Decisão do STF pode organizar judicialização sobre acesso a medicamentos, mas fortalecimento da Conitec é criticado

Decisão do STF pode organizar judicialização sobre acesso a medicamentos, mas fortalecimento da Conitec é criticado

STF estabelece critérios para processos que solicitam tratamentos, mas se baseia em decisões da Conitec para limitar a judicialização

By Published On: 11/09/2024
STF tenta organizar judicialização sobre acesso de medicamentos não incorporados ao SUS.

O Superior Tribunal Federal formou maioria (6 dos 11 votos) para estabelecer que medicamentos não fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não devem ser fornecidos via decisão judicial, estabelecendo critérios para exceções. Ministros acompanharam na segunda-feira, 9, o voto conjunto de Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, que buscam controlar a judicialização no país. O julgamento segue aberto até 13 de setembro em plenário virtual.

Esse julgamento deve definir as regras para parte da judicialização de tratamentos de saúde no país. Ainda restam os votos dos ministros Luiz Fux, Carmen Lúcia, Nunes Marques, André Mendonça e Alexandre de Moraes, que podem pedir destaque, levando o julgamento ao plenário físico, ou pedir vistas, suspendendo o julgamento para análise do caso, sem prazo específico para o retorno. No entanto, com a maioria formada, a decisão só deve mudar caso algum ministro mude seu voto até o término do processo.

Outro processo em análise envolve o acordo de judicialização da saúde proposto pelo Ministério da Saúde, definindo quais as responsabilidades dos entes federativos ao custeio de medicamentos não incorporados ao SUS. O caso também já formou maioria, onde 5 ministros acompanharam o voto de Gilmar Mendes.

Ambos os casos podem modificar a forma como os juízes no Brasil avaliam ações que envolvam o fornecimento de medicamentos no âmbito do SUS, enrijecendo as regras e seguindo as avaliações da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec). Através de uma súmula vinculante ao final dos julgamentos, os ministros do STF devem estabelecer tais critérios que deverão orientar os tribunais pelo país.

O julgamento tem recebido críticas de associações de pacientes e da indústria farmacêutica. Isso porque há uma demanda por maior transparência na atuação da Conitec, uma vez que decisões de não incorporações nem sempre contam com pareceres objetivos. Teme-se que, com a decisão do Supremo, haja impacto para a população. Por outro lado, a tentativa do STF é vista como uma forma de organizar e reduzir o impacto da judicialização da saúde no Brasil.

O ministro Gilmar Mendes e o ministro Luís Roberto Barroso defendem, em voto conjunto, que é importante decidir sobre o tema com base na escassez de recursos e a necessidade de garantir a eficiência das políticas públicas, assegurar a igualdade no acesso e o respeito à expertise técnica e medicina baseada em evidências. “Como os recursos públicos são limitados, é necessário estabelecer políticas e parâmetros aplicáveis a todas as pessoas. Não é viável ao poder público fornecer todos os medicamentos solicitados. A judicialização excessiva gera grande prejuízo para as políticas públicas de saúde, comprometendo a organização, a eficiência e a sustentabilidade do SUS.”, escreveram os ministros.

Regras e exceções para judicialização

Considerado um tema de repercussão geral, o objetivo do julgamento é fixar a tese sobre quais critérios o poder judiciário deve determinar a concessão de medicamentos não incorporados ao SUS. A ideia é estabelecer um padrão para que haja uma uniformidade pelos tribunais de todo o Brasil.

O processo inicial foi proposto pelo Governo do Rio Grande do Norte, que foi condenado a custear um medicamento de alto custo, o que impactou no orçamento do estado. O julgamento girava em torno da discussão sobre o dever do Estado de fornecer medicamentos de alto custo a pessoas com doença grave que não possuem condições financeiras para comprá-lo.

Os votos dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso estabelecem critérios para que a Justiça analise e conceda liminares favoráveis aos pacientes. Como regra, definem que a ausência de incorporação do medicamento ao SUS deve impedir o fornecimento por via judicial, independente do custo.

No entanto, existem exceções que devem atender requisitos mínimos definidos pelo STF, ainda a ser aprovado. O medicamento deve estar registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o paciente comprovar que houve negativa de fornecimento do medicamento no SUS, além da impossibilidade de substituição por outro tratamento já incorporado, de acordo com protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas. O paciente deverá comprovar a incapacidade financeira para custear o medicamento.

É preciso também comprovar que houve ilegalidade no processo de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou demora da análise. Também será necessário comprovar eficácia e segurança do tratamento com base em ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise. O médico que acompanha o paciente deverá fornecer laudo que aponte que aquele medicamento é necessário para o tratamento adequado.

O STF também aponta que Governo Federal, estados e municípios irão implementar uma “plataforma nacional que centralize todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármaco, de fácil consulta e informação ao cidadão, na qual constarão dados básicos para possibilitar a análise e eventual resolução administrativa, além de posterior controle judicial”.

