Engenharia clínica: área pode ser estratégica na busca por sustentabilidade
Engenharia clínica: área pode ser estratégica na busca por sustentabilidade
Especialidade deve colaborar com o futuro da saúde, mas desafios passam por regulamentação, formação e inserção no contexto de tomada de decisão
Com a evolução da ciência atrelada aos avanços da tecnologia, houve uma grande revolução no setor da saúde em vários contextos. Tanto o momento atual como o futuro da medicina passam pela implementação de tecnologias, equipamentos mais modernos, robôs, soluções baseadas em inteligência artificial (IA), nanotecnologia, dentre outros avanços. Nesse contexto, uma área que, até então, costumava atuar nos bastidores, começa a ganhar mais espaço dentro das instituições de saúde: a engenharia clínica. Com uma saúde mais tecnológica e digital a cada dia que passa, o engenheiro clínico tem ganhado mais responsabilidades no seu escopo de atuação, mas ainda há desafios para a profissão, como a regulamentação, formação mais estruturada e a própria valorização da atividade.
Na prática, são os engenheiros clínicos os responsáveis por integrar as técnicas de engenharia com o conhecimento clínico para gerenciar as tecnologias médicas. Eles sempre foram cruciais dentro dos processos que garantem a qualidade e a segurança dos pacientes. Hoje, contudo, suas habilidades têm sido cada vez mais requisitadas em outras áreas como parte da tomada de decisão que avalia o custo-benefício da aquisição de novas máquinas e implementação de novas terapias a longo prazo, estratégias indispensáveis para a sustentabilidade do sistema. O tema foi pauta da primeira edição do Congresso Brasileiro Einstein de Engenharia Clínica, realizado no fim de outubro pelo Hospital Israelita Albert Einstein.
“O foco da engenharia clínica vai muito além da manutenção corretiva. É uma área que precisa atuar do lado do médico, do paciente e do negócio”, afirma Antonio Gibertoni Junior, gerente de engenharia clínica do Einstein. “Se contribuirmos para aumentar a produtividade e diminuir despesas, vamos otimizar o sistema e facilitar o acesso.”
Dentre os assuntos que dominaram o debate estão o uso de IA, tecnologias robóticas, avanços na legislação e regulamentação das tecnologias e da profissão, papel da engenharia clínica nos hospitais do futuro e o cenário do setor no Brasil e na América Latina.
Papel da engenharia clínica no ecossistema de saúde
No Einstein, uma das frentes inovadoras que unem tecnologia, saúde e engenharia clínica é a Central de Monitoramento Assistencial (CMOA), com foco na gestão da operação hospitalar como um todo. A partir da implementação de câmeras, sensores de movimentos e outros dispositivos – todos conectados à mesma plataforma –, uma equipe de profissionais realiza o acompanhamento em tempo real dos pacientes. Não só isso: atua também na verificação e controle de diversos outros itens que impactam a gestão da instituição como um todo.
Segundo Claudia Laselva, diretora da Unidade Morumbi e de práticas assistenciais do Einstein, essa atuação conjunta entre engenharia clínica e demais áreas tem o potencial de resolver questões importantes. “Dos principais desafios que temos hoje na área da saúde, um está relacionado à qualificação dos nossos serviços, a oferecer um cuidado de excelência e segurança aos pacientes e também aos profissionais de saúde”, afirma. “Outro é garantir uma eficiência operacional”.
Ainda nesse contexto, há também o desafio de ganhar escala com novas tecnologias, mas buscando alternativas factíveis frente ao cenário de custos. Mais um motivo para incentivar a participação ativa dos engenheiros clínicos no cenário industrial brasileiro, segundo Laselva: “Para nós, é uma perspectiva real, especialmente se formos capazes de desenvolver esses dispositivos aqui no Brasil, para tornar a tecnologia mais acessível. Isso é uma possibilidade enorme para que engenheiros clínicos pensem nesse desenvolvimento, nessas alternativas”.
Evoluir com foco na qualidade e segurança do paciente
O avanço tecnológico na saúde, principalmente quando envolve o uso de IA, tem exigido cada vez mais a reflexão sobre uma nova configuração que integre adequadamente os engenheiros clínicos no dia a dia dos hospitais, a fim não apenas de otimizar recursos, mas também garantir maiores segurança ao paciente e qualidade do serviço.
“A inteligência artificial já tem o seu papel nos hospitais, como no diagnóstico de doenças, planejamento de tratamentos, assistentes virtuais, chatbots que facilitam a comunicação com o paciente, coletam informações direcionando pré-atendimentos”, exemplifica Laselva. “Como vivemos uma revolução digital, tudo precisa estar conectado e com interoperabilidade. Sabemos como os hospitais são feitos de diversos processos e integrá-los deve ser uma busca obstinada das instituições.”
