Consulta pública sobre cigarros eletrônicos entra na reta final e Anvisa deve retomar discussão sobre a regulamentação

Consulta pública sobre cigarros eletrônicos entra na reta final e Anvisa deve retomar discussão sobre a regulamentação

Agência recebe contribuições até 9 de fevereiro sobre cigarros eletrônicos, mas expectativa de especialistas é pela manutenção da proibição.

By Published On: 07/02/2024
Anvisa rediscute regulamentação dos cigarros eletrônicos.

A discussão sobre a regulamentação dos cigarros eletrônicos no Brasil voltou à discussão pública no final de 2023. Duas grandes movimentações trouxeram os holofotes para os Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs), sendo uma pelo caminho Legislativo, por meio do Congresso Nacional, e outra na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Até 9 de fevereiro, a agência recebe contribuições, por meio de consulta pública, sobre a regulamentação dos cigarros eletrônicos. Desde 2009, a comercialização, importação e propaganda desses dispositivos é proibida no país. Em 2022, a diretoria do órgão referendou a proibição. No entanto, o tema começou a ser rediscutido, a fim de aperfeiçoar as normativas, já que existem novos aparelhos, como os pods, além de vapes e outros.

No Senado Federal, projetos de lei pela proibição ou pela liberação dos cigarros eletrônicos tramitam nas casas. Enquanto a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) propõe regulamentar o tema, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) busca tornar crime comercializar ou fornecer dispositivos a menores de 18 anos.

Para a indústria do tabaco, essa é uma oportunidade de defender uma regulamentação que seja semelhante a do cigarro convencional. Os argumentos giram em torno de a proibição não coibir a venda, já que a facilidade com que tais produtos são encontrados em lojas físicas e online mostra que há uma falha, e que uma liberação poderia ter maior controle sobre os riscos à saúde destes produtos, gerar empregos e contribuir com impostos.

Para a Aliança de Controle do Tabagismo (ACT), uma das principais organizações que atuou para a implementação da lei que proíbe fumar em locais fechados no Brasil, e para a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), a abertura da consulta pública é importante para a Anvisa referendar a proibição sobre esses dispositivos.

Isso porque apontam que há riscos à saúde tão graves quanto os provocados cigarro convencional, com destaque para a EVALI, sigla em inglês para “lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico”, e os impactos financeiros dos cuidados com a saúde dos usuários é maior que o possível impacto na arrecadação de impostos. Ainda, observam que uma liberação poderia provocar uma epidemia na população, principalmente entre os jovens.

“Existem mais de 30 países que proíbem, assim como o Brasil. A regulamentação de fato é variada, mas tivemos uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), chamando a atenção dos países para a proibição da comercialização dos cigarros eletrônicos”, lembra Mariana Pinho, coordenadora do Projeto Controle do Tabaco. Recentemente, o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, anunciou que vai apresentar uma legislação para proibir os cigarros eletrônicos descartáveis, uma medida que pretende combater o aumento significativo do consumo entre os jovens.

Procurada, a BAT Brasil, subsidiária da British American Tobacco e uma das principais interessadas na regulamentação, não se pronunciou sobre o tema. 

Anvisa

A decisão da Anvisa em abrir uma nova consulta pública, em dezembro de 2023, tem como objetivo atualizar as normas vigentes no país. A ideia é trazer as novas evidências científicas para o debate, assim como acompanhar a evolução do mercado, que oferece novos produtos aos usuários.

O diretor-presidente Antonio Barra Torres, durante a 19ª Reunião Ordinária Pública da Diretoria Colegiada da Anvisa que aprovou a abertura da consulta pública, afirmou que “vamos lembrar que o dinamismo da ciência nos dias de hoje é avassalador, e é claro, a Agência não ficará de maneira nenhuma refratária a absolutamente nenhuma informação científica e estruturada que sejam enviadas para nós”.

No entanto, o relatório apresentado durante o encontro reitera a manutenção da proibição. Dentre os principais argumentos apresentados no documento estão a baixa prevalência de fumantes que utilizam dispositivos eletrônicos no Brasil, estabilidade com discreto decréscimo no número de usuários nas capitais brasileiras e os riscos à saúde da população. 

