Na crise, coparticipação entra como estratégia, mas faltam ações estruturais entre empresas e planos

Na crise, coparticipação entra como estratégia, mas faltam ações estruturais entre empresas e planos

Mais empresas adotam coparticipação para reduzir desperdícios com consultas e exames nos planos de saúde. Setor considera a ação positiva.

By Published On: 20/03/2024
Número de empresas que adotam coparticipação cresce, mas cobram ações dos planos de saúde.

O cenário de crise na saúde suplementar levou as operadoras a repassarem altos reajustes aos planos empresariais para recompor a receita e reduzir a sinistralidade de suas carteiras. Contudo, esse fenômeno tem se refletido nas empresas contratantes, que buscam saídas para diminuir o custo com os planos de saúde. De acordo com pesquisa realizada pela Pipo Saúde, a utilização da coparticipação pelas empresas, por exemplo, subiu de 52% para 65% entre 2023 e 2024, enquanto o número de empresas que pagam integralmente o plano de saúde para os colaboradores recuou de 60% para 45%.

O mecanismo de coparticipação é visto como forma de evitar desperdícios, já que o colaborador assume uma parcela dos custos com consultas, exames e procedimentos simples. Dessa forma,  ao dividir a conta com os beneficiários, há expectativa de reduzir os custos com as operadoras, apesar de não ter impacto direto na sinistralidade.

Mas outras soluções também estão no radar. Quando a utilização de alguns segmentos é alta, como saúde mental ou telessaúde, empresas têm buscado serviços de mercado fora de suas operadoras para também tentar reduzir a sinistralidade. Isso porque startups focadas nessas áreas tendem a ter um custo menor do que as consultas convencionais dos planos de saúde.

“Há uma expectativa frustrada sobre os planos não necessariamente fazerem gestão de saúde ou algum tipo de trabalho de atenção primária, por exemplo. Acreditamos que essas são boas práticas para você ter de fato uma saúde melhor, com prevenção e desfechos, além do uso racional do plano”, afirma Emmanuel de Souza Lacerda, superintendente de saúde e segurança na indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Especialistas ouvidos pelo Futuro da Saúde apontam que faltam iniciativas concretas e uma conciliação entre empresas e planos de saúde para gerir a saúde dos colaboradores, promover educação sobre o uso consciente dos planos e ter produtos que consigam reduzir os desperdícios, como coordenação do cuidado.

“Essa equação só começará a mudar quando as empresas entenderem que dar acesso, entregar uma carteira de plano médico, não representa a melhoria da saúde dos beneficiários. Ela precisa pensar como a empresa navega e auxilia os empregados e seus dependentes a terem mais qualidade de vida, a usar o plano de saúde conscientemente”, afirma Leonardo Giusti, sócio-líder de infraestrutura, governo, healthcare & life sciences da KPMG no Brasil.

Mudanças nas empresas

Além da coparticipação e dos colaboradores arcando com parte da mensalidade, corretoras de benefícios apontam que existem outras consequências sobre os altos reajustes e aumento de custos das operadoras. Uma delas é a mudança de planos de saúde.

“As empresas baixaram o nível de cobertura. Ofereciam o mesmo plano para toda a população, e começaram a refletir que esse plano para uma parte da população talvez não faz sentido, porque ela não se beneficia de uma rede específica que está sendo paga por não estar naquela localidade. Então, oferecem um benefício que é um pouco mais barato para ela”, explica Thiago Torres, cofundador da Pipo Saúde.

Essa é a mudança mais comum vista no setor, mesmo em outros cenários de custos. Torres também aponta que há uma tendência de as empresas oferecerem planos de saúde sem reembolso, já que é considerado uma das ferramentas com maior risco de ter fraudes contra as operadoras, o que acaba por aumentar o valor da sinistralidade da carteira.

A 31ª edição da Pesquisa de Benefícios da Mercer Marsh Benefícios, realizada em 2023, também apontou outras tendências. Ouvindo 850 empresas, a consultoria aponta que 51% oferece ações voltadas à saúde mental, 24% possui ambulatório interno e 50%  benefícios de atividades físicas.

