Cura na natureza: descoberta de molécula antitumoral em veneno de aranha reforça potencial brasileiro
Cura na natureza: descoberta de molécula antitumoral em veneno de aranha reforça potencial brasileiro
Alta na bioprospecção é oportunidade para que Brasil assuma papel de destaque no cenário de inovações em saúde
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A busca pela cura de doenças na natureza não é novidade. Na verdade, é uma atividade milenar e muito mais comum do que se imagina: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 40% dos produtos farmacêuticos hoje baseiam-se na natureza e em conhecimentos tradicionais. Só que o avanço tecnológico tem transformado a procura por soluções de saúde no meio ambiente. A inteligência artificial possibilitou a criação de grandes bancos de dados moleculares que agilizam o processo de análise da molécula investigada e abrem possibilidades técnicas de sintetização em laboratório. E, com as novas ferramentas disponíveis, a procura por ativos para novos fármacos na biodiversidade ganhou fôlego.
“A maioria das classes de fármacos que temos hoje veio de elementos da natureza”, afirma Thomaz Rocha e Silva, pesquisador e professor de Farmacologia e Bioquímica na Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein. “As plantas nos forneceram diversas soluções e moléculas que usamos até hoje, e venenos de animais também já deram sua contribuição. Hoje, temos um medicamento que é a primeira linha de tratamento para pressão arterial que foi desenvolvido a partir de uma substância encontrada no veneno da jararaca brasileira”, exemplifica.
O biólogo se refere ao Captopril, principal ativo de um dos anti-hipertensivos mais populares no Brasil. Outro exemplo clássico nesse contexto é o ácido salicílico, substância presente na árvore Salgueiro que foi usada no antigo Egito para aliviar febre e dores e que, séculos depois, deu origem à aspirina, nome comercial mais popular do ativo. Esse é considerado o primeiro fármaco sintetizado em laboratório, revolucionando a maneira como o desenvolvimento de medicamentos ocorria até então.
Outro caso recente ganhou as manchetes brasileiras em fevereiro desse ano: uma pesquisa nacional, realizada em conjunto pelo Instituto Butantan e a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, resultou na descoberta de uma molécula com potencial para tratar o câncer extraída do veneno da aranha caranguejeira Vitalius wacketi, que habita o litoral do estado de São Paulo. Nos testes in vitro, a substância teve um resultado promissor e foi capaz de eliminar células de leucemia.
Ponto de partida para buscar a cura na natureza
Pedro Ismael da Silva Junior, pesquisador do Butantan que conduziu a pesquisa ao lado de Rocha e Silva, atua há 20 anos na sintetização de moléculas extraídas da natureza com potencial terapêutico, e teve como tema do doutorado o sistema imunológico de aracnídeos. O interesse por esses animais não veio à toa: existem registros fósseis mostrando que as aranhas e os escorpiões existem na Terra há mais de 300 milhões de anos e que sobreviveram todo esse tempo com poucas modificações biológicas. No decorrer desse período, segundo Junior, eles viveram em ambientes bastante contaminados, com muitas transformações, o que levanta a suspeita de que alguma coisa inata no organismo deles permitiu que sobrevivessem nesses ambientes.
“No primeiro momento, a intenção era responder a essa pergunta: como esses animais sobreviveram tanto tempo com poucas modificações? A partir desse questionamento, passamos a estudar o sistema imunológico deles, entender como conseguem se livrar de fungos e microrganismos. E, ao longo do estudo, encontramos vários peptídeos com atividade antimicrobiana. Alguns com espectro maior, alguns com espectro menor”, detalha o pesquisador.
Para Rocha e Silva, mais do que apenas avaliar as moléculas de maneira isolada, é preciso observar a interação entre o objeto de pesquisa e o contexto à sua volta. “A observação da natureza é o grande direcionador de soluções possíveis. Se temos uma planta que resiste muito ao sol, queremos saber quais componentes ela tem para saber se ela pode nos ensinar alguma coisa sobre como nos proteger do sol. É mais do que olhar aquele organismo isoladamente como uma fonte de moléculas, é entender o contexto dele no habitat natural, o que pode nos fornecer muitas informações. Assim, o próprio processo de testagem em laboratório é mais assertivo para atingir aquele objetivo definido”, afirma.