Em 2009, quando houve a proibição, a decisão da agência foi baseada na precaução aos impactos na saúde por falta de evidências científicas. Em 2022, o Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) – Dispositivos Eletrônicos para Fumar, apresentou dados que corroboram a proibição.

De acordo com informações do Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia (Covitel) de 2022, cerca de 7,3% dos adultos acima de 18 anos fazem uso de cigarro eletrônico no Brasil. Já o levantamento da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), mostra que um a cada cinco jovens de 18 a 24 anos usa cigarros eletrônicos no Brasil.

No entanto, mais que a proibição, segundo Mariana Pinho, é preciso avançar no controle dos produtos ilegais. “Esse relatório da Anvisa fala sobre a importância da agência em melhorar não só a sua capacidade de fiscalização, mas também estabelecer parcerias e aproximações com outros órgãos do governo, tanto em nível federal quanto em níveis estadual e municipal. Fazer parcerias com polícia rodoviária e polícia federal para fazer controle de portos e aeroportos, com os Correios para evitar entregas de compras feitas pela internet”, explica.

Apesar de um dos argumentos de quem é a favor da regulamentação ser essa falha em coibir o comércio ilegal, Pinho é categórica ao aponta que tornar o produto regulamentado no país não inibe a presença de produtos falsificados ou que entram de forma clandestina, já que com o cigarro convencional há o mesmo problema. Estima-se que o país deixou de arrecadar R$ 94,4 bilhões em impostos nos últimos anos com a entrada de produtos contrabandeados.

Saúde pública

“Os cigarros eletrônicos adicionam riscos devido à forma que esses dispositivos funcionam. Eles precisam de uma bateria com energia e um filamento para poder aquecer o líquido. Então, existem vazamentos de metais que são inalados pelo fumante. Um deles é o níquel. Está em níveis de 2 a 100 vezes maior nos usuários de cigarros eletrônicos em relação à população geral, e foi relacionado com câncer dos seios da face e pulmão”, explica o coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da SBPT, Paulo Corrêa.

Esses dispositivos também causam uma nova doença, a já mencionada EVALI. De acordo com o médico, os sintomas podem variar como tosse, febre, náuseas, vômitos e diarreia, além de apresentar uma radiografia do pulmão semelhante ao aspecto provocado pela Covid-19.

Entre 2019 e 2020, os Estados Unidos passaram por um aumento expressivo de adolescentes usuários de dispositivos eletrônicos para fumar. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças, o CDC, levantou um alerta quando 2.807 pessoas foram hospitalizadas e 68 mortes ocorreram decorrentes do uso de cigarros eletrônicos.

“A SBPT começou a catalogar os casos de EVALI e levamos à Anvisa, alertando que era importante caracterizar a epidemia, que apesar dos cigarros eletrônicos serem proibidos no país, era importante o que estava acontecendo. A Anvisa retornou pra gente dizendo que não ia tornar a notificação obrigatória porque o produto é proibido no Brasil. É uma explicação que não se justifica”, aponta Paulo Corrêa. Não há números oficiais de casos no país.

Os especialistas colocam em xeque o argumento de que os cigarros eletrônicos são importantes alternativas para quem consome os cigarros convencionais. Uma pesquisa desenvolvida pela Divisão de Pesquisa Populacional do Instituto Nacional de Câncer (INCA), publicada em 2021, aponta que entre os usuários de dispositivos eletrônicos para fumar na faixa entre 15 e 24 anos, 86% não faziam uso de cigarro convencional. Ainda, reforçam que os pods, vapes e outros não liberam apenas vapor de água como se imagina.

“A nicotina está presente nos dois. Nesses modelos eletrônicos é muito frequente a adoção, por processo químico, do sal de nicotina. É a mesma substância nicotina, só que ela se apresenta de uma forma diferente. O efeito que traz à saúde e a dinâmica cerebral de quem consome é completamente diferente, é mais facilmente absorvida. O processo de adição está diretamente ligado aos impactos cerebrais e presença de nicotina em nível cerebral”, aponta Mariana Pinho, da ACT.