“Para tentar frear a sinistralidade as empresas devem manter um valor de prêmio adequado ao gasto da apólice para manter o equilíbrio entre sinistro e prêmio, avaliar oportunidades de harmonização e redesenho do plano médico para ajustes e contenção do crescimento dos custos e possuir um programa de gestão de saúde estruturado que faça parte da cultura da empresa”, explica Helder Valério, superintendente de Gestão de Saúde da Mercer Marsh Benefícios.

A Pipo Saúde busca contribuir com esse controle da sinistralidade oferecendo um programa de coordenação do cuidado às empresas clientes e telessaúde, além de realizar uma busca ativa para acompanhar as utilizações. O cofundador Tiago Torres afirma que as empresas que utilizam possuem 11% a menos na sinistralidade.

Apesar do olhar das empresas estar voltado para reduzir custos, especialistas apontam que ainda são tímidas as ações para além de entregar benefícios. Por isso, cobram que exista um trabalho mais robusto com foco na gestão de saúde, com programas e ações internas contínuas.

“Existem medidas financeiras, mas é melhor tratar as causas. A redução de custos é consequência de uma estratégia de saúde bem feita, em prioridades bem definidas com indicadores e acompanhamento da gestão. Se a empresa não faz nenhum diagnóstico da sua equipe, não tem um instrumento de medição, nunca vai saber onde estão os problemas”, defende Luiz Edmundo Rosa, diretor de desenvolvimento de pessoas da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH Brasil).

Cenário da saúde suplementar

Com uma sinistralidade média de  88,2% nos três primeiros semestres de 2023, os planos de saúde vêm buscando recompor os prejuízos. Desde o final de 2021, as operadoras amargam prejuízos recorrentes, e os dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) apontam para resultado operacional negativo acumulado de R$ 6,3 bilhões, entre janeiro e setembro de 2023.

“Os planos estão repassando inflação médica, custos assistenciais, uso de tecnologia e efeito cambial, porque o Brasil é extremamente dependente do mercado externo. As operadoras têm o desafio do equilíbrio orçamentário. Provedores de serviços precisam ser remunerados à medida que são utilizados”, afirma Giusti, sócio-líder da KPMG no Brasil.

Esse cenário levou a altos reajustes das carteiras empresariais, com uma média do mercado em 14,38%. Em alguns contratos, o reajuste aplicado foi acima dos 20%, o que contribuiu com que as empresas buscassem alternativas para reduzir os custos com planos de saúde.

“O contratante busca trocar a operadora de tempos em tempos, a rotatividade das operadoras é muito alto. O outro efeito é o aumento da coparticipação. Tudo isso, porque o custo de saúde vem aumentando muito quando a gente compara com outros indicadores de desempenho, por exemplo, a remuneração direta, a inflação e, muitas vezes, a geração de riqueza da própria empresa”, explica Giusti.

De acordo com a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), a coparticipação pode ser importante para colaborar com o controle de custos. Mesmo que em geral seja um produto mais barato, ele se torna rentável pela sinistralidade ser proporcionalmente menor, segundo Marcos Novais, superintendente executivo da entidade.

“Na situação em que estamos de utilização desenfreada, sem nenhum tipo de razoabilidade, é fundamental. Ter a coparticipação é uma forma de proteger os demais beneficiários. Temos que proteger as pessoas dessa má utilização, ela é bancada por todo mundo. Isso é injusto”, defende Novais.

Importância da coparticipação

A coparticipação é vista como importante ferramenta, tanto para empresas quanto para as operadoras. Isso porque, segundo elas, consegue reduzir o desperdício de recursos com consultas e exames desnecessários, por má utilização do usuário. Por o plano de saúde ser tradicionalmente um “cheque em branco”, que paga conforme a utilização, a coparticipação cria um senso de responsabilidade.

Dados da ANS apontam que planos com fator moderador (coparticipação ou franquia) cresceram 4,3% em 2023. A Abramge aponta que cerca de 60% dos planos de saúde no Brasil adotam o modelo, que não possui uma regra definida sobre os limites que podem ser praticados.

