Daniela Mendes, superintendente do Instituto Jô Clemente: “O teste do pezinho é um programa de saúde pública de excelência”

Daniela Mendes, superintendente do Instituto Jô Clemente: “O teste do pezinho é um programa de saúde pública de excelência”

No mais recente episódio do Futuro Talks, Daniela Mendes falou sobre os avanços e desafios do teste do pezinho no país

By Published On: 15/07/2024
Daniela Mendes, superintendente do Instituto Jô Clemente: “O teste do pezinho é um programa de saúde pública de excelência”

Em 1976, o Brasil começou a implantar o teste do pezinho como triagem neonatal, através do atual Instituto Jô Clemente (IJC). Mas foi somente em 2001 que se tornou um programa de saúde pública essencial, gratuito e obrigatório no SUS. No último episódio de Futuro Talks, Daniela Mendes, superintendente geral do IJC, discutiu a prevenção, a importância do teste do pezinho e a inclusão das pessoas com deficiência.

Durante a entrevista, ela mencionou que, embora essencial para o diagnóstico precoce de doenças graves e raras que podem resultar em deficiência intelectual, sequelas ou até mesmo óbito se não identificadas rapidamente, há diferenças significativas na implementação do teste do pezinho nas diversas regiões do Brasil. No Estado de São Paulo, o IJC realiza a maioria dos exames, mas há estados onde o teste não é feito adequadamente. Por isso, estão buscando apoiar outros estados na implementação da triagem neonatal, em colaboração com o Ministério da Saúde, governos estaduais e municipais, e estabelecer “hubs de apoio”.

Ao longo da conversa, Mendes falou sobre a criação de um centro de pesquisa clínica focado em doenças raras, inaugurado em março. Este centro busca ampliar a atuação do IJC em pesquisa, especialmente em doenças relacionadas ao teste do pezinho e à genômica, visando encontrar novas soluções. Para isso, o Instituto tem parceria com a FAPESP e está trabalhando para estimular e realizar pesquisas, contribuindo para a construção de políticas públicas.

A inclusão é um dos pilares fundamentais do instituto, com iniciativas voltadas para saúde, educação e inclusão profissional. Na entrevista, ela falou dos avanços significativos nessa área, com a transição do modelo de oficinas dentro das empresas. No entanto, conforme mencionado por ela, o preconceito ainda representa uma barreira significativa, exigindo esforços contínuos para superá-lo. Além disso, também estão expandindo suas iniciativas para incluir pessoas com autismo, em resposta ao aumento expressivo de diagnósticos nessa condição.

Confira a entrevista a seguir:

O Instituto Jô Clemente tem 60 anos de história promovendo a inclusão e a saúde das pessoas com deficiência. Recentemente, também tem investido fortemente na triagem neonatal, especialmente no teste do pezinho. Quais são os principais pilares de atuação do IJC?

Daniela Mendes – O IJC atua em quatro grandes pilares: prevenção e promoção da saúde, inclusão social, defesa e garantia de direitos, e ciência e inovação. Nossa história na área da saúde é muito significativa. Somos pioneiros na implantação do teste do pezinho no Brasil, iniciado em 1976, e há 48 anos realizamos esse trabalho essencial para a prevenção. O teste do pezinho é vital para o diagnóstico precoce de doenças graves e raras, que, se não identificadas rapidamente, podem levar à deficiência intelectual, sequelas e até óbito. Por isso, o teste do pezinho é vital no contexto da saúde pública. É um programa de excelência, que hoje faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS), salvando e melhorando a qualidade de vida de muitas crianças.

Ao longo desse tempo, o teste evoluiu em vários aspectos. Temos uma nova política, inclusive, para a inclusão de novas doenças nessa triagem. Como está hoje o cenário do teste do pezinho?

