“Havia centenas de solicitações travadas e um sistema fechado para novos pedidos”, diz Sônia Barros

“Havia centenas de solicitações travadas e um sistema fechado para novos pedidos”, diz Sônia Barros

Em entrevista ao Futuro da Saúde, diretora do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde falou sobre trabalho de retomada da pasta e planejamento para o próximo ano

By Published On: 11/12/2024
“Nós encontramos uma situação de fila: centenas de solicitações travadas e um sistema fechado para pedir novos serviços” diz Sônia Barros

Foto: Divulgação

Desde que assumiu a direção do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, em março de 2023, Sônia Barros enfrentou desafios significativos, como a reestruturação do departamento, a formação de equipes e o restabelecimento de programas de capacitação contínua. Em entrevista exclusiva ao Futuro da Saúde, a diretora destacou as prioridades iniciais da gestão nos últimos dois anos, com foco especial em destravar as filas de solicitações pendentes. Para garantir os avanços na gestão da pasta, o orçamento desempenhou um papel importante, registrando um aumento 50% em dois anos. Nesse período, o Governo Federal reforçou o financiamento anual da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) com um acréscimo de R$ 383 milhões.

Um dos principais objetivos para o próximo ano é a expansão contínua da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que engloba uma série de serviços destinados ao atendimento de pessoas com sofrimento mental e com necessidades relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Atualmente, a RAPS é composta por 2.947 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), 890 Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), 80 Unidades de Acolhimento (UAs) e mais de 2 mil leitos de saúde mental em hospitais espalhados por todo o Brasil.

Na entrevista, Barros também mencionou que está previsto apoio à desinstitucionalização das pessoas internadas em hospitais psiquiátricos, por meio da Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Além disso, destacou o curso “Nós na Rede”, que terá início em fevereiro e tem como objetivo capacitar mais de 40 mil trabalhadores em todo o país.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Quais serão os principais focos do departamento para o próximo ano? 

Sônia Barros – A expansão da rede continua sendo uma prioridade, ela é a base, o fundamento. A educação permanente para os trabalhadores também permanece como foco. Em 2025, pensamos que podemos ser mais incisivos.

“Tivemos um ano de organização no departamento, e a expansão da rede foi privilegiada, mas agora é o momento de também intensificar a questão da capacitação. Além disso, algo que está no nosso planejamento para o próximo ano é o investimento em ações de inclusão social e de institucionalização. Desde janeiro, estamos preparando formas de valorizar e garantir sustentabilidade a projetos de geração de renda, nos quais os usuários possam participar e ganhar autonomia”.

Eles já existem em todo o país, mas muitos enfrentam dificuldades financeiras, o que, muitas vezes, impede até o registro como associação. Também estamos investindo em projetos de arte e cultura com o mesmo propósito. Estamos também focados em implementar ações que abordem questões de racismo nos serviços de saúde mental. Já estamos avançando nesse sentido e, acredito, que o próximo ano será crucial para a implementação de comitês antirracistas dentro dos serviços de saúde.

Há outras ações planejadas que merecem atenção?

Sônia Barros – Temos, sim. Algumas ações já estão em andamento. Um exemplo é o apoio à Resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que trata da desinstitucionalização das pessoas internadas em hospitais de tratamento psiquiátrico. O CNJ reconhece que essas pessoas, assim como aquelas em hospitais psiquiátricos, têm direito ao processo. Estamos apoiando essa medida, com foco nos estados que têm maior população em hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (HCTPs). Criamos e assumimos as equipes de apoio à desinstitucionalização. Em dezembro deste ano, abrimos o cadastramento para os estados, permitindo que eles formem essas equipes. De fato, considero um grande avanço, quase uma novidade. Isso é extremamente importante na política de saúde mental: ampliar tanto a compreensão quanto a efetivação da desinstitucionalização, com foco nas equipes de apoio e nos HCTPs.

Você acredita que, nos próximos anos, conseguiremos avançar significativamente nas questões da saúde mental e desinstitucionalização? Quais são os principais marcos que você espera alcançar nesse período?

Sônia Barros – Eu diria que, nos próximos dois anos, vamos nos concentrar em avançar bastante na questão da desinstitucionalização, para garantir a continuidade a uma política construída agora. Espero que, nos próximos cinco anos, o progresso continue. Contudo, pensando em gestão, temos um foco de dois anos para fortalecer e criar projetos que, em sua essência, não possam ser facilmente desfeitos. Outro assunto importante é a continuação da revisão das portarias, já que ainda temos elementos autoritários que precisamos eliminar.

