Ministério elabora proposta para compra centralizada de tratamentos oncológicos
Ministério elabora proposta para compra centralizada de tratamentos oncológicos
Compra centralizada divide opiniões de especialistas, mas modelo é visto como oportunidade para reduzir custos e garantir acesso.
O Ministério da Saúde está estruturando uma proposta para ampliar a compra centralizada de tratamentos oncológicos. A informação foi confirmada pela pasta ao Futuro da Saúde e visa garantir mais qualidade, segurança de abastecimento e equidade na distribuição de medicamentos a pacientes com câncer.
“A ação está em concordância com a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, que permite a pactuação, no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite, para a compra centralizada de novas tecnologias pelo Ministério da Saúde, seguindo critérios prioritários”, informa a pasta.
As neoplasias com tratamento de alta complexidade ou com maior incidência e incorporações que representam elevado impacto financeiro para o SUS são consideradas prioridades para as compras centralizadas. A organização logística e a adaptação no sistema de gestão são apontados como os desafios pelo Ministério.
No entanto, a proposta divide opiniões. De um lado, associações de pacientes defendem que a proposta pode ser uma solução para resolver as defasagens nos valores das Autorizações de Procedimento Ambulatorial (APAC), que muitas vezes inviabilizam a compra de medicamentos pelos hospitais, além de reduzir os custos da saúde pública.
Por outro lado, teme-se o risco de desabastecimento nacional por problemas na licitação ou de produção, como ocorreu com o Trastuzumabe em diferentes períodos ao longo dos últimos anos. Incorporado ao SUS desde 2012, o tratamento é obtido via compra centralizada e distribuído para estados e municípios.
“O que o paciente precisa é que o sistema flua para que ele seja atendido sem barreiras. Ele quer ter acesso ao que deve ter. Não importa se vai ser compra centralizada ou as Unidades de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON) e Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACON) fornecendo. Quando estamos falando de tratamentos sistêmicos no SUS, existe um modelo de financiamento e dispensação que tem gerado uma iniquidade no sistema”, afirma Tiago Farina Matos, conselheiro de advocacy para o Instituto Oncoguia.
Gestão anterior concluiu que compra centralizada não era bom caminho
Maíra Botelho, que foi secretária de Atenção Especializada à Saúde (SAES) em 2022, afirma que a compra centralizada para medicamentos oncológicos foi um tema debatido pela pasta durante a gestão do ministro Marcelo Queiroga. No entanto, chegou-se à conclusão de que não era um caminho seguro para o tratamento do câncer.
“Na compra centralizada, qualquer problema licitatório que o Ministério tenha ou de ordem administrativa na condução da compra, pode impactar. Demandaria uma organização tripartite, não apenas do Ministério. Além de processos de trabalho, demanda uma reorganização de infraestrutura do sistema em todos os níveis, para fazer provisão, previsão e padronização”, afirma Botelho.
Apesar do Ministério da Saúde, através da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), desenvolver os Protocolos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para cada doença, sendo revisado quando há incorporação de novos tratamentos, Maíra explica que os serviços têm autonomia. Por isso, seria necessário dialogar para haver uma padronização.
A ex-secretária também defende que pela complexidade da doença e do tratamento, o fornecimento de terapias para o câncer não pode falhar. Ter a compra descentralizada, segundo ela, evita que haja problemas licitatórios que desabasteçam todo o país de uma vez, podendo provocar uma crise de saúde grave.
“Qual é o problema de saúde pública que queremos resolver com essa modificação? É isso que precisamos responder de forma clara. O problema da APAC não se resolveria com compras centralizadas, não temos nenhuma evidência sobre isso. Temos um problema então de necessidade de revisão do procedimento de quimioterapia. A revisão tem que ser periódica, e se existe alguma lacuna, deve ser ajustado”, questiona Botelho.
Do ponto de vista do ganho financeiro, já que comprar para todo o país traz escala e poder de negociação, Maíra afirma que os riscos e a complexidade logística não tornam essa possibilidade vantajosa para a população. Mesmo que o Governo faça trabalho semelhante para o tratamento de HIV, argumenta que são composições diferentes que demandam de processos particulares.
“Com a justificativa de se ganhar escala, existem alguns arranjos que permitem fazer compras coletivas, como os consórcios regionais e os entre hospitais filantrópicos, que fazem aquisições nesse sentido e que dão uma maior capacidade de negociação com a indústria. Com isso conseguem disponibilizar com o melhor preço”, explica ela.
