Fabricio Campolina, presidente da J&J MedTech: “Transformação digital precisa ser feita no tempo certo, senão gera caos”
Fabricio Campolina, presidente da J&J MedTech: “Transformação digital precisa ser feita no tempo certo, senão gera caos”
No novo episódio de Futuro Talks, Fabricio Campolina aborda o processo de transformação digital, IA generativa, metaverso e outras inovações
As empresas que não iniciarem o processo de transformação digital em seus negócios e permanecerem tradicionais até o fim dessa década correm o risco de perder relevância. Essa é uma das leituras que Fabrício Campolina, presidente da Johnson & Johnson MedTech Brasil, compartilhou no mais recente episódio de Futuro Talks. Apaixonado pelo tema, Campolina estuda e acompanha de perto as principais tendências tecnológicas e seus potenciais usos na área da saúde.
Neste contexto, uma das pautas mais quentes do momento, inclusive, é o uso da inteligência artificial generativa. Para ele, isso já é realidade e, ao longo da conversa, ele cita três exemplos práticos. Um é o uso da IA para auxiliar médicos e profissionais de saúde no acompanhamento de consultas e preenchimento do prontuário eletrônico do paciente, incluindo agendamento de retorno, prescrições, etc. Outro é o uso para nivelar o conhecimento, tanto de profissionais experientes em busca de informações de outras especialidades quanto de jovens estudantes que precisam acelerar seu nível para competir no mercado. E o terceiro é a digitalização das linhas de cuidado, em que a IA generativa pode trabalhar até como uma espécie de enfermeira navegadora por meio de um contato automatizado e humano.
Na visão dele, considerando que a IA generativa é uma tecnologia que demanda grande poder computacional e volume gigantesco de dados, dificilmente as empresas da área de saúde conseguirão construir seus próprios sistemas. A tendência, segundo Campolina, é que poucas empresas dominem e ofereçam o serviço, que seria adquirido por instituições de saúde por meio de licenças – assim como é feito com outros softwares no mercado.
Durante a entrevista o executivo ainda abordou como o metaverso deve contribuir no futuro da saúde, a importância de as empresas caminharem no sentido da digitalização – e como as lideranças precisam estar atentas a isso – e abordou ainda aspectos da longevidade.
Confira a entrevista a seguir:
Um dos assuntos mais quentes dos últimos tempos é o ChatGPT. Após quase um ano desde o seu surgimento, como você avalia o potencial da ferramenta na prática?
Fabrício Campolina – Na prática, o que temos observado, após dez meses de seu lançamento, são três principais casos de uso. O primeiro, que ganhou destaque, principalmente nos Estados Unidos, é o que podemos chamar de um “autopiloto para consultórios clínicos”. Atualmente, é comum vermos médicos dedicando de uma a duas horas diárias a tarefas burocráticas. No entanto, ao automatizar essas tarefas burocráticas usando inteligência artificial generativa, é possível alcançar ganhos significativos de produtividade. Assim, já existem clínicas na Califórnia, como a Mayo Clinic, que incorporaram essa prática à sua rotina diária. Quando o paciente chega para a consulta, o médico solicita autorização para gravar a consulta, pressiona um botão e grava toda a sessão. Ao final da consulta, a inteligência artificial generativa gera automaticamente o prontuário relacionado, realiza agendamentos, prescreve receitas e executa tudo de forma automática, economizando cerca de 15 a 20 minutos por consulta para o médico, que apenas revisa e dá seu aval. Com isso, economizamos até duas horas do tempo do médico, que pode dedicar um tempo maior e mais pessoal a cada paciente. Esse é um dos principais usos e, recentemente, estávamos discutindo isso em um evento com cirurgiões bariátricos. Eles destacaram que uma mudança significativa em suas vidas seria se pudessem ter algo semelhante para responder às mensagens no WhatsApp. Eles mencionaram o tempo que gastam diariamente se comunicando com seus pacientes, e se pudessem ter um “gêmeo digital” do médico que replicasse a forma como eles se comunicam e respondesse rapidamente aos pacientes, isso teria um grande impacto positivo em suas vidas. Embora essa tecnologia ainda não exista, estou certo de que algum empreendedor já está pensando nesse caso de uso.
E quais são os outros casos de uso?
