Revisão do conceito de erro médico avança no país e acende novo debate

Revisão do conceito de erro médico avança no país e acende novo debate

Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) busca a revisão do conceito e da nomenclatura de “erro médico” nas ações judiciais indenizatórias em todo o território nacional

By Published On: 10/08/2023

Não é de hoje que o debate acerca do conceito “erro médico” gera debates dentro da comunidade científica. Recentemente, no entanto, o tema ganhou força, principalmente após o caso no Piauí, que envolveu o suicídio de um cirurgião que estava sendo investigado pela morte de uma criança após uma intercorrência durante o atendimento médico. Nesse contexto, a diretoria do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) entregou ao Ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), um pedido oficial para a revisão da nomenclatura de “erro médico” nas ações judiciais indenizatórias movida contra profissionais brasileiros.

Segundo o colégio, a expressão traz um pré-julgamento ao profissional. No documento divulgado, a CBC informa que “é entendimento do Colégio que a revisão da nomenclatura de erro médico é caminho do equilíbrio contratual, em resposta ao avanço desmedido da judicialização”.

A publicação reativou uma velha polêmica: a da definição de erro médico. Segundo estudos, o aumento de processos judiciais contra profissionais da saúde superou 1.600% nos últimos 10 anos. O Painel de Estatísticas Processuais de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou que o número de novos processos abertos contra o sistema de saúde público e privado na justiça brasileira cresceu 19% entre 2021 e 2022.

O presidente do CBC, Luiz Carlos von Bahten, defende que a classe busca, “uma vez iniciado o processo contra o médico, queele não seja rotulado inicialmente de erro médico, mas sim como evento adverso em saúde. Uma vez julgado como erro médico, aí sim podem ser feitas as devidas e necessárias divulgações de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM)”, pontua.

Essa necessidade de reavaliação do termo também é compartilhada pela Associação Médica Brasileira (AMB), como aponta o secretário-geral Antonio José Gonçalves: “Se você faz um processo de erro médico, de alguma maneira está conceituando que o médico já cometeu um erro, então isso precisa ser modificado”.

A discussão sobre a nomenclatura de erro médico

Um erro médico é definido como “um ato ilícito cometido pelo médico, no exercício de sua função, em uma das modalidades da culpa prevista no Código Civil de 2002, a lei que define a responsabilidade civil”. E podem ser classificados em três tipos: negligência (quando resultam de falta de atenção e cuidado), imperícia (quando o médico não é totalmente capacitado para realizar o tratamento que gerou o erro) e imprudência (médico opta por procedimento não indicado e não comprovado cientificamente).

Alexandre Menezes, vice-corregedor geral do Conselho Federal de Medicina (CFM), aponta que a Lei 3268, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina, traz para a sociedade uma definição bem clara das atuações e responsabilidades do médico brasileiro:

“Tudo que se relaciona a erro médico é apurado. Temos um departamento de estatística que cobre, analisa, avalia, quantifica e direciona as ações tanto do ponto de vista administrativo, quanto do ponto de vista de envolvimento e engajamento das equipes na questão do treinamento médico”.

Para o vice-corregedor geral do CFM, essa forma é a maneira que o Conselho busca alinhar a questão do erro médico, seja acompanhando e até mesmo punindo, utilizando as ferramentas administrativas existentes da Lei 3268, para que a sociedade seja contemplada naquilo que ela entenda como possível erro ou uma estatística de erro médico.

Porém, Menezes reflete que na medicina há um fator que é o ser humano e isso obviamente sensibiliza a população. “Assim como na aviação existe uma estatística onde há uma falha de um sistema mecânico que causa a morte de pessoas, também ocorrem falhas operacionais e do próprio médico que contribuem para os eventos adversos”, expõe. Dessa forma, acredita que “é preciso clareza por parte da comunidade sobre a definição de cada uma dessas instâncias que podem acontecer durante a atuação do médico”.

Luciana Dadalto, advogada com experiência em direito médico e da saúde e doutora em ciências da saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG, lembra que o termo erro médico é usado no mundo inteiro. “Mas também está cada vez mais criticado porque ele imputa ao próprio médico uma responsabilidade que, normalmente, é sistêmica. E não só o médico. Além de ser o sistema de saúde, existem outros profissionais de saúde que podem também cometer erros”, afirma.

Para ela, parte disso se deve à relação da sociedade com a morte: “Essa negação também tem muito a ver com essa ideia de que a medicina pode tudo. Que há tanta tecnologia e recurso que ninguém morre porque eu tenho recurso para usar. Mas se alguém morre, o erro é de alguém, o erro é do médico”, diz. Ainda na sua opinião, “todo procedimento tem risco e nós nos acostumamos, de alguma forma, a não olhar para esses riscos e nem lidar com eles. Isso se relaciona com a nossa dificuldade de lidar com a morte, finitude”.

