Evidências de vida real: o que está por trás de tanto entusiasmo

Evidências de vida real: o que está por trás de tanto entusiasmo

A Sociedade Internacional de Farmacoeconomia e Estudos de Desfecho (Ispor,

By Published On: 08/02/2023
Evidências de vida real

A Sociedade Internacional de Farmacoeconomia e Estudos de Desfecho (Ispor, na sigla em inglês), uma referência global em economia de saúde, publicou no ano passado a quarta edição de um ranking que estipula as dez principais tendências do setor. Para o biênio de 2022 e 2023, o primeiro lugar ficou com as chamadas evidências de vida real – elas superaram tópicos como equidade na saúde, engajamento do paciente e precificação de medicamentos.

A própria definição dessa expressão que está na moda segue em debate. De maneira ampla, os dados de vida real (ou real world data, RWD) são as informações coletadas fora de um contexto típico de pesquisa clínica. As fontes são incontáveis: aplicativos de celular, relógios inteligentes, bancos de dados hospitalares, prontuários eletrônicos, painéis genéticos, registros de seguradoras de saúde, sistemas informatizados de farmácia, sistemas públicos (como o DATASUS), dados de faturamento, mídias sociais e por aí vai.

Mas um artigo de opinião publicado em 16 de janeiro de 2023 na revista científica Nature Medicine alerta logo de cara: “É importante distinguir o RWD, que se refere a dados gerados da rotina e do atendimento padrão dos pacientes, da evidência de vida real [real world evidence, RWE]”. Trocando em miúdos, as evidências de vida real são geradas a partir das análises sistematizadas dos dados de vida real, e podem servir de insumo para diversas tomadas de decisão – adoção de políticas públicas pelo governo, aprovação de medicamentos e mudanças de bula por agências regulatórias, negociação de preço junto às operadoras e ao SUS…

Apesar de não ser uma novidade, a RWE ganhou tração por razões que vêm se aglutinando principalmente desde o fim da década de 90, e que foram catalisadas com a pandemia da Covid-19 – vacinas e medicamentos contra o coronavírus foram indicados também com base nessa estratégia. Abordaremos os principais motivos para esse boom a seguir:

Tecnologia

A tecnologia é a sustentação do RWE. “Há cerca de 15 anos, só 5% dos dados de saúde eram digitalizados. Hoje, esse número está na casa dos 95%”, estima o oncologista Stephen Stefani, presidente do capítulo brasileiro da Ispor.

A mudança de cenário é talvez mais perceptível a olho nu pelo lado da coleta de informações. A multiplicação de smartphones, relógios inteligentes e mesmo de dispositivos médicos portáteis aumentou enormemente a quantidade de dados captados de cada indivíduo. Soma-se a isso ainda fatores como a maior disseminação de testes genéticos e moleculares e a digitalização – ao menos em parte – dos sistemas de saúde, tanto públicos como privados. Existe, em resumo, uma profusão de dados disponíveis em maior ou menor grau para interpretação, o que é fundamental para análises que visam enxergar a vida como ela é.

Daí vem o segundo ponto dentro da seara da tecnologia. Para armazenar, agrupar, processar e ajudar a dar algum sentido a tantos dados, é cada vez mais necessário dispor, entre outras coisas, de computadores ultravelozes, servidores de grande capacidade e recursos como a inteligência artificial, além de profissionais treinados e acostumados com programação e interpretação de dados.

Mudança na economia da saúde

Principalmente na segunda metade do século 20, muitas das medicações desenvolvidas tinham formulações relativamente simples e visavam atingir problemas altamente incidentes, a um custo não tão alto. As farmacêuticas e o setor como um todo lucravam visando grupos grandes de pacientes, assim por dizer. As primeiras estatinas, que enfrentam o colesterol alto (problema comum a 40% dos brasileiros, segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia, a SBC), foram lançadas nos anos 1980. O captopril, um fármaco revolucionário contra a hipertensão, também surgiu nessa década – e a pressão alta aflige cerca de 30% da nossa população, de acordo com a mesma SBC. Já a metformina, uma droga receitada para parte considerável dos 10% de brasileiros com diabetes, foi usada pela primeira vez em 1979, na França. Esses três medicamentos tendem a custar, hoje, menos de R$ 50 por caixinha.