Fabrício Campolina – Outro caso de uso importante é o nivelamento relativo de conhecimento. Atualmente, é desafiador acompanhar todos os desenvolvimentos em qualquer área, incluindo medicina. Os especialistas em uma área podem não ter tempo para se manter atualizados em outras. Ao mesmo tempo, há dezenas de milhares de estudantes de medicina se formando a cada ano. Como garantir que essa nova geração alcance rapidamente o nível das gerações anteriores? A inteligência artificial generativa pode desempenhar um papel crucial nesse processo, sempre em colaboração. Ela não substituirá médicos ou cirurgiões, mas trabalhará em conjunto para torná-los melhores profissionais, acelerando a aprendizagem e nivelando o conhecimento em áreas em que ainda não se especializaram. Esse é outro caso de uso com um enorme potencial, que já está se desenvolvendo em algumas regiões.
Mas já podemos confiar plenamente em tecnologias como o ChatGPT?
Fabrício Campolina – Bem, acho que devemos confiar, mas com um certo grau de desconfiança. Por quê? Brincamos que nós, seres humanos, cometemos erros, enquanto a inteligência artificial generativa “alucina”. Talvez esse não seja um termo familiar para todos, mas temos uma compreensão geral de como ela funciona. No entanto, ninguém compreende completamente o que está acontecendo dentro daquela caixa preta extremamente complexa que é a inteligência artificial generativa. Portanto, em vez de tentar prever tudo o que acontecerá, devemos observar o que está acontecendo. Com o lançamento desses novos modelos de linguagem mais amplos, os resultados foram impressionantes. Em alguns casos, era difícil distinguir se a resposta vinha de um ser humano ou de uma máquina. No entanto, em certos momentos, as respostas eram completamente desconectadas do treinamento original, como se a máquina estivesse “alucinando” e gerando algo para o qual nunca havia sido exposta ou treinada. Essas “alucinações” podem, às vezes, ser bastante convincentes. Por outro lado, há um fenômeno observado recentemente em um estudo da Universidade da Califórnia e de Stanford que analisou a precisão das respostas, incluindo na área da medicina, comparando a versão 3.5 lançada em novembro do ano passado com seu desempenho seis meses depois. Surpreendentemente, algumas respostas se tornaram menos precisas, ou seja, pioraram. A hipótese levantada foi que, ao interagir com uma população muito grande, a IA “desaprendeu” de alguma forma, um fenômeno conhecido como “AI Drifting”. Além disso, surge a questão da geração de dados para treinamento dos modelos. Eles necessitam de uma grande quantidade de dados, e uma hipótese sugere que a IA poderia gerar dados sintéticos para seu próprio treinamento. No entanto, também foi observado que esses dados sintéticos nem sempre melhoram a qualidade das respostas.
Portanto, a compreensão do funcionamento da IA ainda está evoluindo, e é importante ter em mente que ela não é perfeita. Por isso, reforço a ideia de confiar, mas com cautela, e enfatizo a importância da colaboração. Há casos interessantes que destacam a importância dessa colaboração.
Mais cedo você mencionou três casos de uso. Qual é o terceiro?
Fabrício Campolina – O terceiro caso de uso que mais me empolga envolve a digitalização das linhas de cuidado. É o modelo de saúde baseada em valor que realmente deu certo, na minha opinião. Esse modelo permite coordenar o cuidado dos pacientes ao longo de sua jornada em episódios específicos de tratamento. Dentro dessas linhas de cuidado, tradicionalmente, vemos protocolos clínicos, indicadores de qualidade e modelos de pagamento associados a um determinado episódio de cuidado. No entanto, é muito difícil gerenciar isso de forma eficiente com a quantidade de informação disponível. A inteligência artificial generativa tem a capacidade de ajudar nisso, na organização, padronização e coordenação dos cuidados, tornando os dados mais acessíveis e auxiliando na tomada de decisões para o paciente. Com isso, podemos realmente aprimorar o modelo de saúde baseada em valor e, em última instância, oferecer um atendimento mais eficaz e eficiente aos pacientes. No entanto, essa é uma área complexa, que envolve regulamentações, interesses diversos e muitas variáveis. Não é algo que será resolvido rapidamente, mas é um caso de uso que vale a pena ser explorado. É importante ressaltar que as oportunidades da inteligência artificial generativa são vastas, e a saúde é apenas uma das muitas áreas onde ela pode causar um impacto significativo. Há muito trabalho a ser feito em termos de regulamentação, ética e compreensão de seu funcionamento, mas acredito que, quando usada com sabedoria e responsabilidade, essa tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para melhorar a qualidade de vida e a eficácia dos sistemas de saúde em todo o mundo. Ela deve ser vista como uma parceira, não como uma substituta, para profissionais de saúde, contribuindo para aprimorar suas práticas e proporcionar cuidados de qualidade aos pacientes.