Daniela Mendes – O teste do pezinho foi implementado no SUS em 2001 como uma política obrigatória e gratuita em toda a rede nacional. Hoje, ele contempla seis doenças, com a inclusão de uma sétima em andamento. Em 2021, foi sancionada a Lei 14.154, que expandiu a triagem neonatal. Essa expansão ocorrerá de forma faseada, em cinco etapas ao todo, com a previsão de implementar uma etapa a cada ano. Neste ano, a triagem neonatal já deveria incluir sete doenças. Quando se pergunta como está essa situação no Brasil como um todo, é importante entender que o país tem dimensões continentais e grandes diferenças regionais. Algumas regiões, como o Sudeste, onde estamos inseridos, já estão muito bem preparadas. O IJC, por exemplo, é o maior serviço de referência do Estado de São Paulo, responsável por 64% de todos os exames realizados. Nós triamos mais de 340 mil bebês por ano, totalizando mais de 2.800.000 exames, um volume expressivo. Já estamos na fase de implementação da sexta doença e avançando para a sétima, a toxoplasmose, que ainda está em fase de implementação no estado, mas no município de São Paulo já ampliamos a triagem para 50 doenças. As crianças nascidas no município de São Paulo têm acesso ao diagnóstico de mais doenças, o que é muito importante para garantir acesso e oferecer essa possibilidade de cuidado.

Mas essa realidade não acontece em todo o país.

Daniela Mendes – Infelizmente, esse cenário não se repete em todo o Brasil. Como membro da Sociedade Brasileira de Triagem Neonatal (SBTI), participei de um levantamento, realizado com base em indicadores do próprio Ministério da Saúde, que revelou que alguns estados ainda não estão realizando o teste do pezinho. Isso é um alerta importante para que todos os gestores públicos prestem atenção, pois, como mencionei, o teste é vital no contexto da prevenção. Não estamos garantindo esse acesso, que é um direito da criança conforme descrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Estamos privando crianças e famílias do diagnóstico precoce essencial.

Só para garantir que todos que estão nos assistindo estão na mesma página, você pode explicar o que é e a importância do teste do pezinho?

Daniela Mendes – A triagem neonatal é, por assim dizer, uma grande peneira populacional. Realizamos a triagem para identificar doenças que têm maior incidência e prevalência na população. É crucial que essas doenças sejam tratáveis, pois não faz sentido incluir no programa uma doença que não pode ser tratada. O teste do pezinho é inserido no programa justamente por sua alta prevalência e por permitir intervenções eficazes. Qual é, então, o grande diferencial desse teste? Primeiro, o teste realiza a triagem. Se o resultado inicial do teste do pezinho for positivo ou alterado, a criança é convocada para um teste confirmatório. Se o resultado confirmatório também for positivo, iniciamos uma busca ativa para localizar a criança, onde quer que ela esteja, e encaminhá-la a um centro de tratamento e referência. Portanto, a triagem é extremamente importante. O teste do pezinho, conhecido popularmente, é na verdade um grande programa de triagem neonatal, não apenas um exame isolado.

“Muitas vezes, as pessoas o veem apenas como um exame, mas é, na verdade, um programa abrangente que abrange toda uma linha de cuidado.”

Há um trabalho investigativo significativo por trás, que inclui um esforço de política pública para garantir que todas as crianças recebam o acompanhamento necessário.

Daniela Mendes – Exatamente, porque você tem que garantir que depois que esse resultado deu positivo, você tem que inserir imediatamente. Há doenças, como a hiperplasia adrenal congênita (HAC), que requerem intervenção urgente. Se a criança não for localizada e tratada dentro de 15 dias, ela pode sofrer sequelas graves ou até mesmo óbito. Por isso, a importância desse programa e da linha de cuidado como um todo: após o teste, é necessário agir rapidamente. Quando o resultado é alterado, é fundamental acionar toda a busca ativa e fornecer o suporte diagnóstico necessário à rede de assistência. Isso é vital. Sempre dizemos que o teste do pezinho é uma grande corrida contra o tempo. Quanto mais rápido iniciarmos esse processo, melhor será o desfecho para a criança e sua família. É importante explicar que muitas dessas doenças são raras. O teste de pezinho tria um conjunto de doenças raras que a rede de assistência muitas vezes ainda não conhece bem. Portanto, não temos profissionais adequadamente preparados para fornecer o tratamento e o acompanhamento necessário e as primeiras ações. Mantemos em nossa estrutura uma consultoria médica com profissionais altamente capacitados para apoiar toda a rede de assistência. Realizamos um trabalho intenso junto à Secretaria Municipal de Saúde e à Secretaria Estadual, pois essa colaboração é vital para garantir uma ação rápida e eficaz.