Ao juiz, caberá em casos excepcionais acionar o Ministério da Saúde e a Conitec para que avaliem de forma técnica os medicamentos que estão sendo solicitados pelos pacientes e ainda não estão incorporados ao SUS. A expectativa é que com isso haja uma análise mais criteriosa já constituída, com base em evidências, para futuras demandas.

Já no âmbito do acordo de ressarcimento, proposto pelo Ministério da Saúde em parceria com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o ministro Gilmar Mendes acatou a proposta. Ela estabelece que tratamentos com custo anual unitário igual ou superior a 210 salários mínimos, aproximadamente 300 mil reais, devem ser pagos pelo Governo Federal. Já medicamentos abaixo desse piso e acima de 10 mil reais serão custeados 65% pela União, sendo que o valor restante deve ser pago por estados e municípios.

Impacto da decisão sobre judicialização

“O STF dá um caminho para os judiciários seguirem. Esse caminho é muito importante porque coloca um grau de segurança para a sociedade. O que eu, como cidadão, tenho o direito de exigir e o que eu não tenho? O problema da judicialização é que ela é muito individual, ou seja, quem entende o seu direito, que é uma parcela pequena da população que sabe que pode acessar o Judiciário para esse tipo de coisa, vai ter a sua capacidade de representação”, observa Silvio Guidi, advogado sanitarista, mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio do SPLAW.

O tema, porém, não é visto de forma positiva por todos os envolvidos. De acordo com Renato Porto, presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), o grande problema da decisão é que coloca na Conitec um poder de avaliação sem possibilidade de contestação. 

“O Judiciário está sendo um remédio por um processo do Executivo que não está funcionando adequadamente. As decisões que os tribunais vêm concedendo ao longo dos anos são para tentar amenizar a falha que tem nesse processo. A Conitec, sob a nossa avaliação, não tem a velocidade, capacidade e a governança que precisamos para que esse processo de incorporação de medicamentos seja adequado”, defende o executivo.

Porto avalia que a necessidade do paciente apresentar provas cumulativas para adentrar com um pedido judicial irá provocar impactos para a saúde da população. Segundo ele, caso o STF estabeleça tais critérios, pode ampliar a judicialização no âmbito das contestações sobre as avaliações da Conitec e do Ministério da Saúde. “O Ministério da Saúde já dava muita força para essa comissão, e agora o Judiciário está dando mais força ainda para esse processo. É quase como se a gente estivesse dizendo que essa decisão da Conitec é transitada em julgado e irrecorrível no aspecto técnico. Isso é muito grave, porque o Judiciário precisa, de alguma maneira, ter o contrapeso e o controle dos processos dos outros poderes”, observa Porto.

O executivo observa que um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) analisou 39 relatórios da Conitec apresentados entre entre 2012 e 2018 e, destes, 15 não apresentavam nenhum critério de decisão explícito. Segundo Porto, além da falta de clareza, a celeridade também é uma das fraquezas do órgão.

Para a Interfarma, o STF poderia contribuir com a sociedade cobrando que o Ministério da Saúde apresentasse quais são as premissas para funcionamento da Conitec, assim como estabelecer a necessidade de revisar os protocolos ou diretrizes clínicas terapêuticas.

Porto explica que existe um gap entre o lançamento de novas drogas e a incorporação de tecnologias pelo SUS, que pode levar anos para que haja a disponibilidade de tratamentos inovadores no sistema público, o que deixa o paciente brasileiro em “segundo plano” frente às inovações.

Dados do estudo WAIT, realizado pela IQVIA e FIFARMA, apontam que 63 dos 104 dos tratamentos oncológicos registrados no Brasil entre 2014 e 2021 têm algum tipo de cobertura no sistema público ou privado. Dessas, somente seis têm disponibilidade em ambas esferas. Para Porto, os números corroboram o atraso para o fornecimento de novas tecnologias.

Papel da Conitec e negociações

“A gente precisa entender que nem sempre novas tecnologias significam melhores tecnologias. Não tem como a gente fugir do ponto desse processo de incorporação que existe dentro da lógica da Conitec. Não é o melhor órgão do mundo, tem uma série de defeitos, mas até agora é a melhor coisa que a gente já conseguiu produzir. Então, talvez valha a pena investir para que essa produção melhore, seja mais efetiva”, observa Silvio Guidi, advogado sanitarista e sócio do SPLAW.

O papel da Conitec em avaliar a custo-efetividade de novos medicamentos para recomendar ou não a incorporação ao SUS é importante no sentido de garantir a eficiência das políticas públicas, a sustentabilidade do sistema e o acesso da população a tratamentos mais eficientes.