Questão da APAC e pacientes
Para o conselheiro de advocacy do Instituto Oncoguia, Tiago Farina Matos, tanto a compra centralizada quanto a descentralizada podem funcionar, desde que sejam bem gerenciados pelo poder público. Isso impacta diretamente na vida dos pacientes oncológicos, já que pode provocar ou não o desabastecimento de um medicamento que, em alguns casos, muda o curso da doença.
Hoje os tratamentos para o câncer no SUS são, em sua maioria, comprados diretamente pelos hospitais utilizando recursos totais ou parciais provenientes do Ministério da Saúde. No entanto, a grande questão que afeta a população é que nem todos as terapias incorporadas chegam de fato às unidades de saúde.
Isso ocorre porque existe uma defasagem no valor da APAC, assim como ocorre com a Tabela SUS. Isso faz com que hospitais sem grande estrutura financeira ou que atendam exclusivamente a saúde pública deixem de fornecer os medicamentos aos pacientes, já que os gastos são maiores que o repasse.
“O Ministério repassa um valor ao hospital e a instituição tem que custear todo o atendimento do paciente com esse valor, o que inclui materiais e profissionais. Tem casos, por exemplo, que o Ministério repassa 1200 reais e o hospital paga 4 mil reais pelos medicamentos”, explica Farina Matos.
Ele aponta que para alguns casos há uma perspectiva do Ministério da Saúde de revisar o valor e garantir o acesso à população. No entanto, para outros medicamentos não há perspectiva. Entre as principais respostas obtidas para o atraso na atualização do valor da APAC está que o tratamento ainda não foi atualizado no PCDT.
“Não tem que aguardar elaboração de PCDT para fornecer medicamento que foi incorporado. A própria lei diz assim. Existem casos que os pacientes aguardam há 3 anos essa elaboração. Quando for incorporado, tem que utilizar os 180 dias para atualizar o PCDT. Não podem errar e utilizar o próprio erro para justificar o atraso”, defende o advogado.
Por isso, Tiago observa que, desde que bem gerenciado, ambos os modelos de compra podem funcionar e garantir os medicamentos. Para isso, deve haver uma avaliação a partir da incorporação de quais casos cada modelo funciona. Entretanto, hoje a APAC se mostra ineficaz para garantir os medicamentos oncológicos.
“Não é para o gestor pensar se ele quer ou não realizar a compra centralizada. É para ele avaliar quais casos são importantes ou não, porque vão gastar mais ou menos. É preciso ter dados para embasar a decisão. É preciso avaliar quando pagar menos vale o esforço com a logística”, observa.
Processo de licitação
O conselheiro de advocacy do Instituto Oncoguia afirma que existe um momento determinante para começar o processo de aquisição. “Se pretende fazer compra centralizada, o momento da incorporação deve ser um gatilho para abertura de um processo para iniciar os trâmites necessários e fornecer o medicamento em 180 dias ao paciente. A área que precisa fazer a compra deve dar o start, conversar com o laboratório, ver o compromisso que foi assumido na Conitec e negociar”, observa Matos.
Para ele, é possível reduzir os riscos de falhas e desabastecimento através de uma boa gestão. Em casos excepcionais, é possível fazer compras emergenciais desses medicamentos essenciais para a população, mas observa-se que essa ferramenta não pode ser utilizada para cobrir falhas de gestão.
A Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, aprovada em 2023, aponta que “deverão ser discutidas e pactuadas no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) as responsabilidades de cada ente federado no processo de financiamento, de aquisição e de distribuição da tecnologia, respeitadas a manutenção do equilíbrio financeiro entre as esferas de gestão do SUS e a garantia da linha de cuidado da doença”.
Apesar de definir as prioridades para compras centralizadas e possibilidade de uso da APAC para a compra de medicamentos incorporados, a lei estabelece que os medicamentos adquiridos via APAC serão negociados pelo Ministério da Saúde, com a possibilidade de estabelecer um sistema de registro de preços.
No entanto, a necessidade de pactuação para cada incorporação é vista com ressalvas. “Tradicionalmente a oncologia quem paga é o Ministério da Saúde. Não acredito que deveria ter pactuação a cada medicamento. O Ministério tem que decidir se vai ser compra centralizada e os estados vão ser responsáveis por receber e distribuir aos hospitais. A CIT deveria fazer uma resolução decidindo isso, quando vai fazer compra centralizada ou descentralizada”, defende Farina Matos.
Maíra Botelho, ex-Secretária de Atenção Especializada à Saúde (SAES), vê como uma das possibilidades haver uma separação das responsabilidades assim como está sendo proposto para o tema da judicialização, no âmbito do Superior Tribunal Federal (STF). Cada ente poderia ser responsável por uma parte dos valores pagos em casos definidos em acordo. Procurados, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) não quiseram falar sobre o tema.
Recebar nossa Newsletter
NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.