Você tem alguns exemplos?
Fabrício Campolina – Considere que um paciente já está familiarizado com o uso do WhatsApp. Nesse cenário, em vez de introduzi-lo a um aplicativo adicional, optamos por estabelecer um diálogo com ele por meio de uma inteligência artificial generativa, diretamente no WhatsApp. Da mesma forma, se o paciente utiliza o Messenger do Instagram, a comunicação ocorrerá por meio desse canal. A ideia é contar com um sistema de inteligência artificial generativa que possa interagir com o paciente de maneira tão natural que ele nem perceba que está conversando com um robô. A experiência deve ser similar à de uma conversa com uma pessoa real. Dessa forma, conseguimos criar um grande número de instâncias dessa inteligência artificial, garantindo uma escalabilidade notável. Portanto, o custo de interagir com um único paciente ou com um milhão de pacientes, todos os dias, a qualquer hora, é praticamente o mesmo. Essa abordagem se mostra extremamente eficiente. Diferentemente da abordagem que envolve um número limitado de enfermeiras-navegadoras, essa estratégia inclui o uso dessa inteligência artificial generativa como a primeira linha de atendimento. Sempre que identifica um caso que requer atenção especializada, ela encaminha o paciente para um segundo nível de assistência, envolvendo profissionais mais especializados, como as enfermeiras-navegadoras. Vamos imaginar que tenhamos um grupo de 50 enfermeiras-navegadoras, o que permitiria o atendimento de mil pacientes. Com essa abordagem, podemos escalar para 100 mil pacientes, uma vez que as 50 enfermeiras-navegadoras entram em ação somente quando é necessário um cuidado mais aprofundado.
Como isso se aplica na prática?
Fabrício Campolina – Excelente pergunta. Na Johnson & Johnson MedTech, já estamos implementando essa abordagem. Anteriormente, quando éramos a divisão de dispositivos médicos da Johnson & Johnson, éramos uma empresa tradicional que inovava principalmente em produtos. Lançávamos produtos pioneiros, como o primeiro stent farmacológico, o Cypher, que foi um marco no início da minha carreira lá. Também introduzimos o primeiro eletrocautério endogâmico do mercado, entre outras inovações. Continuamos inovando nessa área de dispositivos médicos. No entanto, a transformação para a categoria de MedTech aconteceu quando percebemos que a inovação em produtos já não era suficiente. Começamos a inovar nos processos relacionados ao uso desses produtos. Para ilustrar essa mudança, considere o cenário de cirurgia oncológica colorretal. Naturalmente, fornecemos aos hospitais e equipes médicas os melhores produtos, incluindo endogrampeadores e fontes de energia de última geração, mas o verdadeiro desafio surge quando o paciente deixa o hospital. Nesse momento, ele é responsável por seu próprio cuidado e pelas decisões que deve tomar, como a necessidade de voltar ao hospital ou permanecer em repouso. É nesse ponto que a MedTech desempenha um papel crucial. Temos uma parceria com o Hospital A.C.Camargo, que é um caso público que gostaria de destacar.
Como funciona?
Fabrício Campolina – Estamos implementando uma linha de cuidados para pacientes que passaram por cirurgia oncológica colorretal, a qual se estende por vários meses após a alta hospitalar. Nesse programa, colaboramos com uma startup que utiliza uma tecnologia de inteligência artificial generativa por meio do WhatsApp. Os pacientes passam a se comunicar com um assistente virtual que, diariamente, faz perguntas sobre seu estado, qualidade do sono e outros aspectos relacionados ao pós-operatório. Dependendo das respostas dos pacientes, o assistente virtual encaminha a conversa para uma enfermeira-navegadora, caso seja necessário. Até o momento, mais de 110 pacientes passaram por essa experiência.
Quais resultados foram obtidos com essa abordagem?