Você mencionou que na cidade de São Paulo o teste já atende pelo menos 50 doenças, enquanto alguns municípios ainda não chegaram nem a sete doenças. Por que há essa discrepância? A dificuldade na implementação é técnica, logística ou financeira?

Daniela Mendes – A dificuldade é multifatorial e envolve todos os aspectos que você mencionou. Há questões técnicas, pois é necessário contar com profissionais especializados, que nem sempre estão disponíveis na rede de assistência. Também há questões financeiras. O recurso repassado pelo Ministério da Saúde pode não chegar ao município ou pode não ser utilizado de forma adequada. Além disso, existem desafios logísticos no processo. O teste do pezinho é realizado coletando uma amostra após 48 horas de vida e até o quinto dia de vida, que é o período ideal para a coleta. O procedimento envolve uma punção no calcanhar do bebê, e algumas gotas de sangue são colocadas em um papel filtro, facilitando a logística para o encaminhamento da amostra a qualquer lugar. Em alguns lugares do Brasil, esse processo não funciona adequadamente. Tempos longos entre a coleta e a realização do exame comprometem totalmente o objetivo do tratamento precoce, além de afetar a capacidade geral do programa. Na expansão da triagem, que inclui exames altamente complexos, como metodologias de espectrometria de massas e PCR em tempo real, será necessário um suporte significativo para os estados. O Ministério da Saúde, junto com os governos estaduais e municipais, precisa fornecer esse apoio para que a expansão possa ocorrer efetivamente. Infelizmente, o cenário atual ainda inclui crianças que não estão sendo triadas no tempo ideal.

Nem para o básico?

Daniela Mendes – Nem mesmo o básico foi atualizado. A última atualização foi em 2014. Estamos em 2024 e ainda não houve evolução nesse cenário. Alguns estados estão cumprindo as normas de forma muito precisa, enquanto outros não.

De alguma forma, a expertise do Instituto Jô Clemente pode ajudar a atender a essa necessidade? Hoje, o principal cliente é o governo do Estado de São Paulo, mas há possibilidade de expandir para outros estados? Está nos planos de vocês?

Daniela Mendes – Está no radar. Sempre nos colocamos ao lado do Ministério da Saúde, que está trabalhando para modificar a Portaria Nº 822 do Programa Nacional de Triagem Neonatal, com o objetivo de criar hubs de execução e apoio para os exames. Queremos garantir equidade no acesso às tecnologias diferenciadas. Estamos preparados para isso, com uma capacidade instalada significativa. Hoje, somos o maior serviço de referência de triagem do Brasil e estamos muito motivados a contribuir, pois temos uma causa. Não somos apenas um laboratório. O Instituto tem vários eixos de atuação. Queremos trabalhar na prevenção e promoção da saúde para que essas crianças e famílias possam se integrar plenamente à sociedade. Esse é o nosso propósito.

“Estamos totalmente dispostos a compartilhar nosso conhecimento e levar esse atendimento a todas as regiões do país.”

Considerando que a política já foi definida, qual será o próximo passo, especialmente em relação à dificuldade de implementação? Como estão abordando esse tema?

Daniela Mendes – Estamos trabalhando intensamente nessa questão, colaborando com gestores públicos e com o legislativo. Participamos de audiências públicas para compartilhar nosso conhecimento, destacar a importância do tema e engajar a população. Recentemente, lançamos a campanha “Teste do Pezinho de Ouro”, fazendo uma analogia com as Olimpíadas para ressaltar a importância da união e do esforço coletivo, semelhante ao espírito olímpico de integração entre países. Precisamos desse tipo de colaboração, especialmente no SUS, onde a ação é tripartite e exige diálogo entre as esferas federal, estadual e municipal. Além de contribuir com nosso conhecimento, também atuamos na área de advocacy para promover políticas públicas que assegurem a efetiva implementação e expansão do programa.