Impacto financeiro com cigarros eletrônicos

Estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG), encomendado pela BAT Brasil, aponta que a liberação dos cigarros eletrônicos no Brasil poderia gerar 115 mil empregos, entre formais e informais. Eles seriam em áreas como agricultura, fabricação e comércio dos dispositivos.

O levantamento também aponta para uma possível arrecadação anual líquida de R$673 milhões ao Governo com impostos, sendo que o setor de fabricação de produtos do fumo seria responsável por R$ 136 milhões do total. Entretanto, os especialistas apontam que o impacto na saúde da população gera um custo muito maior aos cofres públicos.

Estimativa do Institución Académica Facultad de Medicina de la Universidad de Buenos Aires (Iecs), realizada em parceria com instituições de diferentes países, entre elas a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), indica uma despesa de R$ 50,28 bilhões ao sistema de saúde, no cuidado com doenças e condições decorrentes do tabagismo, o que ainda não incluía os impactos do cigarro eletrônico.

O estudo também indica outros impactos, como R$42,45 bilhões pela perda da produtividade no trabalho e R$32,4 bilhões em cuidados de familiares adoecidos. Os valores foram convertidos do dólar com base no câmbio da época do estudo, produzido em 2020.

Mesmo que o cigarro convencional já seja liberado, Paulo Corrêa aponta que um erro não justifica o outro. “O cigarro convencional foi liberado numa época em que não se sabia que provocaria todas essas doenças. Quando as indústrias se puseram a empresariar e buscar lucros com os cigarros, modificaram geneticamente a planta do tabaco para ter maior teor de nicotina e adicionaram substâncias viciantes no meio”, explica o médico.

Projetos de lei

Na justificativa para a proposição do projeto de lei, a senadora Soraya Thronicke defende que o uso de cigarros eletrônicos no país vem aumentando e os usuários precisam de segurança. Dados do IPEC – Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica apontam para 2,2 milhões de usuários no Brasil em 2022, frente a 500 mil usuários em 2018.

“A posição brasileira de simplesmente proibir a comercialização, a importação e a propaganda é o mesmo que tapar o sol com a peneira. A utilização dos cigarros eletrônicos é crescente e seus usuários não recebem nenhum tipo de proteção ou orientação por parte do Estado”, argumenta a senadora.

Ainda, defende que é preciso trazer segurança jurídica aos fornecedores e aproveitar a regulamentação para arrecadação de impostos, apontando que mais de 80 países, incluindo o Reino Unido e os Estados Unidos, já possuem regulamentação sobre o tema. No entanto, a Food and Drug Administration (FDA) faz um alerta.

“Muitos estudos sugerem que os cigarros eletrónicos e os produtos de tabaco não combustíveis podem ser menos prejudiciais do que os cigarros combustíveis. No entanto, ainda não existem provas suficientes para apoiar as alegações de que os cigarros eletrónicos e outros DEFs sejam ferramentas eficazes para deixar de fumar”, afirma em seu site a agência americana.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) defende, em relatório publicado em 2023, que países que proibiram a comercialização devem reforçar a proibição, com um monitoramento e vigilância sobre questões de saúde pública, além de aplicar as normas de maneira rigorosa. Países que já liberaram a venda e consumo devem trabalhar para “reduzir o seu apelo e os seus danos para a população, nomeadamente através da proibição de todos os sabores, limitando a concentração e a qualidade da nicotina e taxando-os”.

Para a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), não cabe ao Congresso regular sobre o tema, sendo da Anvisa a competência técnica para avaliar a regulamentação dos cigarros eletrônicos no país. “É a melhor forma de proteger a saúde da população”, afirma Paulo Corrêa.

A ACT – Aliança de Controle do Tabagismo tem posicionamento semelhante, e defende a realização da consulta pública, pois está “totalmente alinhada com um relatório que a área técnica da agência produziu, recomendando a manutenção da proibição, mas também a ampliação sobre a produção, transporte e outras situações”, afirma Mariana Pinho.

Rafael Machado

Jornalista com foco em saúde. Formado pela FIAMFAAM, tem certificação em Storyteling e Práticas em Mídias Sociais. Antes do Futuro da Saúde, trabalhou no Portal Drauzio Varella. Email: rafael@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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