Isso porque a Resolução Normativa 433/2018 da ANS, que definia as regras sobre coparticipação no Brasil, foi suspensa pelo Superior Tribunal Federal (STF), após a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionar as regras estabelecidas. Posteriormente, foi revogada pela Agência. O texto definia que o limite máximo de coparticipação seria 40%, isto é, os beneficiários poderiam arcar com o valor de até 40% do total de consultas, exames e procedimentos simples.

No final de 2023, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que o limite de contribuição de um beneficiário, através da coparticipação, seria de 50% para tratamentos de terapia intensiva, considerando abusivo cobranças acima desse valor. Contudo, a Abramge defende que é preciso abrir novamente a discussão junto a ANS.

“No Brasil ainda é muito novo esse modelo. Nos Estados Unidos estão mais avançados. Poderíamos fazer um sistema progressivo, sendo o primeiro exame sem coparticipação, o 2º com 20%, o 3º com 40% e o 4º com 80%. Você não pode ficar fazendo exames o tempo todo sem necessidade. Mas nosso modelo é cheio de restrições e não permite o escalonamento. Mesmo o valor máximo de participação não está previsto em lugar nenhum”, defende Marcos Novais.

O superintendente executivo explica que o modelo de franquia, que estabelece um valor fixo para casos de internação, por exemplo, é pouco utilizado no país, mas aponta que ambos modelos de moderação financeira são importantes para o sistema e contribuem para evitar abusos e desperdícios.

Além dos custos

Além de controlar os gastos com a saúde dos colaboradores, existe uma discussão sobre a gestão de saúde como um todo. Criar estratégias para manter as pessoas saudáveis é vista pela ABRH como uma importante medida para reduzir as idas a serviços de saúde.

Uma das ideias é desenvolver programas de promoção de saúde, envolvendo trabalhadores e seus familiares, trazendo aspectos de gamificação para estimular hábitos saudáveis. Também defende que a empresa deve criar uma cultura de informação e educação sobre o uso do plano de saúde, suas funcionalidades e impactos.

“Grande parte das operadoras já oferecem medicina à distância e serviços remotos de atendimento 24 horas. Se você pergunta nas empresas, os colaboradores não sabem disso e portanto, não o utilizam. É total responsabilidade da empresa divulgar. Se o serviço não funciona bem, é responsabilidade dela também exigir que funcione”, argumenta Luiz Edmundo Rosa, da ABRH Brasil.

Para Emmanuel de Souza Lacerda, da CNI, o plano de saúde tem que deixar de ser encarado pelas empresas apenas como um benefício. É preciso ter uma visão mais geral sobre a gestão de saúde dos trabalhadores e como ela é importante.

“Tem aspectos econômicos e financeiros envolvidos, mas se for bem utilizado não só traz ganhos financeiros, mas pode trazer produtividade, já que trabalhador saudável é mais produtivo, e possibilita que a empresa foque no seu negócio central. Uma boa gestão da saúde deve ser usada como estratégia para alavancar melhores condições aos colaboradores”, afirma.

Para a Abramge, mesmo que as empresas atuem com promoção de saúde ou ofereçam outros serviços, como de saúde mental, ser uma pessoa saudável não inibe que a sociedade faça mau uso do plano de saúde. Modelos de coparticipação ainda são necessários para atuar diretamente nos custos.

“Todas essas ferramentas são imprescindíveis, mas cada uma delas é para tratar uma questão. Atenção primária para rastrear e identificar uma doença logo em estágio inicial é fundamental. Fazer um processo de conscientização das pessoas sobre sua saúde e o uso do plano de saúde é importante. O mecanismo de regulação financeira está paralelo, mas é um bloco para organizar e evitar desperdícios”, argumenta Marcos Novais.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

About the Author: Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

One Comment

  1. Deborah 21/03/2024 at 13:32 - Reply

    Excelente!

Leave A Comment

Recebar nossa Newsletter

NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

Artigos Relacionados

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br