Já um marco do fim da década 1990 sinaliza para uma mudança de tendência do mercado de medicamentos. Em 1998, é lançado um dos primeiros anticorpos monoclonais humanizados – o Herceptin, contra um subtipo do câncer de mama. A medicação biológica, altamente complexa, carregava um efeito colateral: o preço elevado. Uma análise publicada em 2021 indica que o Herceptin custava cerca de R$ 170 mil por protocolo de tratamento padrão. Nos últimos anos, diversos outros medicamentos de altíssimo custo, principalmente na oncologia e no universo das doenças raras, chegaram ao mercado.

O que isso tem a ver com evidências de vida real? Ora, pressionados pelo potencial aumento de despesas, os planos de saúde, as agências reguladoras e outros atores do segmento passaram a questionar, principalmente, o custo-benefício de certos tratamentos na tentativa de conter a incorporação de tantos procedimentos dispendiosos. A indústria farmacêutica, então, investiu pesado na RWE para tentar mostrar que o valor agregado de seus produtos justificaria o investimento.

“Aí começaram a se multiplicar os estudos que, com base em dados de vida real confiáveis e bem trabalhados, apontavam benefícios clínicos ou de farmacoeconomia”, destaca André Ballalai, engenheiro químico de formação e pesquisador na área de sistemas de saúde. Ou seja, de um lado surgiam evidências de vida real que reforçavam ou revelavam eventuais melhorias de saúde e qualidade de vida ao usar um produto, o que afastava argumentos como os de falta de benefícios reais e significativos. Do outro, modelos baseados nessa estratégia traziam indicadores econômicos, como ganhos de produtividade com o uso da medicação e perdas financeiras do governo com processos judiciais movidos por pacientes para conseguir acesso aos fármacos, uma vez que eles não estavam disponíveis pelas vias tradicionais.

O setor aqueceu ao ponto de catapultar gigantes como a IQVIA, uma empresa líder em soluções tecnológicas e de análises aprofundadas de dados – que trabalha com RWE – e que possui cerca de 79 mil funcionários e operações em mais de 100 países. Para efeito de comparação, após a onda recente de demissões, a Meta, que detém o Facebook e o Instagram, possui por volta de 76 mil empregados.

Stefani concorda que as evidências de vida real ganharam protagonismo graças a uma necessidade de mercado. Mas ele destaca que esse mesmo recurso pode ajudar governos e planos de saúde a negociarem melhores preços.

Veja: uma análise recente do ASCO Value Framework já citada em outra reportagem do Futuro da Saúde conclui que as estimativas de sobrevida no mundo real para terapias contra o câncer foram 16% menores do que a eficácia descrita nas pesquisas clínicas tradicionais.

Isso acontece porque os estudos de fase 1, 2 e 3 são desenhados para excluir quaisquer fatores que possam interferir na eficácia e na segurança do tratamento em si. Se o sujeito tem uma outra doença de base ou é mais idoso, muitas vezes é excluído da seleção. Ao mesmo tempo, são estabelecidos protocolos rígidos para o voluntário seguir a terapia perfeitamente. Já na vida real, pessoas podem esquecer de se medicar, ter comorbidades que fragilizam a saúde, viver em condições precárias etc. E tudo isso, claro, tende a comprometer a efetividade de uma medicação. “Os critérios restritivos de ensaios clínicos convencionais e as análises limitadas, que são feitas para responder a questões específicas, podem não se aplicar a pacientes na vida real”, reitera aquele artigo da Nature Medicine.

“E, com dados de vida real que mostram benefícios não tão positivos quanto os mostrados em estudos clínicos, eu posso voltar à mesa de negociação e repactuar o preço com o fabricante”, argumenta Stefani.

A RWE também é usada para incorporar alternativas às tecnologias de alto custo, como no caso clássico da intercambialidade entre medicamentos biológicos de referência e os biossimilares. Vamos por partes: medicamentos biológicos são aqueles produzidos a partir de organismos vivos ou biotecnologia (é o caso do Herceptin e dos anticorpos monoclonais em geral). Biossimilares são medicamentos criados que tentam mimetizar o produto biológico de referência, após a perda de patente.