Como você avalia a situação em que encontrou a Política Nacional de Saúde Mental ao assumir o departamento de saúde mental, em 2023? Quais foram os principais desafios na sua retomada?

Sônia Barros – Ao assumir o departamento, nós tivemos desafios iniciais, como a própria criação e a mudança da estrutura de uma coordenação para o departamento. Você já enfrenta o primeiro desafio, que é estruturar o departamento. Isso significa se apropriar de fluxos burocráticos e até recursos humanos para essa atividade. Enfim, acho que o primeiro desafio foi esse.

O que significa estruturar um departamento?

Sônia Barros – É iniciar uma estrutura nova, um departamento. Chegamos numa situação em que o Ministério da Saúde, como um todo, e a política de saúde, de forma geral, estavam completamente deteriorados. A saúde mental e, principalmente, a política sobre drogas estavam detonadas. Nós encontramos uma situação de fila: uma verdadeira ‘caça à chave’ para a habilitação de novos serviços. Havia centenas de solicitações travadas, um sistema fechado para que os municípios pudessem pedir novos serviços, processos em atraso e um corpo de trabalhadores dedicado, mas extremamente reduzido. Além disso, tivemos que lidar com a normatização feita no período de 2016 a 2022, que era completamente oposta ao modelo proposto pela Política Nacional de Saúde Mental, construída ao longo de 40 anos. Resumindo, esses foram os desafios que encontramos e que, processualmente, continuamos enfrentando. Começamos pela estruturação do departamento e pela aquisição de recursos humanos. 

E depois?

Sônia Barros – A primeira medida foi destravar a fila, analisar os processos e solicitações existentes no sistema e reabri-lo para que novas solicitações pudessem ser feitas. Por que isso é um desafio? Porque com o pequeno grupo de técnicos disponível, era um trabalho gigantesco. Então, enfrentamos esse desafio e fomos estruturando o departamento aos poucos. Isso envolveu organizar o espaço físico, porque não se trata apenas de pessoas: é necessário espaço, máquinas, enfim, toda a infraestrutura. Fomos avançando nesse processo, com os recursos humanos chegando gradualmente. Ainda estamos em processo de estruturação, incluindo a contratação de pessoal e a negociação por espaços físicos. Entre março de 2023 e agora, dezembro de 2024, acredito que houve um avanço significativo.

“Conseguimos superar muitos desses desafios iniciais. Inclusive, revogamos e negociamos as portarias mais prejudiciais daquele período ao qual me referi. Foi um passo importante para consolidar as mudanças necessárias. Conseguimos retirar da frente algumas portarias que eram, de imediato, bastante danosas para a política de saúde mental. No entanto, ainda não terminamos, pois há muito a ser revisado e modificado na legislação”. 

Às vezes, encontramos pequenas armadilhas em lugares inesperados: uma frase dentro de um parágrafo, uma palavrinha, que acaba mudando todo o sentido da política. É um processo de revisão contínuo, que ainda estamos conduzindo.

Você mencionou a abertura de filas para habilitação de novos serviços. Poderia explicar, na prática, como isso impactou os municípios e o processo de criação de novos serviços de atendimento?

Sônia Barros – Os municípios, a partir de uma documentação, encaminham pedidos dentro do sistema, que podem ser para a abertura de serviços ou para a habilitação de serviços que já estão funcionando no atendimento da rede de atenção psicossocial. São carros, unidades de acolhimento, serviços residenciais terapêuticos, leitos de saúde mental em hospitais gerais – pedidos para todos os dispositivos da rede de atenção psicossocial que os municípios podem e devem encaminhar. Centenas desses pedidos estavam travados, ou seja, não foram analisados. Isso também travou a abertura de novos processos. Decidimos, então encarar as duas questões: olhar para quem estava aguardando na fila e também abrir a possibilidade para os novos pedidos. Isso significou, claro, um acúmulo de trabalho, e demorou para conseguirmos dar conta, por causa do grande volume de solicitações pendentes e demandas.

Quais os principais avanços até agora no apoio ao atendimento à saúde mental? O que ainda precisa ser feito? Falta mais orçamento, mais equipes ou mais cursos de formação?