E quanto à conscientização da população? As pessoas estão mais informadas?

Daniela Mendes – A mãe, certamente, está disposta a fazer tudo o que é melhor para o seu filho e aceita realizar o teste. O que ainda falta é informar adequadamente sobre o teste do pezinho e sua importância, pois nem todos têm essa noção clara. Diante de toda a realidade e do fluxo de informações que se recebe em uma maternidade, pode ser difícil entender a importância do teste. Muitas vezes, surge a dúvida: “Por que estou fazendo esse teste? Por que ele é importante? Por que devo buscar o resultado e levá-lo ao pediatra?” Embora façamos a busca ativa e orientemos os pais, é crucial que a mãe também tome a iniciativa de cobrar, solicitar o resultado e levá-lo ao pediatra. Em estados onde a coleta é feita de forma atrasada ou ainda não está em pleno funcionamento, essa atitude é fundamental para garantir que o teste seja analisado e que as ações necessárias sejam tomadas.

Em março, vocês anunciaram a criação de um centro de pesquisa clínica com foco em doenças raras. Poderia explicar o raciocínio por trás da criação desse centro?

Daniela Mendes – Dentro do contexto histórico do IJC, difundir conhecimento e contribuir para a construção de políticas públicas é vital. Há muito tempo buscamos evoluir nesse sentido. Desde 2021, estruturamos o nosso Centro de Ensino, Pesquisa e Inovação para avançar nessa direção. Hoje, somos um instituto-sede de pesquisa junto à FAPESP, o que é extremamente importante. Isso nos permite estimular e realizar pesquisas em parceria com a FAPESP. Com o lançamento do centro de pesquisa clínica, queremos expandir nossa atuação, especialmente nas doenças relacionadas ao teste do pezinho. Pretendemos, por meio da genômica e da pesquisa clínica, buscar novas soluções para essas doenças. Fomentamos parcerias para contribuir com esse cenário e avançar na pesquisa e no desenvolvimento de novas abordagens.

Hoje, estamos começando a ver um cenário mais positivo para a realização de pesquisas clínicas no Brasil, especialmente após a sanção presidencial do projeto de lei. Você acredita que isso também impactará a atuação do IJC?

Daniela Mendes – Com certeza. Estamos apoiando a frente parlamentar que está promovendo toda essa aprovação relacionada à pesquisa clínica. Sabemos que, atualmente, o Brasil enfrenta dificuldades significativas, especialmente devido à morosidade e à burocracia envolvidas na execução de pesquisas clínicas. No entanto, é vital evoluirmos nesse sentido.

“O Brasil possui conhecimento, profissionais especializados, tecnologias e, mais importante, o volume populacional necessário para fomentar pesquisas clínicas no país. Portanto, o avanço desse cenário é fundamental e deve ocorrer.”

Pensando no centro de pesquisa focado em doenças raras, vocês já definiram quais doenças serão pesquisadas? Há um leque específico de doenças que serão priorizadas ou apostas principais para a pesquisa?

Daniela Mendes – Hoje já estamos conduzindo uma pesquisa focada na Atrofia Muscular Espinhal (AME), que é muito importante e também faz parte das etapas da expansão da triagem neonatal. Por isso, já a introduzimos. A pesquisa começou no ano passado e está prevista para terminar no próximo ano. Tem sido crucial, pois estamos promovendo a colaboração entre centros especializados e especialistas, e desenvolvendo um guia conjunto de cuidados e um protocolo específico para o manejo da doença. Em quase um ano de pesquisa, conseguimos diagnosticar precocemente quatro crianças, o que é muito significativo. Esse diagnóstico precoce é essencial, pois pode transformar o impacto de uma doença que, se não diagnosticada a tempo, pode ter consequências graves.

Via teste do pezinho?

Daniela Mendes – A Atrofia Muscular Espinhal (AME) é uma doença triada através da mesma metodologia usada na triagem neonatal. Assim, conseguimos realizar o diagnóstico e acompanhar o paciente na rede de assistência para garantir que ele inicie o tratamento o mais rapidamente possível. Com isso, transformamos completamente a vida da criança e de sua família.