“O que tem acontecido em massa é a pior situação, o uso da judicialização como uma pressão para prover o acesso. Isso não é bom para ninguém, na perspectiva de sistema. Claro que o paciente acaba sendo beneficiado e tem acesso à tecnologia, mas por uma via que não precisaria ser, com tanta intensidade, a mais adequada”, observa Ana Paula Beck da Silva Etges, pesquisadora do Instituto de Avaliação de Tecnologia em Saúde (IATS) e professora do Programa de Pós-graduação em Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Com tratamentos cada vez mais individualizados e que mudam o curso das doenças, junto ao avanço expressivo de pesquisadores em busca de novas terapias, o custo tem sido cada vez mais alto, chegando à casa dos milhões de reais. Associado ao envelhecimento da população, pode ter um impacto significativo no orçamento público.

A Conitec tem o papel de avaliar o que é essencial, dentro dos limites do orçamento público, para a saúde da população, trazendo ganhos reais. Utilizando métricas e limiares de custo-efetividade, a Comissão recomenda ao Ministério da Saúde o que deve ser incorporado. Contudo, existem críticas de associações de pacientes e da indústria farmacêutica sobre a transparência e a tecnicidade do órgão.

Para Etges, o trabalho da Conitec poderia ser melhor se o país tivesse apenas uma agência única para avaliação de tecnologias, fornecendo pareceres para o sistema público e para o sistema privado. Mas a pesquisadora também propõe que a Conitec poderia ter um papel maior, de antecipar discussões sobre a viabilidade econômica da negociação, podendo reduzir a distância entre a incorporação e o fornecimento de medicamentos à população.

“É recorrente a falha entre uma recomendação e colocá-la em prática com uma boa governança. O processo todo de incorporação e análise já deveria contemplar a sugestão de modelos de pagamento ajustados. Isso poderia vir no dossiê. Temos chamado isso de criação de frameworks de valor no processo de incorporação. Já é feito no NICE na Inglaterra e nos Estados Unidos é cada vez mais comum nos documentos enviados ao FDA”, explica Etges.

Seria nesse momento que acordos de compartilhamento de risco poderiam ser propostos, possibilitando que tratamentos mais caros chegassem à população. No entanto, Etges explica que para a eficiência desses acordos existem outros gaps que precisam ser resolvidos, como a falta de estrutura e definição sobre de quem é a responsabilidade para acompanhar pacientes e captar dados.

Compartilhamento de risco

Um terceiro processo ligado ao tema da judicialização e fornecimento de medicamentos corre no STF. Ele versa sobre a dispensação do Elevidys, da Roche, desenvolvimento para o tratamento de crianças entre 4 e 7 anos com Distrofia Muscular de Duchenne (DMD). O caso chega ao Supremo por pedido do Governo Federal, que busca uma conciliação com a fabricante.

Atualmente, cerca de 55 pedidos de fornecimentos deste medicamento estão em curso na Justiça, o que de acordo com a União pode chegar ao custo de R$1,15 bilhão. Estima-se que o valor comercial unitário deste tratamento é de cerca de 18 milhões de reais. Por isso, busca uma negociação com a farmacêutica, através da via judicial – enquanto isso, liminares sobre o tema estão suspensas.

O ministro Gilmar Mendes sugeriu que houvesse um acordo de compartilhamento de risco. No próximo dia 30 de setembro, Governo e Roche devem apresentar propostas para chegar a uma negociação. O medicamento está na fila de registros da Anvisa e ainda não teve seu preço máximo designado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED).

Em nota enviada ao Futuro da Saúde, a farmacêutica Roche afirma que “está empenhada em participar das discussões propostas dentro do prazo estipulado pelo STF, colaborando com as demais partes envolvidas para explorar todas as alternativas e assegurar que as soluções identificadas sejam sustentáveis para todos os interessados, e alinhadas às necessidades do sistema de saúde brasileiro e dos pacientes com distrofia muscular de Duchenne”.

Renato Porto, da Interfarma, vê que o compartilhamento de risco pode ser uma das opções para se falar em incorporação de tecnologias de alto custo, mas não pode ser a única solução. Segundo o executivo, ela pode ser utilizada em medicamentos que ainda tenham uma jornada de testes a percorrer. Isso ocorre, em geral, pelo número limitado de pacientes envolvidos nas pesquisas clínicas ou nas limitações dos estudos.

O SUS tem poucas experiências de acordo de compartilhamento de risco e existem casos que eles não saíram do papel. É o caso, por exemplo, do Zolgensma, medicamento para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo I, fabricado pela Novartis. Na época da incorporação, em dezembro de 2022, o Governo Federal e a farmacêutica firmaram um acordo nesse sentido, mas que até o momento não está sendo executado.

“Talvez outra solução, nesses casos, seja ter negociação fechada sobre os valores. Isso não quer dizer que os órgãos de controle não vão poder ver como esse processo é desenvolvido, mas que os preços praticados junto ao SUS, que é um comprador único, não seja o mesmo valor que pode ser praticado em outros mercados”, afirma Porto.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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One Comment

  1. NEIDE ALVES SANTANA MAGNANI 13/09/2024 at 21:36 - Reply

    Muito bom. Principalmente hoje que seria feito um julgamento e foi suspenso.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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