Sônia Barros – Estamos expandindo o número de serviços e, claro, a contratação das equipes fica por conta dos municípios e dos serviços. No entanto, o avanço foi a recomposição do custeio desses serviços. Eles tinham um valor que estava há 10 anos sem qualquer reajuste. Muitos serviços que já estavam funcionando não estavam sendo habilitados porque não havia porta para solicitação. E, para aqueles que já estavam habilitados, a falta de reajuste do recurso significava mais oneração. Em 2023, o Serviço Residencial Terapêutico (SRT) conseguiu um reajuste de 27%.

“Este ano, o reajuste foi de mais 20%, o que, somado, resultou em uma média de 51% de aumento no custeio desses dois serviços. Quanto às unidades de acolhimento, houve um reajuste de 100% no custeio. Isso é fundamental para que o município possa contratar e qualificar suas equipes, e assim ter um quadro mais completo, com estruturas físicas mais adequadas. É um incentivo para que o município pense: ‘Posso abrir portas que não vão sobrecarregar meu orçamento’.”

E quanto à educação permanente para os técnicos? O que está previsto para esse aspecto no planejamento?

Sônia Barros – Existe a necessidade de educação permanente para os técnicos. Sabemos que haverá uma renovação das equipes técnicas, por causa dos contratos locais. Porque, ao longo do caminho, vão surgindo coisas novas também. Nós tivemos um aumento da questão do autismo, por exemplo, agora tem as Bets, que são todos temas que vão tomando proporções maiores. E aí precisamos retomar a educação permanente, pois entendemos que não adianta ter um número de serviços se você não tem uma equipe qualificada, entendendo esses processos. Avançamos um pouco neste aspecto e temos como projeção ampliar ao máximo possível o investimento em educação permanente.

Você percebe um maior interesse ou abertura da sociedade, incluindo os próprios familiares e usuários, para a saúde mental, em comparação com alguns anos atrás?

Sônia Barros – Olha, minha impressão é de que, algumas décadas atrás, tínhamos uma participação mais intensa de familiares e usuários na condução da política, via Conselho Nacional de Saúde, conselhos estaduais. Hoje, nós continuamos tendo grupos atuantes, mas percebo que a presença de usuários e familiares da saúde mental nas organizações mais institucionalizadas é pequena, atualmente. No departamento, temos como meta pensar em formas de aumentar o protagonismo de usuários e familiares. Ainda estamos tentando entender como vamos fazer isso, porque, é claro, é preciso recursos. As associações têm dificuldade de sobreviver e de deslocar seus membros. Temos grupos de trabalho que estão discutindo temas mais específicos e sempre convidamos associações, de usuários, familiares, e outros para participar. Em algumas áreas, o processo é mais fácil, em outras, mais difícil, mas estamos nesse percurso. 

Como vocês pensam a educação permanente em relação às Bets? 

Sônia Barros – A questão do que se chama ‘ludopatia’ não difere de outras formas de dependência, vamos dizer assim. A dependência apenas se desloca de objeto: é álcool, algum tipo de droga e, neste caso, é o jogo. Assim, a forma de abordagem e tratamento não tem grande diferença com relação a outros vícios. Não existe nenhum medicamento específico para quem tem problemas com jogo ou com uso de álcool. O que difere é a singularidade de cada sujeito. A nossa rede fez um salto importante, se expandiu, mas precisamos de mais serviços, equipes. E precisamos trabalhar com essas equipes essa história específica. O papel do Ministério da Saúde será no sentido de desmistificar questões morais do senso comum ligadas aos vícios e reativar uma memória do que é tratar pessoas que têm problemas com o uso de substâncias ou uso sem substâncias, como é a questão do jogo.

Existe algo estruturado para 2025?

Sônia Barros – Lançamos um curso, junto com a Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério da Saúde e a Fiocruz, para capacitar mais de 40 mil trabalhadores no país a partir de fevereiro de 2025. Em um de seus módulos, será abordada essa questão de álcool, drogas, jogos. E essa capacitação também será feita a partir da perspectiva da redução de danos, que também é válida para a questão do vício. Além dele, também estamos trabalhando em uma proposta de curso específico, com essa perspectiva de adição de jogos. Esse tema ainda é novo no país, apesar do nosso histórico com jogo do bicho. Não temos essa qualificação disso como um problema de saúde, como uma possibilidade de adição. Há alguns grupos de pesquisadores trabalhando com isso. E a nossa rede já está mobilizando coordenadores estaduais, governadores municipais das capitais para que essa questão comece a ser problematizada.

Angélica Weise

Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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Jornalista formada pela UNISC e com Mestrado em Tecnologias Educacionais em Rede pela UFSM. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou nos portais Lunetas, Drauzio Varella e Aupa.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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