades, principalmente as soft skills, não conseguirá permanecer na profissão. E há pessoas que desistem. Não é comum, mas existe. Quando a pessoa escolhe ser um profissional da saúde, ele tem uma tendência a gostar da relação humana. Isso vai facilitar muito. Ele já tem algumas características que vão facilitar. Se eu não gosto de lidar com a relação humana, será mais difícil trabalhar na área da saúde.
Até porque um ponto que não comentamos é que o profissional acaba lidando com situações muito difíceis, certo?
Fátima Gerolin – Muito. Você vai desenvolvendo uma maturidade. Por isso que, quando a gente se forma, principalmente quando é muito jovem, não estamos prontos para aquilo. O tempo vai acabar de formar com as vivências. Lidar com pessoas jovens, com diagnósticos que nem sempre vão ter uma cura. São momentos muito difíceis. Você vê as relações familiares dentro do quarto, numa situação de finitude, pessoas jovens com crianças pequenas e assim por diante. É muito difícil. Você não está pronto para isso. Você vai viver, vai se transformar. Isso vai te ajudar a ajudar o outro nessa fase da vida, nesses momentos difíceis.
Queria entrar na questão da segurança do paciente e do chamado erro médico, que ainda é um certo tabu. Como isso funciona na prática? E qual a importância da transparência dentro desse processo?
Fátima Gerolin – É bem importante. E tem tudo a ver com a experiência do paciente. De fato, você não vai para um hospital imaginando que possa acontecer alguma coisa errada. Até o termo, realmente, a gente ouve muito como erro médico, e, na verdade, é um erro no processo da assistência. Ele não é de uma categoria profissional. Muitas vezes é um processo que não favoreceu a segurança do paciente. Um hospital é uma área de risco, sim. Tudo que temos que fazer é em prol de que o mínimo possível de evento adverso ou de um erro atinja o paciente. E o hospital é uma área que isso é possível acontecer, porque ainda é muito humano dependente. Há várias fases, situações que podem levar a um erro. O que é mais importante é, de fato, a transparência, que precisa ser extremamente valorizada. Seja para um erro numa medicação, numa cirurgia. O mais importante, e eu já vivi situações assim, é ter a condição e a competência de tratar o assunto com o paciente e com a família, assumindo aquilo, deixando claro o que vai acontecer com aquele paciente a partir daquele momento, se tem risco ou não, e, se tiver, assumir todas as consequências. Isso é o mínimo que pode ser feito. A pior coisa que pode acontecer para o paciente e para a própria organização é se omitir um erro. Eu já vivi situações em que aconteceu alguma situação de erro, de falha, que o paciente ficou extremamente agradecido ao término. Teve um que até fez uma publicação uma vez no jornal, dizendo o quanto aquilo foi importante para ele, o assumir da equipe. Esta honestidade e transparência é um direito do paciente e é um dever do hospital, do profissional que está na situação. Isso é uma condição mínima de honestidade, transparência e confiança com o paciente.
Isso tem evoluído?
Fátima Gerolin – Está melhorando. Está avançando essa consciência do setor da saúde para a importância da transparência. Antigamente, não podíamos nem falar sobre isso. Hoje em dia, situações como essa de erro ou quase falha são tratadas em reuniões abertas, no auditório. “Aconteceu isso, o que vamos fazer para que isso não aconteça mais?” Isso é extremamente importante e não pode ser omitido. É bom para todo mundo. Para aprendermos com aquela falha e diminuir o máximo possível que aconteça de novo.
E o que pode ser feito para que não se repita?
Fátima Gerolin – Muitos processos. Tem muita coisa de tecnologia que está a nosso favor. Vou dar um exemplo simples, mas que não é fácil de implantar, que é o cuidado beira-leito. O processo de medicação, quanto mais tecnológico e informatizado ele é, melhor vai ser para o paciente, mais seguro. A ponto de a gente chegar no momento de administrar o medicamento, tudo com código de barra. Eu vou com código de barra, com prontuário eletrônico, vou na droga, vou na pulseira do paciente até administrar. Isso impede muitos erros. Se eu for administrar um medicamento errado, ele vai sinalizar que aquele medicamento não é para aquele paciente. Inclusive, vai a etiqueta, o crachá do profissional no momento da leitura desse crachá. Então, você consegue rastrear o processo inteiro.
Por isso no hospital toda hora alguém checa a pulseira.
Fátima Gerolin – Exatamente. Se tivermos condições de usar tecnologia, isso ajuda muito. Fora isso, são duplas checagens, vários profissionais olhando o mesmo processo. Quando é, por exemplo, um medicamento de maior risco na administração, duas pessoas diferentes olharem aquilo e conferem antes. Mas tem outra coisa importante: uma grande barreira de segurança é o próprio paciente. Quando ele questiona um profissional sobre a administração de um medicamento, o profissional tem que valorizar. É direito do paciente saber e ele tem condições de identificar um erro.
As pessoas têm que se sentir livres e empoderadas para sinalizar. Você já pensou que bacana se o paciente percebe que alguém não lavou a mão antes de encostar nele chamar atenção? Ele pode também ser uma pessoa que fiscaliza.
Como você vê o futuro do cuidado?
Fátima Gerolin – É algo bastante desafiador. Primeiro, falando no mundo, alguns países estão com dificuldade, inclusive, de atrair jovens para trabalhar na área da saúde, principalmente na enfermagem. Nós, aqui no Brasil, ainda não temos tanta essa dificuldade, mas precisamos melhorar a formação desses profissionais. Precisamos nos conscientizar que os profissionais da saúde precisam ser muito bem formados, porque é muito complexo você ter um hospital que precisa de muita gente e não ter pessoas bem preparadas para isso. Penso que o futuro é bastante desafiador porque não podemos entender a educação ou mesmo a saúde só como um negócio. Trabalhar na área da saúde é algo que vai muito além. Tem que ser dado muito valor na formação desses profissionais, seja na área pública ou privada. Tem que ser um ensino de qualidade. Pensar no futuro é pensar em ensino, em educação. E, obviamente, temos que valorizar esses profissionais para que os jovens queiram trabalhar na área da saúde. As pessoas precisam ter interesse e precisa ter uma valorização desses profissionais. Quando eu falo em valorização, estou falando de reconhecimento, vai muito além de remuneração. É dar oportunidades, valorizar o que ela constrói nessa relação do cuidar. A pessoa tem que se sentir importante naquilo que faz. O futuro é quem a gente vai formar com características individuais e na qualificação daquilo que, tecnicamente e cientificamente, vai ser ensinado.
Recebar nossa Newsletter
NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.