Para serem considerados biossimilares, esses fármacos precisam indicar que têm eficácia e segurança estatisticamente equivalentes às do produto de referência. Mas a dúvida que persistia era: entre pacientes que vinham recebendo o biológico original, haveria algum problema em trocar para o biossimilar (o que reduziria custos)? É essa substituição que recebe o nome de intercambialidade.

“Especialmente na Europa, são utilizados dados de vida real de pessoas que fizeram essa troca de medicamento por algum motivo para verificar seu efeito e, a partir daí, justificar a intercambialidade”, explica Stefani. A economia decorrente disso permite fazer investimentos e incorporar outras tecnologias.

Todos somos raros 

As últimas duas décadas marcaram também a multiplicação de opções terapêuticas destinadas às doenças raras, um conjunto de aproximadamente 8 mil condições de baixa prevalência na sociedade – mas que, juntas, afetam mais ou menos 13 milhões de brasileiros.

Um grande desafio com essas enfermidades é cumprir os critérios clássicos das pesquisas clínicas, principalmente as de fase 3, que via de regra exigem um número grande de voluntários e desfechos objetivos e claros de melhoria. “Às vezes, é muito complexo juntar o número necessário de pessoas com uma doença rara para garantir a confiabilidade de um estudo desses”, diz Gustavo Mendes, pesquisador do International Vaccine Institute. “Também pode ser desafiador acompanhar esses voluntários por um longo período para investigar possíveis benefícios que surgem com o tempo”, completa Mendes, que já foi gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Há uma série de condições raras nas quais os benefícios mais objetivos e facilmente mensuráveis de um tratamento demoram anos ou mesmo décadas para aparecerem nas estatísticas de forma significativa. Além disso, vantagens mais difíceis de serem captadas, como ganho de força, desenvolvimento motor e qualidade de vida, podem ficar de fora de um ensaio clínico convencional.

Diante desse cenário, agências como a FDA, que regula medicamentos nos Estados Unidos, passaram a aceitar evidências de vida real em certas situações. É possível, por exemplo, que a droga seja aprovada de forma provisória com um estudo de fase 2 e com o compromisso de uma monitoração a partir de RWE que capte benefícios e dados de segurança. Isso permite oferecer o tratamento às pessoas e, ao mesmo tempo, verificar o potencial real dele, em diversas dimensões da vida.

Ballalai acrescenta que as evidências de vida real ajudam a entender a epidemiologia das doenças raras e, com isso, oferecem previsibilidade à fonte pagadora (seja o governo, sejam os convênios). Explica-se: em doenças raras sem tratamentos adequados, existe um subdiagnóstico especialmente grande, porque os profissionais de saúde não têm muito o que fazer diante da descoberta – logo, não há uma busca ativa ou campanhas de conscientização. “Aí de repente chega uma droga e a fonte pagadora não sabe se vai ter de gastar X ou 100X, porque os dados de incidência são estimativas com grande margem de erro”, destaca Ballalai.

Nesse contexto, ferramentas modernas podem, a partir de bancos de dados que reúnem registros médicos de pacientes, acusar casos com um conjunto de sintomas que aponta para a presença de uma doença rara não diagnosticada. O método não revela qual indivíduo dentro daquele banco de dado tem a enfermidade e não sabe – até porque as informações via de regra são anonimizadas por lei –, porém consegue estimar quantos possíveis casos há em determinado local. “Com maior previsibilidade, a fonte pagadora consegue planejar o orçamento e, possivelmente, incorporar o tratamento”, analisa Ballalai. “E, se houver uma concentração de casos em uma região, é possível concentrar esforços ali para otimizar os recursos públicos”, acrescenta.