Esse foi o processo que levou à hipótese do veneno da caranguejeira. O pesquisador do Einstein explica que o ponto de partida foi saber se o material sintético análogo da substância da aranha desempenharia a mesma atividade diretamente do animal. “Testamos e verificamos que tinha a mesma atividade, e com isso conseguimos desenvolver uma série de trabalhos. Fomos testando e vimos, ao sintetizar uma parte dessa molécula isolada da toxina de uma aranha, que essa parte tinha atividade contra células tumorais também”, conta.
Além disso, o processo de síntese da molécula foi realizado a partir de uma técnica inovadora, que foi patenteada por ambas as instituições. Rocha e Silva explica ainda que, além da estrutura e atividade da molécula original serem reproduzidas, o grande diferencial dessa descoberta é que a toxina provoca a morte das células tumorais por apoptose, um processo de implosão semelhante ao que ocorre com o uso de anticorpos monoclonais – entretanto, a terapia já disponível tem um custo de desenvolvimento muito mais alto. Outra vantagem é que, graças ao baixo peso molecular, é menos provável que ocorra a imunogenicidade – nome dado à reação do sistema imune quando em contato com uma substância estranha ao organismo.
Agora, o desafio é encontrar parceiros que tornem viáveis os próximos passos, que incluem testes em animais para garantir a segurança e eficácia da molécula e, posteriormente, partir para os testes em seres humanos.
Biodiversidade é potencial para Brasil
Embora a medicina ocidental esteja voltando sua atenção para as possibilidades de tratamento presentes na natureza mais recentemente, as comunidades indígenas e quilombolas, por exemplo, nunca abandonaram a prática. Em 2018, uma pesquisa realizada no Vale do Javari, no Amazonas, analisou o perfil das dores relatadas por integrantes de três etnias residentes naquele território indígena. Os resultados foram interessantes: o “remédio do mato”, feito a partir de extratos de raízes e folhas, foi apontado como fator de melhora por 60% dos indivíduos, enquanto medicamentos convencionais, como comprimidos e xaropes, foram sinalizados como fator de melhora por apenas 22,2% dos indígenas.
Dono da maior biodiversidade do planeta, o Brasil tem potencial para liderar o cenário de inovação em saúde a partir da bioprospecção – busca por extratos, compostos, moléculas, organismos, genes, enzimas, processos biológicos ou partes provenientes de organismos que tenham potencial para uso farmacêutico, segundo definição da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Da fauna e flora brasileira já vieram anticoagulantes, anti-inflamatórios, fitoterápicos e a emblemática descoberta do uso de pele de tilápia (Oreochromis niloticus) como curativo biológico no tratamento de queimaduras, fruto de um projeto de pesquisa da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Para Denise Rahal, farmacêutica e gerente de operações e parcerias de Inovação do Einstein, o Brasil pode ser uma grande potência nessa área, com capacidade para se transformar em um país de desenvolvimento nesse sentido: “Nós temos essa biodiversidade e podemos construir algo junto das nossas comunidades.”
Parte do caminho, segundo ela, é incentivar o diálogo e criar projetos de parcerias com as comunidades dos povos tradicionais, para que seja construída uma ponte para a troca de conhecimentos e até mesmo catalogar as soluções. “Sabemos que as medicinas indiana e chinesa são milenares e que esse conhecimento foi valorizado e catalogado. No Ocidente, ainda não temos isso. Adotamos um pouquinho desse conhecimento de ambas, mas não temos nada disso catalogado. Então, por que não conversar com essas comunidades indígenas, que detêm os saberes da natureza, e começar a documentar isso? Há conversas em andamento com pesquisadores indígenas que já estão fazendo esse movimento, para que possamos buscar na natureza novas possibilidades de tratamento e cura”, afirma.