Fabrício Campolina – Os resultados são notáveis. Os pacientes relatam que, enquanto estão no hospital, sentem-se bem cuidados, mas, ao retornar para suas casas, surgem inseguranças sobre como tomar as melhores decisões em relação à sua saúde. Com a assistência virtual, eles relatam que agora se sentem cuidados mesmo em casa. É como se o hospital estivesse estendendo seus cuidados até o ambiente doméstico do paciente, promovendo a visão de “hospital sem paredes”. Como resultado, a satisfação dos pacientes aumentou, elevando o NPS, uma métrica importante na área da saúde. Além disso, essa abordagem teve impacto significativo nos desfechos clínicos. Conseguimos evitar sete eventos adversos importantes, como a necessidade de fisioterapeutas. Isso ocorre porque, em alguns casos, pacientes demoravam vários dias para buscar atendimento médico após sentir sintomas, e, quando finalmente procuravam ajuda na emergência, muitas vezes era tarde demais, e eles precisavam de cirurgia. Com o assistente virtual, conseguimos identificar precocemente sinais de complicações, como fístulas, e encaminhar os pacientes imediatamente para a emergência. Isso resultou em tratamentos mais eficazes e evitou a necessidade de cirurgia. De forma geral, conseguimos reduzir em até 40% a ocorrência de eventos adversos evitáveis, dependendo da linha de cuidados em questão.
É interessante observar que essa abordagem também foi implementada com sucesso nos Estados Unidos e Canadá, obtendo resultados semelhantes, demonstrando seu potencial para melhorar a assistência médica.
E isso envolve redução de custos também, certo?
Fabrício Campolina – Sim. E conseguimos alcançar um número muito maior de pacientes com essa abordagem. Não estamos mais limitados apenas aos que possuem planos de saúde ou maior poder aquisitivo. Além disso, acredito que essa abordagem alivia a pressão sobre a equipe de saúde. Portanto, posso afirmar que as cinco metas do IHI (Institute for Healthcare Improvement) relacionadas à saúde baseada em valor se beneficiam substancialmente de casos como esse. Essa é uma realidade que já está em prática no A.C.Camargo, e temos outros projetos em andamento que ainda não podemos divulgar. Estou entusiasmado com essa área, pois a inteligência artificial já se tornou parte integrante da nossa rotina no Brasil, graças à colaboração com parceiros valiosos.
Quais outras áreas você acredita que essa tecnologia pode ser aplicada?
Fabrício Campolina – A chave aqui é ter clareza sobre qual problema deseja resolver. Por exemplo, no caso do engajamento pós-cirúrgico, que é de extrema importância em cirurgias de grande porte, ou até mesmo em cirurgias no joelho, a questão é como garantir que o paciente siga corretamente as terapias e as recomendações. Outras áreas de cuidado podem estar relacionadas ao diagnóstico precoce. Vamos considerar a endometriose, que afeta cerca de 5% das mulheres adultas, ou seja, uma parcela significativa da população feminina. Geralmente, o diagnóstico leva uma média de sete anos. Durante esse período, as pacientes sofrem sem entender completamente a natureza de sua condição, podendo receber tratamentos inadequados ou até prejudiciais. A inteligência artificial generativa pode ser usada para agilizar o diagnóstico precoce da endometriose e garantir um acompanhamento eficaz. Outra condição é a fibrilação atrial, uma condição que frequentemente passa despercebida em seus estágios iniciais. No entanto, a inteligência artificial pode ser aplicada para detectar sinais precoces da condição, muitas vezes com base em dados provenientes de dispositivos como o Apple Watch. Além disso, essa tecnologia pode ser usada em hospitais para analisar dados de eletrocardiogramas e outros exames, identificando irregularidades que poderiam passar despercebidas por olhos não treinados. Em resumo, a inteligência artificial tem o potencial de melhorar o diagnóstico e o tratamento em uma variedade de áreas de atuação médica.
Qual é o futuro das parcerias envolvendo inteligência artificial?