Medicina e saúde não são uma ciência exata

A visão sistêmica é necessária porque o erro em um procedimento pode ser cometido não apenas pelo médico, mas pelo próprio hospital, por um problema em algum equipamento ou mesmo por outros profissionais da saúde que também trabalham no local. E há ainda o fato de que medicina não é uma ciência exata, pois é composta de muitos fatores.

“O mau resultado não tem, na realidade, uma referência quanto ao erro médico. Os pacientes, indivíduos e as doenças são diferentes. O que nós temos que analisar quando observamos um processo médico é se as condutas e práticas ideais foram seguidas. Porque os resultados obviamente são sempre buscados para serem os melhores possíveis. Mas não necessariamente o resultado positivo ou negativo significa que houve um procedimento errôneo do indivíduo que estava à frente da equipe”, afirma von Bahten, do Colégio Brasileiro de Cirurgiões.

Nesse sentido, o secretário-geral da Associação Médica Brasileira reflete que a sociedade geralmente encara o erro médico ou a incerteza atrelada à medicina e a saúde de uma maneira não muito adequada: “Na realidade, essa incerteza vai do fato de que a medicina, a saúde, não é uma ciência exata. Tem pessoas que respondem muito bem a determinados tratamentos e outras podem sofrer uma parada cardíaca e até mesmo vir a falecer”.

Por isso, para Gonçalves, é fundamental o esclarecimento aos pacientes dos riscos e o termo de consentimento. “Nós precisamos ponderar sempre a necessidade do esclarecimento, do médico, da equipe de saúde ou mesmo do hospital dos riscos que o paciente está correndo, para que isso fique claro. Hoje é feito obrigatoriamente o termo de consentimento livre e esclarecido, importante documento para o paciente estar ciente de todos os riscos que envolve”, sinaliza.

O aumento da judicialização também reflete na prática clínica. O advogado Renato Assis, especialista em direito médico e odontológico há 17 anos, conselheiro jurídico e científico da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), lembra que a obstetrícia é a especialidade mais demandada judicialmente: “O gatilho para a judicialização contra médicos não é o ‘erro médico’, mas sim, a frustração. E quando algo dá errado nesta especialidade, em regra, as pessoas não superam a frustração e buscam um culpado. Hoje faltam obstetras no país e no mundo, pois com a caça às bruxas que ocorre atualmente, cada vez menos profissionais estão dispostos a se arriscar na especialidade”.

IA e saúde mental colocam mais pressão

Se a pauta da revisão do conceito e da nomenclatura de erro médico pode levar algum tempo, na prática outras transformações significativas estão ocorrendo na rotina do médico. Uma é a inteligência artificial (IA), que apesar dos desafios éticos, legais e de segurança de dados, perspectivas futuras sugerem que a tecnologia continuará a desempenhar um papel cada vez mais importante no campo da medicina.

Os sistemas de inteligência artificial podem analisar grandes quantidades de dados médicos, como registros médicos, exames laboratoriais, imagens médicas e registros de pacientes, para identificar padrões e gerar recomendações baseadas em evidências. Mas se a IA sugere que o médico siga um caminho e ele faz ao contrário ou a recomendação gera um erro, de quem é a culpa? Especialistas alertam que esse é um debate que ainda está começando.

De qualquer forma, Alexandre Menezes, vice-corregedor geral do Conselho Federal de Medicina (CFM), afirma que a IA bem utilizada traz uma melhoria na relação médico/paciente: “O CFM vê com muitos bons olhos essa questão da interveniência da IA porque ela vai aumentar a segurança. Ela pode trazer um acompanhamento melhor do paciente, só traz diagnóstico e velocidade naquilo que é possível dentro da interface médico/paciente. Vemos com ótimos olhos e acreditamos que, em breve espaço de tempo, teremos aí transformações significativas, disruptivas com o propósito do bem maior”.

E outra transformação é o aumento da preocupação com a saúde mental dos profissionais de saúde. A pesquisa “Saúde Mental do Médico 2022”, realizada pelo Research Center, núcleo de pesquisa da Afya, mostrou que 69,4% dos médicos do país já apresentaram sinais de depressão durante a vida, 79,6% apresentaram sintomas de ansiedade e 62% já mostraram sinais de burnout, caracterizado pelo esgotamento físico e mental intenso.

Ainda, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) divulgou um levantamento apontando que, a cada três dias, um médico sofre algum tipo de agressão durante a atividade profissional no estado. São desafios como esses que, atrelados às transformações tecnológicas, colocam mais pressão na categoria e podem explicar a busca pelas mudanças no conceito de erro médico.

Angélica Weise

Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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