Rocha e Silva complementa que as indústrias também precisam compreender melhor o cenário de pesquisa brasileiro, que, de acordo com ele, é marcado por uma má distribuição de recursos que impede o pesquisador básico de entregar uma molécula com baixo risco de investimento. “Sabemos que quanto menor o risco do investimento, melhor para a indústria. Então, a indústria também precisa criar essa flexibilidade. Já existem canais que têm possibilitado isso, é algo que tem mudado ao longo do tempo e eu vejo com muito otimismo a possibilidade de criar um ecossistema nacional de inovação e biotecnologia muito em breve.”
IA pode acelerar desenvolvimento de novas moléculas
Para observar tendências para o futuro, Rahal faz um paralelo entre o foco do Centro de Inovação do Einstein na sua origem há dez anos, e hoje. Segundo ela, visualizar a inteligência artificial como ferramenta na saúde era algo possível apenas no imaginário.
“No início, focamos muito na construção de softwares, o que teve seu valor e impactou principalmente a área assistencial, que fez uso dessas tecnologias durante o manejo da pandemia. Mas, no final de 2022, quando inauguramos o Centro de Inovação em Goiânia e tivemos contato com aquela região, que tem um clima muito peculiar devido ao bioma do Cerrado, passamos a observar o potencial de inovação presente na própria biodiversidade”, exemplifica a farmacêutica.
Por isso, ela aposta que as novas soluções de saúde devem partir da união entre a tecnologia e a biodiversidade, um movimento que já vem acontecendo em inúmeros projetos: “É um potencial muito grande. Começando a coletar essas necessidades regionais, podemos pensar em soluções através de sínteses orgânicas, kits diagnósticos, criação de plataformas para o desenvolvimento de moléculas e ativos utilizando a biodiversidade brasileira, por exemplo.”
A tecnologia, é claro, deve seguir como forte aliada na aceleração de novas descobertas e dos processos envolvidos na jornada de pesquisa. Embora não seja exatamente uma novidade na área de pesquisas, o avanço da inteligência artificial generativa nos últimos anos também é promissor para a ciência. “É a forma que teremos para construir grandes plataformas de novas moléculas. Hoje, o papel da tecnologia é agilizar, e acredito que vamos ter plataformas que nos auxiliem a desenvolver novas moléculas, novas drogas, novas invenções”, destaca Rahal.
Ética na pesquisa
Com todo o avanço, a ética também está cada vez mais presente. Estudos que têm como objeto de pesquisa insumos vindos da biodiversidade guardam algumas particularidades que devem ser observadas. No caso da pesquisa com a toxina de aranhas, por exemplo, uma das preocupações dos biólogos era o bem-estar do animal, desde o processo de extração da substância até minimizar a necessidade de retirada do aracnídeo do ambiente, como salienta o pesquisador do Butantan.
“Escolhemos as caranguejeiras também por ser um animal maior, o que permite que a punção seja feita sem que o animal sofra ou venha a óbito. A decisão de fazer uma molécula sintetizada em laboratório também considerou o benefício de se evitar a retirada do animal da natureza e de fazer coletas nos locais”, conta Silva Junior, do Butantan.
Para Thomaz Rocha e Silva, as questões jurídicas também devem ser observadas e seguidas com rigor para evitar que o resultado final da pesquisa seja comprometido ou inviabilizado por lacunas legais. É uma cultura que, aos poucos, está sendo construída entre os pesquisadores brasileiros.
“Tudo precisa ser feito dentro das regras dos órgãos regulatórios de biodiversidade. Não adianta o pesquisador ir à natureza, pegar o que interessa, trazer para o laboratório, encontrar algo interessante e só aí ir atrás da licença de coleta. Ele precisa seguir as regras desde o começo, prever todas as licenças exigidas, para que essa molécula chegue íntegra em termos jurídicos na etapa de desenvolvimento de produtos e de patenteamento. Além disso, o pesquisador brasileiro vive de publicação, e a partir do momento em que a publicação foi feita, ele tem um ano para fazer a patente. Para que se torne algo economicamente viável, é algo que também requer uma mudança de mentalidade do pesquisador”, finaliza.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.