Fabrício Campolina – Essa é uma pergunta crucial: em que momento é mais vantajoso possuir sua própria infraestrutura ou trabalhar com parceiros? Como mencionado no caso do A.C.Camargo, trabalhamos em estreita colaboração com uma startup que utiliza inteligência artificial generativa. Como será o futuro dessa colaboração? Acho que é importante, antes de mais nada, esclarecer a diferença entre inteligência artificial e inteligência artificial generativa. Vamos começar com a programação tradicional. Em programação tradicional, você fornece um conjunto de instruções passo a passo, como uma receita de bolo. Você diz: “quebre um ovo, adicione farinha, misture e leve ao forno.” Ou seja, você descreve cada passo. A inteligência artificial tradicional segue esses passos para identificar padrões. Já a inteligência artificial generativa opera de forma diferente. Em vez de fornecer um roteiro passo a passo, você a alimenta com milhares de exemplos de vídeos de pessoas fazendo um bolo e milhares de vídeos de pessoas não fazendo um bolo. O sistema, de alguma forma, aprende a identificar automaticamente se uma pessoa está fazendo um bolo ou não, sem a necessidade de instruções detalhadas. Essa abordagem baseada na identificação de padrões reflete mais de perto o funcionamento do nosso cérebro, que é altamente eficiente na identificação de padrões. Assim, você pode usar a inteligência artificial para tarefas como reconhecimento de imagens, mas com uma acurácia mais próxima à capacidade humana. Isso é essencial em tarefas complexas, como processamento de linguagem natural, onde a abordagem passo a passo se mostra limitada. Portanto, a inteligência artificial generativa preenche variáveis, semelhantes às sinapses do cérebro.
À medida que os modelos de inteligência artificial aumentam a quantidade de variáveis, eles se aproximam do número de sinapses no cérebro humano, tornando-se cada vez mais eficazes em tarefas complexas e multifacetadas. Essa é a magia por trás da IA generativa e do seu potencial para transformar a assistência médica e outras áreas.
Como se denomina isso?
Fabrício Campolina – A essa abordagem se dá o nome de linguagem natural. É chamada de “natural” porque começa a se assemelhar à capacidade de identificação de padrões realizada pelo nosso cérebro. E, com isso, surge um grande benefício, que é a qualidade excepcional dessa abordagem. A inteligência artificial generativa consiste em modelos extremamente complexos, com um número de variáveis que se aproxima da ordem dos trilhões, ou seja, do mais próximo do número de sinapses presentes no nosso cérebro. É isso que garante a qualidade superior. Essas variáveis, de certa forma, possibilitam que o sistema descubra, por conta própria, o que precisa ser rotulado. Em vez de fornecer passo a passo, essas variáveis permitem que o sistema faça autorrotulagem. O avanço nesse número de variáveis torna o processo muito mais eficiente. Por exemplo, no caso que mencionei, não é necessário rotular manualmente milhares de vídeos. Com centenas de bilhões de variáveis, basta explicar uma pequena amostra, e o sistema é capaz de autorrotular o restante, tornando tudo mais simples.
E quais seriam os principais desafios dessa abordagem?
Fabrício Campolina – Existem desafios significativos a serem superados. Primeiramente, o custo dessa abordagem é uma consideração crucial. Nem todas as empresas possuem a capacidade de acesso a essa potência computacional necessária para suportar essas centenas de bilhões de variáveis. O poder computacional requerido é verdadeiramente excepcional. Além disso, é necessário ter acesso a uma quantidade massiva de dados para treinar adequadamente esses sistemas. Para superar esses desafios, é provável que apenas algumas grandes empresas tenham a capacidade necessária. No entanto, como essa tecnologia pode ser democratizada? Essas grandes empresas podem disponibilizar seus modelos para terceiros. Por exemplo, o OpenAI poderia criar instâncias exclusivas para empresas, nas quais elas podem gerar conhecimento relevante apenas para uso interno, mantendo controle sobre os dados. O caminho provável é que as empresas adotem essas instâncias para alavancar a inteligência artificial generativa em seus processos.
Você acha, então, que o caminho para as instituições de saúde não será desenvolver sua própria tecnologia de IA generativa?
Fabrício Campolina – É improvável que as empresas desenvolvam seus próprios modelos de linguagem em larga escala devido à complexidade e aos custos envolvidos. No entanto, elas podem recorrer a empresas já estabelecidas para licenciar instâncias específicas que sejam desenvolvidas de acordo com suas necessidades e que operem dentro de suas organizações, mantendo as informações sob controle. Essa é uma maneira viável de alavancar a tecnologia de IA generativa em um ambiente corporativo, incluindo hospitais e instituições de saúde.
E sobre o metaverso? Como você vê seu papel na área da saúde passado o hype?
