Estudos clínicos com cannabis para registro como medicamento dão passos lentos no Brasil e Anvisa estuda alternativas

Estudos clínicos com cannabis para registro como medicamento dão passos lentos no Brasil e Anvisa estuda alternativas

A partir da autorização sanitária, empresas tem 5 anos para apresentar estudos clínicos com cannabis e solicitar registro como medicamento

By Published On: 03/04/2024
Indústria farmacêutica de cannabis avança lentamente com estudos clínicos, e parte dela cobra extensão do prazo da autorização sanitária.

A partir de 2025 as autorizações sanitárias para a comercialização de produtos derivados de cannabis com fins medicinais no Brasil começam a expirar. Por norma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o registro provisório possui validade de 5 anos e, após esse período, as empresas farmacêuticas precisam registrar os produtos como medicamentos. Para isso, é preciso que desenvolvam estudos clínicos que comprovem a eficácia e segurança dos derivados de cannabis para determinadas patologias ou condições, seguindo as boas práticas do mercado. O processo requer altos investimentos, assim como ocorre na indústria farmacêutica tradicional.

 

Até o momento, apenas 4 das 17 empresas que possuem autorização sanitária para comercialização possuem algum estudo clínico em desenvolvimento onde participam como patrocinador, de acordo com pesquisas nos sistemas da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), do Registro Brasileiro de Estudos Clínicos (ReBEC) e do ClinicalTrials.gov.

A farmacêutica Prati-Donaduzzi, primeira empresa que terá a autorização sanitária expirada, em 2025, já concluiu os estudos de fase 3 e solicitou o registro como medicamento na Anvisa. A expectativa é que ainda neste ano a fabricante obtenha a aprovação da agência e se torne o primeiro caso dessa migração regulatória.

Por outro lado, empresas menores, sem tanta experiência no mercado de medicamentos e com derivados de cannabis como único produto no portfólio, buscam alternativas para ganhar mais tempo para captar recursos e iniciar seus estudos. Através da Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides (BrCann), tentam dialogar com a Anvisa e ganhar uma extensão do prazo, afirmando que a pandemia de Covid-19 provocou dificuldades para a captação de recursos.

Atualmente, a Anvisa desenvolve uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) para discutir a revisão das normativas que regulam as autorizações de comercialização para derivados de cannabis no Brasil. A expectativa de parte do mercado é que a extensão do período de autorização sanitária seja feito ou haja alternativas, como a possibilidade de utilização de dados de vida real no lugar de estudos clínicos tradicionais.

A primeira transição regulatória da cannabis

A farmacêutica nacional Prati-Donaduzzi foi a primeira empresa a conseguir a autorização sanitária para comercializar produtos derivados de cannabis, ainda em 2020. Por isso, também é a primeira indústria que terá a autorização expirada, prevista para abril de 2025. No entanto, já concluiu os estudos de fase 3 e solicitou o registro definitivo, como medicamento.

“É o segundo estudo clínico a nível mundial a chegar nesse estágio de estudo multicêntrico, duplo-cego e controlado, com fins regulatórios. Foi desafiador, porque pegamos uma pandemia no meio, tivemos pacientes comprometidos com problemas respiratórios e comorbidades associadas. Mas felizmente conseguimos fazer entrega de medicamentos em casa e coleta de exames”, afirma Liberato Brum Junior, gerente de inovação e pesquisa clínica da Prati-Donaduzzi.

Os estudos foram realizados com crianças e adolescentes entre 2 e 18 anos com diagnóstico de epilepsia refratária e que utilizam até 4 medicamentos em seu tratamento convencional. O canabidiol entra como terapia adjuvante, apresentando melhoras nos quadros de saúde quando comparado ao uso de placebo. A pesquisa contou com cerca de 150 participantes em 6 centros de estudos em São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Paraná.

De acordo com Liberato, o projeto é case de sucesso de parceria público-privada, sendo desenvolvido em conjunto com a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – Campus Ribeirão Preto (USP-RP), considerada uma das maiores publicadoras de artigos sobre pesquisas com cannabis e seus derivados no mundo. O gerente também aponta que o trabalho desenvolvido é essencial para garantir a eficácia e segurança do medicamento.

