Fabio Baccheretti, presidente do Conass: “Principal desafio dos estados é o subfinanciamento”
Fabio Baccheretti, presidente do Conass: “Principal desafio dos estados é o subfinanciamento”
Em entrevista ao Futuro da Saúde, Fabio Baccheretti apontou a integralidade, regionalização e saúde digital como caminhos para aprimorar a saúde

Fabio Baccheretti, presidente do Conass, em reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Foto: Julia Prado/MS.
Em um país com dimensões continentais como o Brasil, o olhar descentralizado da saúde torna-se necessário para enxergar as demandas considerando as características específicas daquela região. É neste conceito que o sistema tripartite se baseia. E, entre a federação, que se propõe a ter uma visão mais ampla e de políticas nacionais, e os municípios, que atuam na ponta entregando saúde diretamente aos pacientes, estão os estados, que também têm a missão de organizar seus respectivos sistemas considerando as condições demográficas e de recursos. Em entrevista ao Futuro da Saúde em Brasília, o médico Fabio Baccheretti, presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) abordou os principais desafios e caminhos da saúde.
Segundo ele, que é Secretário de Saúde de Minas Gerais desde março de 2021, os estados são muito diferentes entre si, mas um problema em comum é o subfinanciamento do SUS. Para resolver a questão, há alguns caminhos, em sua visão. O primeiro passa pela busca da integralidade do sistema, ou seja, enxergar a saúde pública em sua totalidade para evitar desperdícios – como a redundância de exames –, aprimorar a navegação do paciente e, consequentemente, aprimorar a gestão de recursos.
Neste contexto, o presidente recém-eleito para a gestão 2024-2025 também apontou a regionalização e o avanço da saúde digital como caminhos para a melhoria da saúde brasileira. Ao longo da conversa ele ainda falou da relação com o Ministério e com os municípios.
A conversa faz parte de uma série de entrevistas realizadas pelo time do Futuro da Saúde em visita recente à Brasília. O link com todos os materiais pode ser acessado aqui.
Confira os principais trechos da entrevista:
Durante a pandemia, houve um protagonismo do Conass e do Conasems em toda a articulação. Como está o papel do Conass hoje?
Fabio Baccheretti – O Conass é uma instituição diferente de órgãos como o Ministério da Saúde. É uma instituição que envolve 27 secretários de saúde, ou seja, não existe realmente nenhum interesse partidário. Nós temos que achar sempre o consenso, e o que não é consensuado não serve para o Conass. Este é um ponto muito relevante. Diante disso, o Conass e também o Conasems, mas falando do Conass, tem um papel muito relevante dentro dessa governança do SUS, porque independente de quem passe pelo executivo federal, o Conass é um dos responsáveis em manter as diretrizes e os princípios fundamentais do SUS a serem cumpridos. Adquirimos uma confiança muito grande e uma relevância internacional em relação especialmente aos dados vinculados à pandemia, inclusive como uma ferramenta de transparência para utilização pelos órgãos de imprensa, ou seja, comprovadamente confiável. O Conass tem esse papel hoje cada vez mais relevante, então, sem dúvida nenhuma, é um guardião dos princípios do SUS.
E como funciona essa interlocução com o Ministério da Saúde? Há essa troca, essa liberdade, esse pensamento conjunto em medidas e na pactuação?
Fabio Baccheretti – A governança do SUS tem esse papel. Temos as câmaras técnicas, os grupos de trabalho temáticos que mantêm discussões. É importante dizer que, apesar de existir um orçamento federal de saúde, o recurso tem que ser pactuado, tem que ser discutido nas câmaras técnicas e pactuado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Isso faz com que o Conass seja realmente ouvido, protagonista desse processo. Muitas vezes a população em geral acha que o investimento é exclusivamente do Ministério, mas ele realmente tem que passar por essas etapas. Então, sim, o Conass participa de forma ativa. Até quando a gente vê algumas políticas, como a Rede Cegonha, como política de financiamento hospitalar ou atenção primária, todas elas têm o dedo do Conass e do seu desenvolvimento.
E a relação com o Conasems?
Fabio Baccheretti – A relação com o Conasems é ótima, da mesma forma que o Conass tem esse papel apolítico dentro da discussão da saúde, muito técnico, o Conasems também representa mais de 5 mil municípios. O Conass e o Conasems estão mais perto do paciente. O Conasems, em especial, que estão lá na ponta do município, mas os estados também, tendo a coordenação regional, estão próximos do paciente e dos desafios do SUS. Então, é uma relação institucional muito forte, estabelecida muitas vezes com consenso mais fácil do que com o próprio Ministério, porque nós sentimos as dores mais facilmente. O nosso interesse realmente tem que ser um interesse comum. Temos que pensar em 27 estados no Conass e o Conasems tem que pensar em mais de 5 mil municípios. Ou seja, o consenso faz parte como uma premissa do nosso trabalho.
Em termos de desafios dos estados, quais você pontuaria como os principais?