Fabrício Campolina – Novas tecnologias geralmente passam por uma fase inicial de grande atenção e, em seguida, podem se estabilizar e se tornar parte de nossas vidas cotidianas. Acredito que o metaverso passará por essa fase e voltará com força à medida que a tecnologia evolui. Atualmente, os dispositivos de entrada para o metaverso ainda estão em estágio inicial de desenvolvimento. Seria comparável a ter telefones celulares semelhantes aos PT500 de 20 anos atrás. No entanto, com o tempo, esses dispositivos evoluirão para algo muito mais avançado, assim como as aplicações. Na minha visão, o metaverso tem um grande potencial na educação continuada, embora possa não receber toda a atenção que já teve. Isso pode contribuir significativamente para democratizar o acesso ao conhecimento. Um exemplo é a criação de ambientes que replicam procedimentos cirúrgicos. Imagine um residente de ortopedia usando um dispositivo de realidade virtual para praticar uma cirurgia de joelho. Ele pode repetir o procedimento muitas vezes, consolidando suas habilidades. O limite passa a ser o tempo e a dedicação do profissional.
E há a vantagem do custo também.
Fabrício Campolina – A vantagem é que o custo é praticamente o mesmo, independentemente do número de vezes que ele pratica. O custo está principalmente na criação do ambiente inicial. Acredito que a educação por meio do metaverso já está funcionando de maneira eficaz, desde que seja usada de forma séria e não apenas como entretenimento. Estudos estão em andamento para demonstrar seu valor na educação. A questão da equidade também é relevante, pois essa tecnologia pode ampliar o acesso à formação educacional. Por isso acredito que o metaverso será uma parte essencial da formação médica no futuro.
Mas isso está mesmo sendo feito na prática já?
Fabrício Campolina – Sim, está em funcionamento, o que é uma conquista significativa. No entanto, a chave está em assegurar que essa educação não seja apenas um mero entretenimento, mas sim um valor real para a jornada educacional. A eficácia deve ser demonstrada por meio de estudos sólidos, em vez de depender apenas de opiniões pessoais. Nossa empresa já está colaborando com instituições de renome para conduzir estudos nessa direção. Acreditamos que, quando esses resultados estiverem disponíveis, poderemos mostrar que essa abordagem realmente agrega valor ao processo educacional, como já foi comprovado na Europa. Estou confiante de que conseguiremos demonstrar o mesmo aqui. O próximo desafio é a questão da equidade, como fornecer treinamento para um grande número de estudantes. Através da transformação com tecnologias como a realidade virtual, podemos potencialmente treinar quatro vezes mais residentes com o mesmo investimento, uma vez que a infraestrutura já está em vigor. Portanto, o foco se concentra em viabilizar o acesso a dispositivos de realidade virtual para programas de residência. Por exemplo, através de parcerias com instituições que possuem laboratórios de 5G e dispositivos de óculos de realidade virtual avançados.
Acredito que, em breve, os programas de residência cirúrgica incorporarão o metaverso como parte essencial da aprendizagem, proporcionando aos residentes a capacidade de simular procedimentos repetidas vezes.
E você acha que esse ambiente virtual também deve se intensificar na teleconsulta?
Fabrício Campolina – Essa é uma questão intrigante que requer análise cuidadosa. O ambiente virtual, como o metaverso, tem seu valor e suas limitações. Comparado com os modelos de consulta presencial e telemedicina, ele apresenta diferenças notáveis. A consulta presencial é valiosa, mas tem a desvantagem de exigir que o paciente se desloque fisicamente para o local do médico. Por outro lado, a telemedicina oferece uma alternativa em que o médico e o paciente podem se comunicar remotamente por meio de vídeo, preservando parte da comunicação não verbal. Embora não seja idêntico a uma consulta presencial, oferece flexibilidade, o que é útil em muitos casos, especialmente para pacientes distantes. Agora, quanto ao metaverso, imagine que você e eu tenhamos avatares virtuais para uma consulta. Nesse cenário, a comunicação não verbal é perdida. Isso levanta a questão de como isso acrescenta valor. É importante notar que a teleconsulta já oferece algumas das vantagens da consulta presencial, como a observação de expressões faciais e comunicação verbal. No entanto, a transição para o metaverso não se justifica no momento. Ela é apenas vantajosa quando pudermos digitalizar completamente todos os aspectos sensoriais, como o olfato e o tato. A tecnologia está evoluindo, mas ainda está em seus estágios iniciais. No futuro, com avanços, o metaverso poderá se tornar uma plataforma útil para consultas médicas, permitindo que médicos analisem odores corporais e até mesmo detectem doenças com base nesses odores. No entanto, essa transformação ainda está a alguns anos de distância.