“Estamos falando de um produto para a saúde, um medicamento que realmente vai tratar um paciente. Então, temos que ter responsabilidade com isso. A Anvisa tem que ser parabenizada pela norma transitória, porque permitiu a diferentes empresas entrarem nesse mercado, seguindo regras claras e requisitos farmacêuticos”, afirma Liberato.

Sendo a Prati-Donaduzzi a única a concluir os estudos, respeitando o prazo estipulado na autorização sanitária, a empresa discorda da possibilidade de extensão da autorização sanitária. Ao longo do trabalho de pesquisa, cerca de 30 milhões de reais foram investidos, além de 40 reuniões com a Anvisa para acompanhamento e discussão das etapas.

“Canabidiol é um produto extremamente importante para a Prati-Donaduzzi, mas é mais um produto que segue todos os ritos farmacêuticos. Existem empresas de um produto só, que apostam no registro provisório como definitivo, na prorrogação ou extensão dos prazos. Nunca trabalhamos com essa hipótese. Trabalhamos com gastos elevados para cumprir o prazo. É possível fazer”, conclui.

Cenário americano x brasileiro

A Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora americana, aponta que, até o momento, apenas 4 produtos derivados de cannabis possuem registro como medicamentos nos Estados Unidos, sendo vendidos apenas com apresentação de prescrição dada por um profissional de saúde.

Contudo, o canabidiol é facilmente comprados nos Estados Unidos e importados para o Brasil. Isso porque a venda e comercialização desta substância não é ilegal em território americano, estando em uma brecha jurídica. Existem características de acordo com as leis estaduais, mas em geral é comercializado desde que não possua indicação explícita para uma condição de saúde, ou seja, não seja vendido como medicamento.

 

 

No Brasil, existe apenas um medicamento autorizado, da Ipsen. Registrado desde 2017, possui indicação para, de acordo com o fabricante, “melhoria dos sintomas em pacientes adultos com espasticidade moderada a grave devido à esclerose múltipla que não responderam adequadamente a outros medicamentos”.

Qualquer outro produto derivado de cannabis comercializado no Brasil deve seguir a resolução 327 de 2019, que concede autorização sanitária por 5 anos para, após o período, a fabricante apresentar estudos clínicos que comprovem sua eficácia e segurança, registrando de forma definitiva como medicamento.

Existe uma discussão em torno do tema sobre a falta de estudos robustos no mundo. Isso porque, sendo a cannabis uma planta, não há possibilidade de uma empresa patentear uma molécula natural, o que acaba não sendo vantajoso do ponto de vista comercial para algumas indústrias investir em um produto que pode não trazer o retorno esperado – principalmente em mercados como o Estados Unidos.

Fase 1

Outra empresa que já possui autorização do Conep para iniciar os estudos é a GreenCare Pharma. Focada no mercado de cannabis, a empresa foi fundada em 2018 e possui 3 autorizações sanitárias para a comercialização de derivados, sendo que já conta com produtos disponíveis nas farmácias do Brasil. 

A expectativa da empresa é investir 20 milhões de reais nos estudos clínicos. A fase 1 deve ser concluída no 2º semestre de 2024 e segue o cronograma da empresa para solicitar o registro como medicamento dentro do prazo da autorização sanitária concedida pela Anvisa, que expira entre janeiro e maio de 2027.

“Temos investimentos em duas frentes de estudos clínicos. Os estudos de iniciativa do investigador, exploratórios para que possa trazer mais direcionamento e evidências. Estamos testando para diversas patologias e temos 13 iniciativas com 12 instituições diferentes, entre universidades, hospitais e centros de pesquisas. E temos o estudo de registro de medicamento que concluímos a fase pré-clínica em 2023 e vamos iniciar a fase 1”, aponta Fabio Furtado, cofundador e diretor comercial da GreenCare.