Sobre doenças raras, qual é a importância dos profissionais especializados, considerando a escassez de profissionais em algumas áreas, como a genética?

Daniela Mendes – Hoje, realmente enfrentamos essa situação. O problema começa na formação médica, pois o currículo médico inclui poucas matérias sobre doenças raras. Por isso, é crucial discutir a inclusão de tópicos sobre doenças raras nos currículos médicos e em outras áreas profissionais, como nutrição, fonoaudiologia e fisioterapia. Essas doenças raras muitas vezes afetam a pessoa de maneira abrangente, e a capacitação desses profissionais precisa ser bem estruturada e constantemente revista. Algumas especialidades, como a terapia ocupacional, estão praticamente em extinção, apesar de sua importância vital para o tratamento e para atividades da vida diária. Nesse cenário, a esfera federal precisa dar uma atenção especial à formação médica. Não adianta evoluir tecnologicamente se não houver profissionais capacitados para atuar de forma adequada. O IJC também desempenha um papel importante nesse aspecto, buscando contribuir para a capacitação desses profissionais. Como muitos não têm a formação necessária, desenvolvemos uma plataforma de treinamento para a rede de assistência. Entendemos as dificuldades de realizar treinamentos presenciais, devido à rotatividade e às limitações de horário dos profissionais de saúde. Portanto, é crucial abordar essa questão com cuidado e explorar cada vez mais soluções eficazes.

E a questão da inclusão? Como você vê o crescimento da importância dessa temática na sociedade ao longo do tempo?

Daniela Mendes – Estou à frente e do Instituto Jô Clemente há 10 anos, e é muito gratificante ver os avanços que fizemos. No entanto, ainda enfrentamos muitos desafios na pauta da inclusão. O contexto atual, com as discussões sobre diversidade, é fundamental, mas percebemos que as pessoas com deficiência costumam ser as últimas a serem lembradas nesse cenário. Enquanto há um foco crescente em questões de raça e gênero, as pessoas com deficiência frequentemente ficam em segundo plano. No Brasil, há quase 19 milhões de pessoas com deficiência em geral, e cerca de 2,5 milhões delas têm deficiência intelectual. Portanto, estamos lidando com um cenário vasto e complexo, que requer um olhar atento e um avanço significativo. Acreditamos que o preconceito ainda existe, apesar da percepção de que não há mais. Continuamos precisando trabalhar intensamente nessa questão. O Instituto Jô Clemente sempre defendeu fortemente a bandeira da inclusão. A saúde é um pilar crucial para garantir que as pessoas estejam bem para, posteriormente, serem integradas na educação e no mercado de trabalho. Evoluímos constantemente para atender a essas necessidades. Por exemplo, em 2008, revisamos nosso modelo de educação. Anteriormente, tínhamos uma grande escola especial, mas percebemos que as pessoas não deveriam estar institucionalizadas. Elas precisam estar integradas e convivendo na sociedade. Assim, desenvolvemos um modelo de educação inclusiva que permite essa integração.

Como funciona?

Daniela Mendes – Fomos pioneiros no movimento. Implementamos um atendimento no contraturno escolar chamado Atendimento Educacional Especializado. O foco não é apenas a alfabetização, mas sim romper as barreiras que essas crianças podem encontrar no aprendizado, colaborando com profissionais, pedagogos e famílias. Esse trabalho é fundamental. Outro modelo que também foi o da inclusão profissional. No passado, as pessoas com deficiência ficavam institucionalizadas em grandes oficinas abrigadas, sem uma real inclusão no mercado de trabalho. Mudamos esse modelo para o emprego apoiado, onde a estrutura é desenvolvida dentro das próprias empresas, ao invés de ser segregada. Ainda há muito a evoluir, pois muitas vezes as pessoas acreditam que simplesmente contratar é suficiente para incluir. No entanto, a inclusão efetiva requer que a pessoa esteja realmente integrada no contexto da empresa.

“Quando isso acontece, observamos o quanto é benéfico não só para a pessoa, mas também para a empresa, impactando positivamente o ambiente e a cultura organizacional.”

O Instituto tem algum trabalho de consultoria para ajudar empresas nesse processo?

