Nova era da genômica: ampliação da capacidade de sequenciamento terá impacto na prevenção e no tratamento de doenças na saúde pública
Nova era da genômica: ampliação da capacidade de sequenciamento terá impacto na prevenção e no tratamento de doenças na saúde pública
Evolução da medicina genômica já mostra resultados em áreas como oncologia e doenças raras; tendência é avançar também para condições crônicas
A medicina genômica vem conquistando seu lugar sob os holofotes das novas tecnologias de saúde há alguns anos. Quando o primeiro projeto sobre sequenciamento do genoma humano foi lançado, ainda na década de 1990, o código genético humano era um campo misterioso. Trinta anos depois, o mapeamento completo das sequências se tornou uma realidade, mas é apenas o começo de uma jornada rumo aos avanços de uma medicina cada vez mais personalizada. Com a ampliação de pesquisas, novos saltos tecnológicos e ganhos de escala, já é possível imaginar um futuro em que o sequenciamento de genoma mude a vida de mais pessoas e impacte a sustentabilidade dos sistemas de saúde.
“Acredito que, em alguns anos, todos terão o genoma sequenciado ao nascimento. Dessa forma, teremos essa informação disponível para quando precisarmos utilizá-la”, aposta o imunologista João Bosco de Oliveira Filho, gerente médico de Genômica do Hospital Israelita Albert Einstein e coordenador do projeto Genomas Raros. “Isso será muito importante para questões relacionadas às doenças raras, ao metabolismo de medicamentos e à prevenção de doenças. Caso detectada uma alteração que provoque risco elevado de alguma doença, por exemplo, será possível implementar medidas preventivas precocemente. Ainda, a expansão do conhecimento sobre as bases genéticas das doenças comuns, como as doenças do coração, vai permitir escalar a adoção do sequenciamento para a população geral, com o potencial de salvar muitas vidas. Essa é a grande expectativa.”
A oncologia, por exemplo, passou a redefinir os tratamentos de diversos tipos de cânceres após ter acesso à estrutura molecular dos tumores. Hoje, não se trata doenças como o câncer de pulmão ou de mama sem antes estudar a genética do tumor, que direciona e torna o tratamento muito mais efetivo. As doenças raras também têm se beneficiado das descobertas recentes. Condições como fibrose cística e Atrofia Muscular Espinhal (AME) são algumas que foram contempladas por novas terapias, baseadas na genômica. E não para por aí: diabetes e doenças cardiovasculares podem ter os rumos de prevenção e tratamento repensados em breve.
“Até 20 anos atrás, a genômica era uma especialidade muito acadêmica, sem aplicabilidade no mundo clínico”, lembra Bosco. “Esse cenário começou a mudar rapidamente quando os dois rascunhos do projeto de cooperação internacional Genoma Humano foram publicados, lá em 2001. Com isso, finalmente tínhamos pelo menos um mapa. Até então, se você quisesse chegar a determinada doença, não havia esse direcionamento claro. Foi um grande marco.”
Expansão da genômica na saúde pública
Com o crescimento acelerado dos estudos e pesquisas sobre o genoma humano, cientistas já começam a avaliar o impacto de grandes sequenciamentos populacionais para estratégias de saúde pública. Recentemente, o projeto britânico UK Biobank anunciou o sequenciamento completo de 500 mil cidadãos do Reino Unido, se estabelecendo como o maior banco de dados genéticos aberto para cientistas de todo o mundo.
A novidade foi celebrada na comunidade de pesquisadores e seu impacto deve ficar claro nos próximos anos, quando os especialistas se debruçarem sobre o montante de dados. “Quando os cientistas quiserem saber quais são os marcadores do estilo de vida, do ambiente e da genética até as doenças, não irão mais ao Google, irão ao UK Biobank”, declarou Rory Collins, CEO do UK Biobank, em entrevista à revista científica Nature.
A aposta é de que, com um volume representativo dessa proporção, seja possível começar a estudar quais genes ou alterações poligênicas estão associadas a um maior risco de desenvolver doenças de alta incidência, principalmente as crônicas, e basear as estratégias de saúde pública nos dados genéticos de cada população. O foco é na prevenção, o que além de aumentar a qualidade de vida dos indivíduos, pode ser também um braço para melhor aplicação de recursos dos sistemas de saúde.
“Estamos entrando em uma era em que será possível descobrir as causas também de risco aumentado para o desenvolvimento de doenças comuns, como as doenças arteriais coronarianas – principal causa de morte no mundo –, diabetes, entre outras. São doenças que não são causadas pela alteração de um gene específico, mas pela soma de pequenas alterações genômicas que, quando acumuladas, podem deixar o indivíduo num espectro de risco muito mais alto, até quatro vezes acima da população geral”, explicou Collins.
Próximos passos no Brasil
No Brasil, a área também tem deslanchado. Em 2020, o Governo Federal lançou o projeto Genomas Brasil, que tem como meta mapear o genoma de 100 mil brasileiros nos próximos anos. A iniciativa foi dividida em duas frentes: melhoria e acurácia dos diagnósticos e no emprego de terapias avançadas (como as terapias celulares, gênicas e de bioengenharia de tecidos à base de células humanas).
“Até então, a gente não tinha isso no Brasil de forma estruturada”, pontua Bosco. “Já temos o sequenciamento completo de pouco mais de 20.000 brasileiros. Agora, na próxima etapa, devemos dobrar esse número. Ainda é uma amostra extremamente modesta para a descoberta de genes de doenças comuns, mas é um bom passo na direção correta.”