Sobre a possibilidade de extensão do prazo para o registro como medicamento, Martin Mattos, chairman da empresa, tem uma visão diferente da expectativa de parte da indústria de canabinoides. De acordo com o que tem acompanhado sobre o tema, ele vê a possibilidade da Anvisa cobrar indicações de que as empresas que possuem autorização sanitária já iniciaram seus estudos antes do fim do prazo.

“Seria injusto, e acredito que a Anvisa pensa assim também, ter empresas que entram para surfar só cinco anos com uma autorização sanitária e que depois, passado o período, vão embora ou trocam de produtos”, avalia o chairman da GreenCare.

Outras empresas

Outras empresas que possuem autorização do Conep são a Aura Pharma e a Verdemed, ambas com autorizações sanitárias que expiram, respectivamente, em 2027 e 2028. Não foram encontrados registros para a Eurofarma, mas a empresa firmou parceria com a Verdemed, anunciada no final do ano passado, para produzir e fornecer o produto no Brasil.

Também há casos de empresas que não possuem o registro de autorização sanitária nem comercializam produtos derivados de cannabis no Brasil, mas que estão desenvolvendo estudos clínicos no país. É o caso, por exemplo, da Cardiol Therapeutics, que possui uma pesquisa em fase 2 para a investigação do uso de canabidiol para recuperação miocárdica na miocardite aguda. O Instituto D’Or é um dos centros de pesquisa no país.

Já a Ease Labs, outra indústria do ramo de cannabis que possui autorização sanitária para comercializar produtos, também não possui registros como patrocinadora de pesquisas clínicas, mas um estudo desenvolvido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HC-FMRP-USP) busca entender os efeitos do canabidiol em cápsulas da marca na atenção e memória em pessoas com Transtorno Obsessivo-Compulsivo.

“A gente já iniciou a condução dos nossos estudos clínicos e estamos nos preparando para caminhar para o registro do produto de cannabis como medicamento. Para isso, a gente precisa de fato que eles sejam concluídos. Neste momento, estrategicamente, não divulgamos os detalhes”, afirma Flávia Guimarães, gerente da área de inteligência científica da Ease Labs.

Ela aponta que a empresa busca investigar outras recomendações que possuem alguma evidência científica da sua eficácia, indo além daquelas que possuem comprovação robusta, como é o caso de epilepsia refratária. Neurologia e psiquiatria estão entre as principais áreas que possuem indícios sobre os possíveis impactos do canabidiol.

Sobre a possibilidade de extensão do registro da autorização sanitária, Flávia é contundente ao apontar que a empresa trabalha para cumprir o prazo estipulado. “Naturalmente, ouvimos as conversas sobre as possibilidades da Anvisa trazer a extensão da autorização em uma possível revisão da resolução. Isso pode ser visto de uma forma positiva, mas hoje trabalhamos dentro da regulação para cumprir o prazo que ela indica”, afirma.

Mais prazo

A  Associação Brasileira da Indústria de Canabinóides (BrCann) afirma que a demanda de parte do setor é principalmente pela extensão do prazo de autorização sanitária. A justificativa gira em torno do impacto da pandemia de Covid-19 para a captação de recursos, o que consequentemente atrasaria os investimentos em pesquisa e desenvolvimento. 

“Os anos de 2022 e 2023 trouxeram impactos significativos para essa indústria, e neste ano estamos enfrentando um momento de correção de mercado, com pressões macroeconômicas e dificuldades geopolíticas, que querendo ou não tornam o horizonte complicado de mensurar”, afirma Bruna Rocha, presidente da BrCann.

Outra demanda gira em torno de aumentar as possibilidades de produtos comercializados no Brasil dentro da autorização sanitária. Atualmente, a resolução permite apenas a comercialização de canabidiol com baixo teor de THC, a principal substância psicoativa da cannabis, o que impede a comercialização do chamado “full spectrum”, extrato da planta que conta com todas as substâncias.

No entanto, esse tipo de derivado pode ser importado. A ideia da indústria é, então, suprir a demanda dos pacientes e aumentar a parcela de produtos de empresas brasileiras em circulação. Com isso, também espera-se obter mais receita para investir na pesquisa e desenvolvimento.