É nesse ambiente que a engenharia clínica precisa ser inserida, inclusive com novas áreas de conhecimento e responsabilidades, como aponta Yadin David, engenheiro biomédico pela West Virginia University e editor-chefe do Global Clinical Engineering Journal, que também participou do encontro.
“A demanda pela inteligência e por dados médicos está aumentando. Temos mais sensores, mais detectores, mais monitores, um volume significativo de instrumentos cirúrgicos e dispositivos como nunca tínhamos visto antes”, avaliou David. “Quando olhamos para tudo isso, vemos que a condução desse crescimento passa pela tecnologia da informação, e nós, engenheiros clínicos, devemos estar preparados para tudo isso”.
Ele destaca que esse movimento também exige um novo nível de proximidade entre engenheiros clínicos e pacientes e cita a cirurgia robótica como exemplo da nova relação entre paciente, engenheiro clínico e médico. “Na cirurgia robótica, os instrumentos estão próximos do paciente, mas não necessariamente do cirurgião, como ocorre numa cirurgia tradicional. Na robótica, o cirurgião está na estação de trabalho. Por outro lado, o engenheiro está mais próximo do paciente, porque nesta estação de trabalho existem dados e sensores sendo direcionados mecanicamente e eletronicamente a partir de um computador”, conclui.
Déficit de capacitação
No Brasil, a profissão de engenharia clínica deu seus primeiros passos ainda na década de 90, mas foi apenas em 2002 que um grupo de engenheiros clínicos se reuniu para criar a Associação Brasileira de Engenharia Clínica (Abeclin). O principal objetivo era a regulamentação dessa atividade profissional. Depois de anos de impasses e discussões, essa ainda é uma área cinzenta, uma vez que ainda não há consenso sobre as atribuições e sobre quem pode exercer a ocupação.
Esse cenário impacta a própria capacitação disponível no Brasil. Não regulamentada pelo MEC como curso de graduação, a formação é realizada através de pós-graduação, cursos de especialização ou dentro do currículo de engenharia biomédica.
Durante o evento, Saide Calil, doutor em engenharia biomédica pela Universidade London e professor aposentado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destacou as particularidades da engenharia clínica brasileira, principalmente comparada com o modelo de atuação e de capacitação europeu, norte-americano e australiano. Segundo ele, as diferenças estão diretamente ligadas às demandas de cada região e de cada ecossistema de saúde.
“Atualmente, a educação está mudando não só no Brasil, mas no mundo todo. Primeiro, porque as tecnologias na área médica estão evoluindo. Quem trabalha em hospital sabe que todo dia chega alguma coisa diferente, e é muito difícil para o engenheiro clínico ficar na zona de conforto. Acho que nenhuma profissão permite isso, mas para o engenheiro clínico as coisas correm muito mais rápido”, afirmou.
Junto com o surgimento de novas tendências da medicina no desenvolvimento de novas tecnologias – como a nanomedicina e a biomedicina na liderança de novas terapias e tratamentos, com elementos como grafeno e nanosensores –, o novo modelo de saúde exige também que os novos profissionais tenham noções de “administração, finanças, informática, segurança, gerenciamento de projetos, dentre outros”, ressalta Calil. “A engenharia clínica cresceu, e eu a visualizo seguindo um caminho semelhante ao da medicina, com o foco em especialistas em determinadas áreas. O engenheiro clínico não vai conseguir dar conta de tudo como acontecia no início dos anos 2000”, reflete.
Engenheiro clínico como parte das decisões estratégicas
Diante de todo esse cenário, Calil aponta que há uma percepção de uma nova demanda das organizações de saúde em incluir os engenheiros clínicos em assuntos estratégicos e tomadas de decisão. Com o conhecimento técnico sobre os equipamentos associados aos conhecimentos clínicos e de gerenciamento de recursos, os engenheiros clínicos podem até mesmo entregar uma visão financeira, uma vez que podem avaliar o custo-benefício da aquisição de novas máquinas e implementação de novas terapias a longo prazo.
Mas, para ele, ainda é um movimento inicial: “Os tomadores de decisão na área de saúde desconhecem essa habilidade do engenheiro clínico. A culpa não necessariamente é deles, porque muitas vezes o próprio engenheiro não se sente confiante para falar sobre a área econômica com propriedade: ele acha arriscado e segue atuando apenas na manutenção de equipamentos”.
Por isso, Gibertoni Junior ressaltou a necessidade de valorização desse tipo de profissional: “A gente precisa de fato participar de associações, de grupos de trabalho, sempre estudando e nos aprimorando para promovermos encontros como esse e levar informação sobre a nossa área”.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.