Qual é a sua percepção sobre as transformações digitais para empresas que ainda não começaram a aderir?
Fabrício Campolina – Minha percepção sobre as transformações digitais é que todas as empresas, especialmente as que estão apenas começando nessa jornada, precisam abraçá-las. A transformação digital não é mais uma opção, mas uma necessidade para se manterem relevantes no mercado. Elas devem evoluir de empresas tradicionais para empresas digitais. Mas o que exatamente significa essa transformação? Significa ir além da adoção de tecnologia para transformar toda a cultura, operações e mentalidade da empresa. Em vez de departamentos hierárquicos, as empresas digitais operam em redes de equipes ágeis. Elas valorizam a análise de dados e insights para orientar suas decisões. Os executivos precisam combinar conhecimento de negócios, finanças e tecnologia para criar soluções inovadoras. Empresas digitais como o Google e a Amazon oferecem lições valiosas. A Microsoft, por exemplo, é um exemplo de uma empresa tradicional que está fazendo uma transição bem-sucedida para uma empresa digital. Isso ocorre em grande parte devido à liderança que entende a importância de fundir negócios com tecnologia. Inovação e negócios precisam trabalhar em conjunto, criando um ambiente de colaboração. Além disso, a transição deve ser gradual, para evitar o caos que pode surgir de uma transformação abrupta. É uma jornada que leva tempo, geralmente de 5 a 10 anos, mas é essencial para o sucesso a longo prazo. As empresas que não fizerem essa transição ficarão obsoletas, pois o mundo está mudando rapidamente. Portanto, o foco deve ser sempre na criação de valor para os clientes, colaborando com a sustentabilidade do setor.
Como os desafios na área da saúde impactaram a Johnson & Johnson MedTech?
Fabrício Campolina – A área da saúde está enfrentando desafios significativos, especialmente na saúde suplementar. O envelhecimento da população, a crescente prevalência de doenças crônicas e o aumento dos custos de cuidados de saúde são apenas alguns exemplos desses desafios. Esses fatores têm um impacto direto na Johnson & Johnson MedTech. Em resposta, estamos concentrando nossos esforços em inovações que melhorem a qualidade dos cuidados de saúde, ao mesmo tempo que reduzem os custos. Nossa empresa está investindo em tecnologias avançadas, como dispositivos médicos conectados e terapia digital, para ajudar os pacientes a gerenciar suas condições de forma mais eficaz e para permitir que os médicos tomem decisões mais informadas. Também estamos buscando parcerias estratégicas com sistemas de saúde e pagadores para desenvolver soluções que forneçam valor sustentável. Em 2024, esperamos que esses esforços resultem em avanços tangíveis na forma como a saúde é entregue e administrada. Estamos comprometidos em continuar a nossa missão de ajudar as pessoas a viverem vidas mais saudáveis e estamos confiantes de que as soluções que estamos desenvolvendo desempenharão um papel significativo na melhoria do sistema de saúde. Além disso, também estamos atentos às mudanças regulatórias e às tendências do mercado, o que nos permite nos adaptar às novas realidades do setor da saúde.
Você acredita que a inteligência artificial e a automação estão redefinindo o campo da cirurgia?
Fabrício Campolina – Sim, a inteligência artificial e a automação estão, sem dúvida, redefinindo o campo da cirurgia. Essas tecnologias estão proporcionando avanços significativos na precisão, eficiência e acessibilidade dos procedimentos cirúrgicos. A inteligência artificial é usada para melhorar o diagnóstico pré-operatório, auxiliar na tomada de decisões durante a cirurgia e aprimorar a reabilitação pós-operatória. Algoritmos de aprendizado profundo podem analisar imagens médicas, como exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada, para identificar anomalias e orientar os cirurgiões em tempo real. Além disso, a robótica cirúrgica está se tornando cada vez mais comum, permitindo que cirurgiões realizem procedimentos de forma mais precisa e minimamente invasiva. A automação também está desempenhando um papel importante, especialmente em cirurgias repetitivas e padronizadas. Por exemplo, em procedimentos de ortopedia, a automação está sendo usada para posicionar implantes com precisão, reduzindo o erro humano. Além disso, a telecirurgia e a cirurgia remota estão se tornando realidade, possibilitando que cirurgiões realizem procedimentos em locais distantes, ampliando o alcance do atendimento médico especializado.