“Quando olhamos para este mercado a longo prazo é inevitável não passarmos pelos estudos não clínicos e pelos estudos clínicos fase 1, 2 e 3. Isso basicamente sinaliza um caminho custoso e oneroso, porque ele se prolonga no tempo e exige investimentos. Quando há diversas distorções imputadas ao negócio e ao mercado de modo geral, naturalmente perde poder de compra, não tem mais a mesma liquidez para investimentos”, argumenta a presidente.

Apesar de não ver um movimento da indústria pela judicialização do tema, Bruna Rocha observa que existe o risco de, caso as empresas não apresentarem estudos clínicos ao final do prazo, surgir um imbróglio jurídico em torno dos tratamentos de pacientes e o acesso a esses produtos derivados de cannabis que ainda não possuam comprovação científica e registro como medicamento.

“De acordo com a resolução, se a empresa não tem o caminho para registro como medicamento endereçado, você simplesmente tira o seu produto do mercado. Isso não se sustenta, por ter a interrupção repentina de um tratamento pelo simples fato desse produto ter saído do mercado”, afirma.

Alternativas

Em nota, a Anvisa afirma que “o processo de revisão da RDC 327/2019 está em fase de Análise de Impacto Regulatório (AIR). Ao final desta etapa, deverá ser publicado um relatório conforme previsto em regulamento. Neste momento, os requisitos e prazos da RDC 327/2019 seguem em vigor”. O cronograma da Agência prevê deliberação final entre outubro e dezembro de 2024, após passar por participação social.

Contudo, existem movimentações que podem dar indícios sobre possíveis alternativas para a extensão da patente ou para as empresas que não apresentarem estudos ao final do prazo. Em matéria publicada no Jota, o site afirma que a diretora Meiruze Freitas apontou que a Anvisa estuda a possibilidade de aceitar dados de vida real como forma de comprovação, ao invés da retirada de produtos do mercado.

No Guia de Boas Práticas sobre o tema, a Anvisa define como dado de mundo real informações “geradas rotineiramente durante todos os processos relacionados ao estado de saúde do paciente ou da prestação de cuidados em saúde coletados de diversas fontes”. Também existe definição para evidência de mundo real, sendo ela a evidência “sobre o uso e os potenciais benefícios ou riscos de um produto médico derivada da análise dos dados de mundo real”.

Procurada por Futuro da Saúde, a Anvisa confirmou a possibilidade, apontando que “a revisão da RDC 327 está em curso e a diretora comentou sobre necessidade de discussão regulatória sobre os produtos no Brasil.”. Contudo, o uso de dados de vida real já foi citado pela Agência em outro momento.

Em documento que reúne “Perguntas e respostas do webinar pesquisa clínica em cannabis medicinal”, ocorrido em maio de 2022, a Anvisa aponta que “assim como no registro, para o desenvolvimento do medicamento também podem ser aceitos dados de literatura e de vida real dependendo da qualidade dos dados e da semelhança dos produtos utilizados. A empresa interessada pode reunir as informações disponíveis sobre o produto e discutir em uma reunião prévia à submissão de registro com as áreas da Anvisa envolvidas com o tema, sendo a avaliação feita caso a caso”.

Para Bruna Rocha, da BrCann, a utilização de dados de vida real pode ser um facilitador para, segundo ela, “um momento embrionário no caminho da indústria farmacêutica. A gente carece até de legislação base sobre o tema. Quando trazemos para o campo a possibilidade de aproveitamento de instrumentos que já são considerados base em diversos outros setores estabelecidos, é uma boa sinalização para aqueles que operam nesse mercado, porque a atenção tem sido prestada pelo regulador”, afirma.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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One Comment

  1. Eduardo Carmona / KannaLab.com 07/04/2024 at 20:28 - Reply

    Parabéns Rafael Machado por essa matéria, rica em detalhes sobre a importância dos estudos clínicos com os óleos a base de Cannabis.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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