Design e inclusão: como o olhar para a equidade pode transformar a inovação em mais acesso
Design e inclusão: como o olhar para a equidade pode transformar a inovação em mais acesso
Abordagem foca em pensar a diversidade desde as fases iniciais do desenvolvimento de uma nova tecnologia, processo ou inovação, em prol da equidade
Novos dispositivos e sistemas, como inteligência artificial (IA), deep learning, vestíveis e tantos outros, têm provocado reflexões e mudanças importantes na maneira como os cuidados de saúde são planejados e executados. Isso porque as evidências e os dados gerados possibilitam melhores decisões pelos profissionais – tanto na gestão quanto no atendimento – e até mesmo mais segurança para os pacientes. Embora revolucionárias em muitos aspectos, essas novas tecnologias não têm necessariamente se traduzido em mais acesso a quem precisa, o que tem promovido uma mudança de mentalidade nos últimos anos e fortalecido um conceito que tem ganhado cada vez mais destaque: o design inclusivo.
O conceito tem sido usado para defender a ideia de que esse olhar para a equidade esteja presente desde as fases iniciais do desenvolvimento de uma nova solução de saúde. Assim, seria possível pensar em como uma tecnologia, inovação ou um processo poderia ser acessível, por exemplo, para pessoas com deficiências, indivíduos de diferentes níveis de escolaridade e neurodivergentes. Como consta no manual de design inclusivo da Microsoft, uma das principais big techs do mundo, “isso significa incluir e aprender com pessoas com diversas perspectivas.”
De acordo com a edição especial da publicação científica Applied Ergonomics, o termo design inclusivo foi usado pela primeira vez em 1994, motivado por demandas como o envelhecimento da população e a integração de pessoas com deficiência em diferentes esferas sociais. Segundo o documento, não se trata de um novo gênero ou uma especialidade, mas uma abordagem do processo de design.
Dida Capobianco-Fava, Doutora em Inovação para Saúde pela Unifesp/Duke University e gerente de Design em Saúde no Hospital Israelita Albert Einstein, enfatiza que a metodologia do Design, quando adequadamente aplicada, promove a diversidade e inclusão. “O surgimento de novos conceitos como o próprio Design Inclusivo denotam a grande dificuldade de projetar inovações que levam em consideração aspectos fundamentais do Design, como por exemplo aspectos humanos, sociais, ambientais e até sua viabilidade econômica”, afirma.
Aplicar essa metodologia na saúde não é fácil, mas experiências reais mostram que é possível. Para isso, reconhecer o problema, estruturar times que contemplem essa diversidade e contribuam com diferentes perspectivas, além de colocar o usuário e suas necessidades no centro desse desenvolvimento, são passos nessa direção que as instituições estão buscando aplicar em suas realidades.
Design na prática, sem negligenciar a inclusão
Um exemplo de design que foi capaz de promover a inclusão na saúde é a ferramenta “MyEleanor”, projeto ainda em fase inicial apresentado no ASCO 2024, um dos principais eventos de oncologia clínica do mundo. Baseado em modelos largos de linguagem (LLM, na sigla em inglês), a IA generativa foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores de um centro oncológico localizado no Bronx, em Nova Iorque.
A motivação surgiu após a identificação da influência da barreira de linguagem na baixa adesão ao tratamento – uma parcela significativa dos pacientes eram hispânicos e não falavam inglês. “Ao desenvolver uma plataforma de ligação que possibilita ao paciente escolher em qual língua ele desejava ser atendido, a aderência aumentou 36% em relação aos métodos convencionais”, afirma Vanessa Montes, coordenadora médica da oncologia do Hospital Municipal Vila Santa Catarina, que é gerido pelo Einstein, em edição especial do Futuro Talks.
Além disso, o design que não negligencia a inclusão permite que um maior número de pessoas se beneficie diretamente da solução criada e ainda pode ter impactos positivos no ecossistema como um todo – social, cultural e econômico. Um exemplo é o projeto UpLuxo, desenvolvido pelo Einstein. Ele nasceu em 2020 a partir do desafio do descarte de tecidos hospitalares, que somavam até 8 toneladas de lixo nos aterros sanitários, provocando um impacto ambiental e financeiro significativo, como relembra Capobianco-Fava.
“Fizemos um desafio com os colaboradores e eles trouxeram a proposta do Upcycling (reutilização, em português). Com o dinheiro que gastaríamos para levar os tecidos até o aterro, passamos a usar para levar para costureiras. Com isso, não apenas reduzimos os gastos e o desperdício de recursos ambientais, como também geramos empregos com uma matéria-prima que antes era jogada fora, graças a esse projeto de economia circular.”