Fabio Baccheretti – Somos estados muito diferentes, mas temos semelhanças. Se a gente pensa geograficamente, isso se acompanha até culturalmente, mas também em índice de desenvolvimento humano, que faz diferença também dentro da saúde pública. Um desafio comum hoje é o subfinanciamento do SUS, sem dúvida nenhuma. Quando a gente fala de subfinanciamento, é difícil ficar só reclamando que nós não temos recursos suficientes. Nós sabemos, por exemplo, que nós investimos em relação ao PIB muito menos, 4, 5, 6 vezes menos do que países que têm sistemas universais como o nosso, mas, de qualquer forma, o subfinanciamento é um desafio. E, por isso, temos que enfrentar esse desafio na eficiência do sistema. Buscar dentro das políticas estabelecidas uma forma de evitar desperdícios e que o recurso aportado nas políticas realmente entregue valor para a população. Porque nós sabemos que um SUS que não é integrado, ele gera retrabalho, perda de tempo. Vamos dar um exemplo: um paciente, uma mulher que faz uma mamografia, ela demora muitos meses para ir ao especialista, para indicar talvez uma biópsia e quando ele chega no especialista o exame já está antigo, ele tem que ser refeito. Essas etapas não organizadas e não integradas fazem com que este recurso, que é escasso, seja desperdiçado. Então, temos que buscar a integralidade, que é um dos três princípios fundamentais do SUS — universalidade, equidade e integralidade —, o mais difícil e complexo da instituição do SUS que nós ainda não conseguimos fazer isso de forma robusta.
Muito se fala sobre o papel que a regionalização da saúde pode ter nesse contexto do uso mais consciente, mais objetivo do recurso. Como você vê essa questão?
Fabio Baccheretti – Por ser secretário de Minas Gerais, tenho uma regionalização muito forte já, não é de agora. Mas nós temos um projeto estratégico que se chama Regionaliza SUS e nesse projeto a gente intensifica ainda mais o papel do desenvolvimento regional. Olhar um estado como o nosso, como Minas Gerais, com 853 municípios, se quisermos resolver tudo de forma centralizada, nós vamos ter pouco sucesso. Temos muitos pontos que devem ser reconhecidos, desenvolvidos e resolvidos em regiões de saúde, dependendo menos do fluxo de pacientes para outros territórios. Então, temos um plano de regionalização e isso tem que ser realmente um foco para todo o desenvolvimento, que não podemos replicar serviços em regiões de saúde que já existem outros serviços semelhantes, ao invés de buscar realmente os vazios. E outro ponto: temos que criar uma rede regionalizada robusta para evitar os desperdícios e evitar que o paciente fique solto no sistema. O que vemos em locais em que não existe a regionalização com clareza, os municípios tentam se resolver sozinho e isso faz com que o custo em saúde aumente. Os municípios hoje investem mais de 27%, em média, do seu orçamento em saúde e nem sempre vê o paciente conseguindo a sua integralidade. Lembrando que a concorrência no mesmo território gera outros gargalos. Por exemplo, não temos profissionais de saúde especialistas no interior de estados, muito menos de estados mais distantes. Então, se não organizar este fluxo, pensando em linhas de cuidado e também em potencialidades de cada região e, obviamente, nos vazios daquela região, os desafios não serão vencidos por vários motivos. A regionalização faz um diagnóstico, permite que os municípios participem, entendam o que é necessário para que a gente invista mais cirurgicamente nas necessidades. Nós temos que utilizar melhor o recurso público e a regionalização, sem dúvida nenhuma, é uma ferramenta fundamental para isso.
Ainda sobre a regionalização, há um desafio político para ser superado?
Fabio Baccheretti – Sim, mas eu vejo isso como viável. Do mesmo jeito que a gente fala da relação Conass, Conasems com o Ministério, cada secretário de saúde tem que ter uma relação muito forte com o conselho de secretários municipais de saúde de cada estado. Quando eu falo em Minas Gerais, digo com propriedade por estar lá há mais de três anos na secretaria, a relação é muito harmônica. Isso faz com que os gestores municipais de saúde entendam essa dinâmica e aí os resultados aparecem. Quando a gente cria resoluções de investimentos hoje ou resoluções de custeio com recurso pactuado na CIB (Comissão Intergestores Bipartite) com os municípios, amplamente discutido, e a base dessa discussão é a regionalização, os vazios assistenciais e as necessidades de desenvolvimento, a gente consegue certamente a aderência total dos municípios. É algo que tem que ser construído nessa confiança mútua entre Estado e municípios. Ela acontece com o tempo. É um desafio político, mas é possível.
Você trouxe a questão do subfinanciamento e disse que esse é um dos grandes desafios em comum dos estados. Hoje há também uma abertura um pouco maior para parcerias, inclusive com a iniciativa privada? Como enxerga isso?