Daniela Mendes – Às vezes, as pessoas não têm ciência exata disso ou, por desconhecimento, adotam condutas que chamamos de capacitistas. Procuramos exatamente isso: fazer consultorias junto às empresas e áreas que desejam ter essa discussão, para que possamos ir além da cota. Sabemos que a cota é um importante instrumento para promover a inclusão, mas não podemos nos dar por satisfeitos apenas com isso. Trabalhamos com as empresas para capacitar as pessoas que receberão essas novas contratações, analisando o perfil necessário para a vaga e realizando um trabalho conjunto. Um exemplo disso é que, no ano passado, conseguimos incluir mais de 520 pessoas no mercado de trabalho, com uma taxa de retenção superior a 98%.

Pode dar um exemplo de uma dificuldade que as empresas enfrentam e que as leva a procurar vocês com a pergunta: “Eu não sei como fazer isso”?

Daniela Mendes – Primeiro, sempre vem aquele mito de que não existem pessoas preparadas. E o que falamos para essas empresas? As pessoas estão ali. Precisamos analisar o perfil de cada uma, assim como fazemos quando buscamos um emprego. Elas precisam dos apoios necessários. Então, podem ter um excelente desempenho, desde que se analise a vaga, o ambiente e se forneçam os apoios necessários. Às vezes, pode ser um apoio tecnológico. Outras vezes, na maioria dos casos, é uma questão de atitude, especialmente com a deficiência intelectual. Muitas vezes, só são necessárias algumas orientações e o uso de linguagem simples. Às vezes, temos procedimentos ou processos muito elaborados que precisam apenas ser adequados para uma linguagem mais acessível, para que a execução seja possível. São essas dicas que damos às empresas, que às vezes acham que é necessário fazer grandes modificações ou criar uma estrutura complexa. Na maioria das vezes, com poucas adaptações e os apoios necessários, conseguimos promover uma inclusão efetiva.

Em relação ao autismo, temos visto o crescimento do diagnóstico, a conscientização, a cobertura e a necessidade de atender essa demanda. Isso está no radar do IJC? Vocês têm uma frente voltada para isso?

Daniela Mendes – Sim, é muito importante. Por muito tempo, tivemos uma expertise significativa na deficiência intelectual, mas com o crescimento expressivo do autismo, começamos também a desenvolver uma frente dedicada a isso. Atualmente, não há estatísticas precisas no Brasil, mas estima-se que mais de 2 milhões de pessoas tenham autismo. Acredito que esse número esteja subestimado. O CDC divulgou recentemente uma estatística indicando que 1 em cada 36 crianças têm autismo, o que representa um volume muito grande. Estamos trabalhando para fornecer a melhor terapêutica e intervenção possível. Sabemos que alinhar a efetividade e a qualidade com a sustentabilidade dos sistemas de saúde é desafiador, mas é fundamental. Não podemos deixar a população com autismo desassistida. Acredito que é um grande problema de saúde pública que estamos enfrentando, pois impacta não apenas a saúde, mas também a educação. Os professores frequentemente relatam não saber como proceder ou qual é a melhor conduta a adotar. Precisamos realizar um trabalho significativo nesse sentido. O IJC oferece atendimentos variados para intervenção no autismo, utilizando diversas metodologias que variam de acordo com cada indivíduo. Não há uma única abordagem eficaz para todos. Embora a metodologia ABA (Análise Comportamental Aplicada) seja amplamente conhecida, ela é, na verdade, um guarda-chuva que inclui diferentes abordagens que podem ser ajustadas para atender às necessidades específicas de cada criança. Além disso, o autismo é classificado em níveis de apoio, do 1 ao 3, e o suporte deve ser adaptado de acordo com esses níveis. Na educação, a abordagem deve ser similar, considerando como integrar a criança com autismo na sala de aula junto com as demais crianças, promovendo uma perspectiva inclusiva e eficaz.

Todos estão aprendendo ainda a lidar com essa questão e o volume.