Para fechar este capítulo, cabe destacar que, conforme o conhecimento médico avança, o que antes era uma única doença pode se subdividir em várias outras – que, isoladas, às vezes até se enquadram na definição das raras. A oncologia é uma das áreas onde esse conceito se torna mais palpável. No passado, todas as pessoas com um nódulo maligno originado no pulmão possuíam “câncer de pulmão”, e o tratamento era parecido de um paciente para outro. Hoje, os profissionais fazem uma análise molecular da neoplasia e a caracterizam de acordo com as diferentes mutações que apresenta em seu DNA. A estratégia terapêutica, claro, é orientada de acordo com isso.

“Nesse sentido, cada vez mais deveremos pensar em modelos de estudos que consigam avaliar a efetividade de terapias destinadas a poucas pessoas dentro da população em geral”, raciocina Stefani. A lógica vai no sentido da Medicina de Precisão.

A Covid-19 como catalisadora (de novo)

A bem da verdade, o uso das evidências de vida real na área clínica antes da pandemia estava bastante concentrado nas doenças raras e na oncologia. Mas o coronavírus exigiu respostas rápidas. Diante desse desafio, modelos inovadores de pesquisa, entre os quais se encaixa a RWE, foram colocados em prática de forma mais ampla.

Em julho do ano passado a aprovação para uso emergencial no Brasil da vacina Coronavac para crianças de 3 a 5 anos ocorreu com dados de vida real coletados no Chile. “Os pesquisadores de lá aproveitaram que as crianças nessa faixa etária vinham sendo vacinadas e criaram um banco de dados com informações de vida real delas”, recorda-se Mendes. Daí em diante, o Instituto Butantan e a Anvisa conversaram com esses profissionais chilenos para ter acesso aos dados, garantir a confiabilidade dos mesmos e, então, calcular a efetividade e a segurança das doses nesse público.

Em relação a medidas não farmacológicas, dá para dizer que o fecha-e-abre do comércio em vários locais foi orientado com base em evidências de vida real. Dados sobre internação, novos casos e mortes serviram de insumo para as autoridades optarem por apertar ou afrouxar os lockdowns.

Mas o relatório do ranking de tendências farmacoeconômicas da Ispor traz também um episódio de emprego inadequado da RWE. Em maio de 2020, já havia suspeita de que a hidroxicloroquina não era uma boa candidata contra o SARS-CoV-2, porém o debate ainda não estava encerrado. Eis que é publicado um estudo no The Lancet usando informações de um suposto banco de dados levantado pela Surgisphere, uma empresa americana, reforçando que essa medicação era inócua contra a doença em questão. “A Surgisphere alegava ter um registro enorme de dados observacionais, mas a pesquisa trazia números impossivelmente altos e outras discrepâncias. Investigações revelaram que essa base de dados talvez nem tenha existido”, diz o texto da Ispor.

Apesar de diversos experimentos sérios – inclusive com evidências de vida real – terem corroborado que a hidroxicloroquina não beneficiaria pacientes com coronavírus, o escândalo da Surgisphere impulsionou teorias da conspiração de que estariam tentando sabotar o uso dessa medicação. 

De qualquer forma, a Covid-19 abriu as portas das agências regulatórias para aprovações que consideravam outros parâmetros para além dos clássicos ensaios duplo-cego, randomizados e controlados por placebo.

Inovação e complementaridade

Há várias formas de realizar pesquisas com dados de vida real. “Na análise prospectiva, pode-se planejar o que será necessário coletar e qual população será incluída para comprovar a hipótese de que um medicamento ou vacina são efetivos em determinado contexto”, conta Mendes. “Já na retrospectiva, os dados existem e o pesquisador examinará a hipótese a partir do processamento e da análise deles”, complementa. No primeiro caso, gasta-se mais tempo e recursos para angariar uma quantidade de informações adequadas. No segundo, abre-se uma margem maior para vieses e análises ao sabor dos ventos.

Há também como utilizar técnicas de RWE para que, em ensaios clínicos específicos, os grupos de controle sejam constituídos de pessoas da população geral, ou que participaram de outros levantamentos. “São os estudos com grupo controle sintético”, nomeia Ballalai.

Em uma situação hipotética, voluntários para uma nova droga contra o câncer seriam divididos, em um ensaio tradicional, entre:

  • Os que recebem a quimioterapia convencional para a doença e a terapia em teste (braço da intervenção);
  • Os que recebem apenas a quimio e mais um placebo (braço controle).