Quatro anos depois, o projeto já gerou mais de R$ 140 mil em renda direta para as costureiras em situação de vulnerabilidade social, das quais 90% são mulheres negras. Hoje, a iniciativa conta com o apoio do Stanford Woods Institute for the Environment, que designou uma turma de alunos para projetar uma plataforma digital do UpLuxo. A ideia é tornar o projeto escalável e ajudar a conectar hospitais e costureiras.
Mapear a dor original é desafio
Um dos principais desafios para desenvolver novas soluções de saúde que tenham a equidade como princípio é conseguir identificar o problema real de uma população. “A gente se perde quando não olha para a necessidade verdadeira, e isso acontece com muita frequência. A inovação só pode ser construída em cima de uma necessidade verdadeira”, aponta Capobianco-Fava.
Para Camila Hernandes, gerente de inovação no Hospital Israelita Albert Einstein, responsável pela Eretz.bio, aceleradora de startups da organização, um dos caminhos para identificar a necessidade real de um grupo é ter a diversidade sentada à mesa: “Quanto maior a proximidade de quem realmente entende e vive a realidade, melhor o resultado do mapeamento da dor que deve guiar o projeto, e por consequência o impacto da solução gerada.”
Segundo ela, isso se aplica em diversos contextos. “A vivência que eu tive num dia ruim no pronto-atendimento, por exemplo, não é a realidade daquele sistema todos os dias. Ou porque eu, sendo de São Paulo, não sei quais são as necessidades do morador de uma comunidade ribeirinha. Temos inúmeros ‘Brasis’, e é preciso se dispor a conhecer cada um deles”, completa.
Hernandes aponta que o Brasil vive um momento de crescimento do ecossistema de inovação e de densidade tecnológica, por isso precisa começar a olhar para o desafio da equidade. “Precisamos criar soluções que atendam ao maior número de pessoas possível e, além disso, também precisamos fazer com que as inovações já desenvolvidas cheguem às pessoas que precisam”, diz.
Futuro e fuga do hype
O próximo capítulo do design deve abrir espaço para outros aspectos, como a neurodiversidade, e tem sido chamado de cognitive inclusive design ou neuro-inclusive design. Dentre os princípios desse conceito está o uso de elementos naturais e mais amigáveis aos sentidos – como iluminação regulável e uso de cores mais suaves.
A Microsoft lançou em 2023, em parceria com a Mental Health America, um guia para o desenvolvimento de tecnologias inclusivas para esse público. “O objetivo era criar um conjunto de diretrizes baseadas em evidências que pudessem ser usadas em todo o setor para ajudar a garantir que considerações de saúde mental e cognição fossem incorporadas ao desenvolvimento de produtos”, afirmou a empresa.
Na visão de Capobianco-Fava, tendências tecnológicas como biomarcadores e deep tech devem marcar os próximos anos da inovação em saúde. E, ao mesmo tempo em que abrem a possibilidade de novas soluções para o setor, é preciso manter os pés no chão para evitar o apego ao ‘hype’.
“Às vezes, o que vejo é um apego maior às tendências e tecnologias do que à necessidade real. Hoje, a tendência é a IA, mas já passamos também pela era do app. Você chegava nos workshops de inovação e todo mundo queria fazer um app, mas poucos sabiam explicar qual problema o app solucionava”, relembra a especialista. Segundo ela, o design, quando aplicado criteriosamente, aborda necessidades reais sem precisar chamar atenção para conceitos. “As tendências mudam muito rapidamente, mas as necessidades humanas não mudam na mesma velocidade”, acredita.
Além de não perder de vista o objetivo resolutivo, ela chama a atenção para a escalabilidade dos projetos. “Há coisas que estão surgindo e são extremamente avançadas. Temos que filtrar o que essas tecnologias de fato resolvem, quais necessidades elas respondem, validar os projetos e daí pensar em escalar.”
Hernandes concorda e aponta que o movimento nesse sentido já começou. “Quando falamos de novas terapias farmacológicas, por exemplo, sabemos que o principal empecilho de acesso é o alto custo. Quando falamos de soluções digitais, as dificuldades são outras”, explica. “Às vezes, a tecnologia em si custa centavos por vida, mas há um empecilho de infraestrutura como o acesso à internet, ou uma questão de adesão ou de chegada ao sistema público de saúde. Ainda não temos todas as respostas, mas temos visto uma inquietação positiva nesse sentido”, afirma.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.