Fabio Baccheretti – Eu vejo isso de forma muito positiva. As filantrópicas em Minas Gerais, mais de 80% da assistência hospitalar é feita por elas. Além delas, temos também os hospitais e redes privadas, que são redes complementares. Lembrando que para o privado, em termos gerais, ter uma escala, mesmo com uma receita menor do que o habitual, acaba valendo a pena entrar em uma rede assistencial do SUS e complementar os nossos vazios e as nossas necessidades. A cirurgia eletiva é um caso disso. Nós estamos vendo as cirurgias eletivas dos hospitais privados se colocando dentro dos hospitais executantes da nossa política em Minas Gerais. Isso está acontecendo no Brasil inteiro. Esse é o primeiro ponto. O outro ponto de parcerias que devem ser feitas é no próprio desenvolvimento de políticas. Vamos falar um caso. Doenças raras estão se desenvolvendo cada vez mais com o teste do pezinho ampliado. Usando o exemplo de Minas Gerais, o setor privado, a Unimed de Belo Horizonte, me procurou para que a gente faça trabalhos em conjunto em relação aos protocolos e à dispensação dos medicamentos de alto custo das doenças raras. Isso porque a mesma demanda que temos no setor público, nós temos no privado. Então, para quê replicar serviços semelhantes, se podemos associar tendo um custo dividido e, obviamente, com um desfecho favorável tanto para o privado quanto para o SUS? Vejo muito positivamente em diversos setores que o privado pode fazer muito melhor, além de o que já é conhecido. A descentralização de gestão, a utilização de PPP na área de saúde, no desenvolvimento disso, vemos isso como um sucesso em vários estados.
Experiências locais podem escalar? Por exemplo, ir para o Governo Federal e virar uma política nacional?
Fabio Baccheretti – Certamente, nós temos alguns casos como esse. Recentemente, nós apresentamos a linha de cuidado de doenças oftalmológicas. O Governo Federal gostou dessa política e está tentando fazer isso em nível nacional. Nós temos alguns projetos como o uso de drones de larga escala, que já está sendo colocado para combate a arboviroses como uma política nacional. Lembrando que nós, que estamos na ponta, vivenciamos esse dia a dia, somos capazes, com uma equipe muito capacitada, de trazer soluções nacionalmente. Fico muito satisfeito de ver que essas políticas desenvolvidas nos estados viram políticas nacionais.
Temos visto um movimento de saúde digital como bandeira do governo, mas para funcionar vai precisar da adesão de estados e municípios. Como que isso tem funcionado na prática? E onde você vê as potenciais melhorias para acelerar a saúde digital no Brasil?
Fabio Baccheretti – Na saúde digital, a gente tem uma coincidência positiva que existe um movimento regional estadual em todos os estados e houve um movimento do Ministério da Saúde até criando uma Secretaria de Saúde Digital concomitante com esse desenvolvimento, que foi muito incentivado pela pandemia. A pandemia nos demonstrou o quanto a saúde digital tem que ser desenvolvida. Isso é um ponto positivo, de que estamos muito próximos no entendimento entre estados e governo federal. Em relação à saúde digital, eu, pessoalmente, não acredito muito nela com a teleconsulta como o principal fator. A teleconsulta é importante em diversas linhas, no entanto, a escala dela nunca vai ser suficiente. Ela pode cair naquele vício tradicional da saúde que você gera demanda por ter uma oferta nova de consultas. Eu acredito muito mais em dois pontos estruturantes.
Quais são eles?
Fabio Baccheretti – O primeiro, a concentração dos dados. O desenvolvimento da RNDS (Rede Nacional de Dados em Saúde) é fundamental. A gente precisa compilar todos os dados no mesmo banco de dados para consiga agir de forma mais assertiva e coerente com as informações que temos hoje pulverizadas em diversos sistemas. Esse é o primeiro ponto, a tomada de decisão. E o segundo ponto é na integralidade do cuidado. Quando a gente da fragmentação da linha de cuidado, o paciente anda pelos níveis de atenção primária, secundária, terciária, quaternária, mas fica um pouco solto. A saúde digital tem essa capacidade de fazer a gente acompanhar o paciente em cada setor. E aí a inteligência artificial pode nos ajudar muito nisso. E o terceiro ponto é garantir em locais remotos, onde não conseguimos ter o profissional, a teleconsultoria, quando um profissional de saúde especializado discute com outro profissional de saúde na atenção primária, em especial. Com isso, geramos não apenas uma resposta à demanda, mas capacitação. Um médico de atenção primária que discute casos de pacientes com cardiopatias, com um cardiologista à distância, os casos vão se repetir. Com o tempo, este médico de atenção primária fica capacitado e consegue conduzir da melhor maneira lá na atenção primária. Então, a saúde digital, sendo bem utilizada, é o grande trunfo para vencer esses obstáculos históricos especialmente da integralidade do cuidado.
E qual é o nosso grau de maturidade?
Fabio Baccheretti – Ainda muito baixo e muito heterogêneo. Tivemos uma adesão grande dos estados e municípios em relação ao primeiro ponto do diagnóstico, que nós estamos fazendo exatamente uma análise da maturidade digital do país, mas temos ilhas de eficiência. Então, tendo essas ilhas e sistemas compartilhados, que é um ponto que os estados estão fazendo, a tendência é implementar isso nos 26 estados.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.