Já com o grupo de controle sintético, pesquisadores selecionariam, dentro de alguma base de dados, recortes de populações que pudessem ser equiparadas aos do braço da intervenção para efeito de comparação, e que já tivessem recebido a quimioterapia tradicional. Ballalai defende que essa técnica, se bem aplicada, corta custos e acelera o desenvolvimento de novos fármacos, além de evitar a prática de recrutar participantes para, no fim das contas, aplicar um placebo.

“O ceticismo inicial [com o grupo de controle sintético] vinha basicamente da falta precedente”, diz aquele artigo de opinião da Nature Medicine. Entretanto, esse documento destaca que isso vem caindo por terra: nos Estados Unidos, o método foi usado para aprovar o uso da medicação selumetinibe em casos específicos de crianças com neurofibromatose, uma doença rara que gera disfunções neurológicas e motoras.

Contudo, se por um lado não faltam formas de empregar dados de vida real, por outro os especialistas não acreditam que eles varrerão os estudos clínicos do mapa. Em um artigo no LinkedIn, o epidemiologista Maicon Falavigna, da empresa HTA Analyze, afirma que é perigoso tratar a RWE como substituta das pesquisas duplo-cego, randomizadas e com controle de placebo, “uma vez que isso negligencia as preocupações sobre erros sistemáticos (vieses) desses estudos. […] No campo da eficácia clínica, pesquisas de vida real servem como evidência complementar, […] permitindo avaliar a reprodutibilidade e a consistência de resultados observados em estudos clínicos, geralmente em uma população com um espectro mais amplo, e assistida dentro dos seus respectivos sistemas de saúde”.

Essa complementaridade pode, ainda, agregar informações sobre outros desfechos não incluídos nas pesquisas clínicas e custo-efetividade, como mencionado anteriormente. Daí porque a RWE é bastante empregada atualmente para negociar incorporação, fazer mudanças na bula e expandir a indicação de terapias já aprovadas.

“Na prática, é custoso e complexo ficar conduzindo ensaios clínicos para ampliar o acesso de medicações já disponíveis”, diz Stefani. Ele cita o episódio do palbociclibe, um medicamento contra o câncer de mama. Como apenas 1% dos desses tumores acometem homens, em 2019 a FDA liberou o registro a esse público com base em análises de dados de vida real de prontuários eletrônicos. 

No mais, a farmacovigilância (já chamada de fase 4) é um formato de monitoramento de tecnologias de saúde aprovadas com base em dados de vida real. “Para registrar um medicamento no Brasil, o fabricante se compromete a fazer um plano de farmacovigilância. Ele precisa mandar relatórios de tempos em tempos com dados de uso do tratamento na população em geral”, destaca Mendes. Em paralelo, a Anvisa conta com recursos como o VigiMed, um sistema que recebe notificações de profissionais e pessoas comuns sobre eventuais efeitos colaterais de um tratamento. Após receber esses alertas, investigações podem ser conduzidas para verificar eventuais reações adversas não detectadas anteriormente, e que podem ser incluídas na bula ou mesmo culminaram na suspensão do registro.

De 10 mil compostos estudados, apenas um é aprovado para comercialização usando as pesquisas atuais. A RWE pode otimizar isso.

Fonte: Artigo The next generation of evidence-based medicine

As agências regulatórias

Apesar dos exemplos citados ao longo da reportagem, faltam padrões globais para a utilização das evidências de vida real. “Isso não significa que elas não sejam usadas, inclusive no Brasil. O que ocorre é que cada instituição, de acordo com sua infraestrutura e conhecimento, adota critérios diferentes”, esclarece Mendes. Além disso, ele pontua que, no cenário atual, as análises envolvendo RWE não seguem um regramento – é o famoso cada caso é um caso. No caso da Anvisa, reconhecida pela sua capacidade técnica, o quadro atual não preocupa tanto. Já agências mais frágeis de outros países podem acabar incorrendo em riscos por não saberem lidar com essas informações.