A boa notícia é que a tecnologia vem, aos poucos, sendo barateada e permitindo a ampliação em escala. Se antes a aquisição de um genoma atingia a casa de dezenas de milhões de dólares, como relembra o imunologista, hoje o custo fica em torno de 400 dólares. “Já há promessas de máquinas que vão fazer o genoma por 200, 100 dólares. É o poder da escala de 2008 para cá”, afirma o imunologista.
Apesar do acesso aos equipamentos e da diminuição dos custos de pesquisa, a desigualdade no acesso final ainda é uma realidade. Para o comprador final, governos ou pacientes, o preço de chegada ao mercado ainda é alto. Por isso, fomentar projetos de pesquisa é tão relevante, já que, para a maior parte da população, essa é a única forma de acesso a esse tipo de tecnologia.
“O acesso é muito desigual”, afirma Bosco. “Desde ferramentas mais simples de genética, como o teste para identificar risco de câncer de mama, com indicação clara por órgãos de saúde, até testes mais complexos. Acaba sendo algo restrito aos pacientes da saúde suplementar. Há um desequilíbrio muito grande de acesso aos testes genéticos no Brasil atualmente, e as pessoas dependem dos projetos de pesquisa.”
No âmbito desta iniciativa veio também o Genomas Raros, projeto realizado em parceria entre o Ministério da Saúde e o Einstein por meio do PROADI-SUS, que tem o objetivo de fazer o sequenciamento genômico completo de indivíduos com doenças raras, incluindo as síndromes de risco hereditário de câncer. “Ao longo de três anos, já recrutamos mais de 8.400 pacientes. Sequenciamos praticamente todos eles e diagnosticamos em torno de 4.000. Já é atualmente o maior banco de dados de genoma no país”, afirma.
A nova etapa do Genomas Raros deve contar inclusive com uma pesquisa de custo-efetividade, para mostrar com dados concretos os benefícios da incorporação do sequenciamento genético no SUS, não só para a saúde, como também para o orçamento da saúde pública. “Queremos mostrar que há utilidade clínica e também pode ser custo-efetivo, ou seja, merece ser implementado no SUS para a diminuição de custo da assistência desse paciente, caso ele venha a desenvolver a doença”, avalia Bosco.
Redefinindo a jornada do paciente raro
São muitos os obstáculos enfrentados pelos pacientes portadores de doenças raras. Só no Brasil, a estimativa é de que quase 15 milhões de pessoas vivam com alguma das cerca de 9 mil condições raras conhecidas atualmente pela medicina. Destas, cerca de 70% teriam origem genética, assim como 1 a cada 5 tumores raros.
Para esses pacientes, o desafio começa muito antes da descoberta da condição, ainda no diagnóstico. A falta de conhecimento e profissionais especializados faz com que a jornada de quem tem uma condição rara seja longa dentro do sistema de saúde – em torno de 6 a 9 anos até chegar ao diagnóstico. Esse é um dos principais marcos do uso clínico da genômica, uma vez que o sequenciamento do DNA do indivíduo pode reduzir drasticamente a espera por respostas.
“Na atenção primária, poucos têm esse conhecimento [sobre doenças raras], então o paciente fica rodando. Faz um teste aqui, um ali, e isso obviamente pode piorar o prognóstico, trazer complicações. E é exatamente onde o sequenciamento do genoma pode entrar para auxiliar nesse diagnóstico”, pontua Bosco.
Além do diagnóstico, a genética também tem o seu papel na definição da conduta de cuidado. Para além das terapias desenvolvidas para alterações genéticas específicas, ter um esclarecimento maior sobre a condição por si só pode ajudar a equipe multidisciplinar a traçar estratégias de tratamento mais adequadas para aquele paciente.
Bosco salienta que, das doenças raras já identificadas, poucas já têm disponível alguma terapia gênica. “Mas, dos casos que diagnosticamos no Genomas Raros, percebemos que pouco mais de 30% dos pacientes têm a conduta médica alterada, mesmo que com medicamentos comuns já disponíveis no mercado. São feitas reavaliações de prognóstico, de recomendação de fisioterapia, de implementação de ferramentas para diminuir o risco de uma segunda doença que poderia vir a surgir.”
Desafio da capacitação
Para pensar em ampliação dessa área, é preciso pensar também em capacitação. Bosco argumenta que hoje o maior desafio não é o acesso à tecnologia em si – uma vez que essa tem apresentado queda no valor – e sim na capacitação de profissionais que sejam capazes de interpretar os dados gerados a partir do sequenciamento. “É um típico caso em que a tecnologia avançou mais do que a nossa capacidade de treinamento”, acredita.
O salto tecnológico e as novidades quase diárias estão na lista de desafios das escolas de medicina, que devem procurar alternativas para preparar os futuros profissionais. “E é um desafio de fato, porque os ciclos de formação médica são longos, em média nove, dez anos. Ainda temos um problema muito sério de conhecimento do porquê e de como utilizar essas ferramentas, como interpretar os resultados”, afirma.
Ele lembra que no Einstein há pós-graduações específicas, como oncogenética e hematologia molecular, em que esse estudo já está estabelecido. E completa: “Na graduação de medicina do Einstein, a partir do terceiro ano, os alunos começam a ter esse contato maior com genética. Não há outro caminho, precisamos trazer isso para a faculdade. Nosso papel é educar.”
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.