Daniela Mendes – Exatamente. Acho que ainda é um campo muito novo, e esse é um dos pontos em que nosso Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação deseja contribuir. Há muito que todos nós precisamos aprender, especialmente nos contextos da saúde, educação e inclusão no mercado de trabalho. Muitas vezes, a percepção sobre o autismo é estereotipada, baseada em imagens de séries que mostram pessoas com altas habilidades, quando, na realidade, esse cenário é menos comum. Na maioria dos casos, o que vemos é uma necessidade de apoio muito mais variada e complexa. Portanto, é essencial que estejamos preparados para oferecer suporte em todos os níveis necessários.

E como está hoje a questão da sustentabilidade e dos repasses da Tabela SUS?

Daniela Mendes – O IJC é uma organização filantrópica, sem fins lucrativos. Temos o CEBAS, que é a Certificação da Filantropia Ligada à Saúde. Nosso modelo de atendimento é composto por 60% de serviços vinculados ao SUS e até 40% de serviços privados. Atualmente, atendemos predominantemente pela perspectiva do SUS, e, infelizmente, enfrentamos uma realidade muito desafiadora.

“A tabela SUS não é reajustada há mais de 15 anos. Isso torna muito difícil manter a sustentabilidade da organização, especialmente diante dos desafios relacionados à gestão de pessoas, com dissídios anuais, e à variação de insumos.”

Por exemplo, o teste do pezinho é totalmente importado, e variações cambiais impactam diretamente. Portanto, a questão da remuneração do SUS é extremamente sensível para as organizações sociais e filantrópicas. É essencial ter um olhar atento para essa realidade. Às vezes, enfrentamos a questão da triagem neonatal em alguns estados que não conseguem realizá-la justamente por problemas financeiros. O volume de serviços que realizamos é muito maior do que o que recebemos em compensação, que é infinitamente pequeno diante de anos sem reajuste.

Em relação à Tabela SUS Paulista, recentemente, no início deste ano, tivemos a aprovação de uma atualização que aumentou a remuneração para alguns procedimentos. Isso já está valendo na prática para vocês? Como você avalia?

Daniela Mendes – Em São Paulo, mesmo com a implementação da Tabela SUS Paulista, ela foi feita com prioridades, e ainda não fomos contemplados dentro dessa estrutura. A Secretaria Estadual definiu algumas prioridades, mas não temos clareza sobre o cronograma ou se todos os procedimentos serão contemplados. Isso é vital para nós. Atualmente, enfrentamos uma grande dificuldade para manter a sustentabilidade da organização e, por isso, temos que buscar outras estratégias de mobilização de recursos para poder manter os atendimentos. No ano passado, atendemos mais de 28 mil pessoas e realizamos mais de 300 mil procedimentos, sem contar a triagem neonatal. Esses atendimentos incluem estimulação precoce, longevidade e educação. A dificuldade para manter a sustentabilidade é significativa, e fazemos o possível para evitar ter que dizer “não podemos mais atender, vamos parar de atender”.

Mas você vê esse cenário melhorando a curto prazo ou ainda está um pouco sem previsibilidade?

Daniela Mendes – Acho que ainda há falta de previsibilidade. Precisamos ter uma noção clara de como essa questão será abordada. Acredito que o governo estadual deveria divulgar um cronograma e fornecer mais informações sobre como será feito o ajuste. Na esfera federal, também não vemos grandes movimentações. É importante que a esfera federal se mova para que possamos ter algum tipo de reajuste na tabela.

E quais são as pautas que o Futuro da Saúde deve prestar atenção? Quais são os temas que você acha que são importantes?

Daniela Mendes – Essa questão do autismo é uma pauta vital para que possamos buscar modelos que sejam efetivos tanto do ponto de vista de qualidade quanto financeiro. Além disso, a questão das doenças raras é crucial: como podemos evoluir nesse cenário, desde o diagnóstico até o tratamento, considerando que muitos tratamentos são de alto custo? Acredito que essas são pautas muito importantes e, aliás, estão bastante aquecidas no momento. Você poderia desdobrar e explorar cenários futuros para o Brasil.

Natalia Cuminale

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, com as reportagens, na newsletter, com uma curadoria semanal, e nas nossas redes sociais, com conteúdos no YouTube.

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