No entanto, é fundamental garantir que essas tecnologias sejam utilizadas com responsabilidade e ética, mantendo o paciente no centro de todas as decisões clínicas.
Quais são as perspectivas para 2024?
Fabrício Campolina – Temos um ciclo de planejamento estratégico em andamento que teve início este ano e será concluído em 2025. No entanto, nossa intenção é acelerar o processo. Estamos focando em linhas de cuidado, acreditando que esta área está demonstrando um grande potencial, e temos desenvolvido expertise nesse sentido, em colaboração com equipes médicas e hospitais. Entendemos que o sucesso das linhas de cuidado está diretamente ligado ao engajamento total, ao patrocínio e à liderança da alta gestão das instituições e das equipes médicas. Nossa parceria com startups também é crucial para promover a transformação digital, que é essencial. Assim, temos três grandes apostas. Uma das principais é nas especialidades-chave, onde buscamos ajudar no desenvolvimento do mercado, melhorando o diagnóstico precoce e aprimorando os desfechos clínicos. Outra grande aposta é alavancar a transformação digital para impulsionar a produtividade de maneira significativa. Por exemplo, na educação continuada, estamos explorando como a tecnologia pode ampliar o alcance de nossos programas de educação, de uma forma que seria impossível sem ela. Além disso, estamos focados em outras áreas, como a gestão de força de vendas, a maturidade do marketing omnichannel e a integração de sistemas com os clientes para melhorar a logística, automatizando tarefas que costumavam ser manuais e, assim, melhorando o atendimento ao cliente e reduzindo o estoque. Isso, por sua vez, libera o fluxo de caixa, o que é fundamental para nossos clientes. Em resumo, a segunda grande aposta é impulsionar a produtividade em todas as áreas, aproveitando a transformação digital.
E a terceira aposta?
Fabrício Campolina – Quanto à terceira aposta, estamos comprometidos com a diversidade, a equidade e a inclusão. Estamos desenvolvendo vários projetos nessa área, desde contribuições para nossas comunidades até a criação de um ambiente de trabalho que reflita a diversidade das sociedades em que atuamos. Queremos que as pessoas sejam verdadeiramente elas mesmas, felizes, e livres de dilemas em relação a sua aceitação. O objetivo é permitir que todos deem o melhor de si, se divirtam e sejam felizes, independentemente dos desafios que enfrentem. Nossa intenção para o próximo ano é acelerar essas três áreas, que temos visto como essenciais para alcançar nossos objetivos, mesmo em meio às turbulências que afetam o mercado.
Para fechar, uma pergunta que faço para todos os convidados: quais pautas devemos ficar de olho?
Fabrício Campolina – Uma das minhas paixões pessoais é a longevidade com saúde. Gostaria de explorar várias dimensões desse tema. Primeiramente, muitas pessoas conhecem a expectativa de vida do Brasil, mas poucos falam sobre a expectativa de vida saudável, que é o que realmente importa. É interessante observar que, na Europa, os últimos dez anos de vida das pessoas frequentemente não são caracterizados por qualidade de vida. Muitas pessoas enfrentam dores crônicas, perda de habilidades, ou outras condições que afetam negativamente sua qualidade de vida. Esse quadro é ainda mais acentuado em pessoas em situação de vulnerabilidade, que podem passar até 30 anos de suas vidas sem qualidade, enquanto aqueles com melhores condições enfrentam apenas os últimos 10 anos com qualidade. Isso é um tema extremamente relevante e merece mais atenção. Precisamos começar a discutir não apenas a expectativa de vida, mas também como promover uma expectativa de vida saudável. O sono, por exemplo, é um fator crucial. Antes da pandemia, eu costumava me orgulhar de dormir apenas 4 ou 5 horas por noite, acreditando que dormir era uma perda de tempo. No entanto, percebi a importância do sono quando comecei a dormir 6 a 7 horas por noite e notei a diferença que isso fazia no meu bem-estar e na minha saúde a longo prazo. Portanto, quando menciono esse aspecto, quero enfatizar a importância do sono para garantir uma expectativa de vida saudável a longo prazo.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.