Até por isso, organizações como o Conselho Internacional de Harmonização de Requisitos Técnicos para Produtos Farmacêuticos de Uso Humano (ICH, como é conhecido) vêm desenvolvendo um guia que visa trazer pontos-chave sobre a segurança e a confiabilidade dos dados de vida real. O projeto também almeja trazer métodos para coletar de maneira mais uniforme e segura certas informações.

Questionada pela reportagem sobre como está lidando com o assunto, a Anvisa disse não possuir porta-vozes no momento para discutir o assunto. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) do SUS, que faz as recomendações de incorporação de tecnologias de saúde no setor público para o Ministério da Saúde, não respondeu nossas perguntas.

Já a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula a incorporação de tecnologias de saúde no rol de coberturas obrigatórias dos planos de saúde, respondeu às perguntas do Futuro da Saúde com uma nota. Em um trecho, ela diz: “Existem diferentes tipos de estudos de avaliação de uma tecnologia em saúde e todos os tipos de estudo avaliam dois eixos principais – a eficácia/efetividade da tecnologia e o custo do tratamento incluindo a sua utilização, sempre em comparação com a tecnologia já disponível. […] Estudos de vida real se constituem em mais uma ferramenta de análise”.

A qualidade dos dados e os desafios das evidências de vida real

Um ponto que acaba atrasando a implementação plena das evidências de vida real por agências regulatórias é a confiabilidade. “A agência precisa confiar no dado. Para começo de conversa, idealmente esse dado precisa ser rastreável”, pondera Mendes. Não se trata de saber qual o nome e sobrenome do paciente, e sim de conseguir puxar onde as informações foram registradas e armazenadas, quão passíveis de alterações elas são, quem as registrou etc.

A heterogeneidade é outro desafio. Uma mesma informação pode ser coletada de formas diferentes, o que dificulta comparações. “No prontuário, eu posso usar vários códigos para uma mesma doença. Por exemplo: o código de câncer de pulmão é o C34, mas eu também posso usar o R91, de achados anormais do pulmão por exame de imagem, ou o D38, de neoplasia de comportamento incerto “, diz Stefani. “Todos estão corretos a princípio, mas dificultam a unificação dos dados”, complementa.

Há também o risco de duplicidade de informações em certas bases – os dados de um mesmo indivíduo aparecem mais de uma vez. “Há uma técnica computacional chamada de data linkage que pode ajudar nesse sentido. Ela consiste em comparar os dados disponíveis para verificar se eles são muito parecidos com outros da mesma base para, então, unificá-los”, argumenta Ballalai.

Fora isso, dados de vida real possuem limitações inerentes – como a de que não dá para isolar por completo fatores de confusão. Isso abre margem para interpretações equivocadas das evidências.

No artigo Real-world data: a brief review of the methods, applications, challenges and opportunities, publicado em novembro de 2022, os autores se referem ainda à necessidade de as evidências de vida real precisarem contemplar a diversidade, a equidade e a transparência. Ora, não é correto extrapolar dados de populações mais privilegiadas para alegar que uma determinada droga é muito efetiva para todos. Os atores envolvidos precisarão garantir a representatividade no universo da RWE.

Sanitaristas do século 21

Não se pode esquecer que as evidências de mundo real são insumos de grande potencial para a epidemiologia. Ballalai realizou um estudo, por exemplo, em que correlacionou grandes distâncias temporais entre a casa de uma pessoa que teve um infarto e o hospital com maiores taxas de mortalidade. Até dados do Google Maps foram empregados na análise. “Com isso, conseguiríamos distinguir quais regiões precisariam ser abastecidas com medicamentos que minimizam os efeitos do infarto enquanto o paciente está em trânsito, e em quais isso é menos necessário”, aponta. É uma forma de racionalizar recursos públicos e otimizar seus benefícios.

Atualmente, a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) está sendo desenvolvida no Brasil para oferecer diferentes marcadores a pesquisadores, sanitaristas e outros profissionais interessados. Entre as vantagens, haverá menor fragmentação e acesso a dados da assistência básica, hoje deixada de lado pelo DATASUS. Espera-se que ela esteja plenamente operacional até 2028.

Theo Ruprecht

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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