Como a distribuição de absorventes combate a pobreza menstrual e ajuda na saúde pública
Como a distribuição de absorventes combate a pobreza menstrual e ajuda na saúde pública
Desde janeiro, estudantes de baixa renda da rede pública, pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade extrema podem se dirigir até as farmácias populares pare receber os absorventes
O combate à pobreza menstrual teve um novo capítulo no Brasil, com o início da distribuição gratuita de absorventes em farmácias populares desde janeiro deste ano. Essa ação faz parte do Programa de Proteção e Promoção da Saúde e Dignidade Menstrual, uma iniciativa que busca assegurar a saúde e dignidade das mulheres, trazendo um novo marco nas políticas públicas de saúde do país. A expectativa é de que a ação beneficie 24 milhões de pessoas. Desde janeiro, estudantes de baixa renda da rede pública, pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade extrema podem se dirigir até as farmácias populares pare receber os absorventes.
A pobreza menstrual refere-se à falta de acesso a produtos sanitários básicos durante o período menstrual, como absorventes higiênicos, devido a barreiras financeiras. Não se limita apenas à incapacidade de comprar esses produtos, mas também abrange a falta de acesso a instalações sanitárias adequadas, educação sobre higiene menstrual e gestão do ciclo menstrual de maneira saudável e digna.
Este problema afeta a saúde, a educação e o bem-estar geral das mulheres e meninas, podendo levar à ausência escolar, comprometimento da autoestima e, em casos extremos, a problemas de saúde devido ao uso de alternativas inadequadas para gerenciar a menstruação. A pobreza menstrual é um indicador de desigualdades sociais e de gênero, e seu combate envolve políticas públicas que garantam o acesso a produtos de higiene menstrual, educação e infraestrutura sanitária adequada.
Dados de um levantamento feito pela Sempre Livre, marca de cuidados da Johnson&Johnson Consumer Health, e pelos Institutos Kyra e Mosaiclab, mostraram que, no Brasil, 28% das mulheres de baixa renda com idades entre 14 e 45 anos são afetadas pela pobreza menstrual – o que equivale a mais de 11 milhões de pessoas.
No país, a proposta teve origem pelo PL 4968/2019 apresentado pela então deputada Marília Arraes e no Senado teve a relatoria da senadora e médica Zenaide Maia (PSD-RN). A lei obrigava o Governo Federal a distribuir absorventes para mulheres de baixa renda, um projeto que havia sido vetado anteriormente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. A ex-deputada federal disse ao Futuro da Saúde que a luta pela dignidade menstrual é uma bandeira que defende há muitos anos e exatamente por isso, logo no início do seu mandato na Câmara dos Deputados, apresentou a proposta:
“Foi uma verdadeira guerra fazer com que a matéria avançasse porque havia muita desinformação e preconceito sobre o tema. Era como se a menstruação não pudesse ser tratada num espaço de poder como o Congresso”, falou a ex-deputada.
Até chegar à distribuição nas farmácias populares, a efetivação da política pública levou alguns anos e teve entraves. Especialistas ouvidos na reportagem afirmam a necessidade de reconhecer e combater as desigualdades de gênero e a erradicação da pobreza menstrual em diferentes esferas sociais.
O impacto da pobreza menstrual na saúde pública
A criação de políticas públicas para a saúde da mulher e promoção da saúde menstrual contribui para diminuir a vulnerabilidade social. No Brasil, a falta de acesso a absorventes é uma realidade para milhares de mulheres, sendo um problema de saúde global.
A pesquisa “As Brasileiras e a Pobreza Menstrual” do Instituto Locomotiva, encomendada pela Always, mostrou que cerca de 77% das mulheres, pelo menos uma vez na vida, já utilizaram algum item alternativo para absorver o fluxo da menstruação.
Outro aspecto é que a vergonha cultural associada à menstruação e a escassez de recursos impedem as mulheres de irem à escola e trabalharem todos os dias. Pesquisas mostram que 1 em cada 4 meninas faltam à escola no Brasil durante a menstruação, o que traz prejuízos à aprendizagem. O estudo aponta que a pobreza menstrual pode exercer um impacto substancial na frequência escolar por muitos motivos.
“A falta de acesso a produtos de higiene menstrual adequados é um dos principais desafios enfrentados por jovens em contextos de vulnerabilidade econômica”, explica Ana Paula Morais Fernandes, professora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP (EERP-USP).
Segundo Ana Paula, a ausência de educação sobre a menstruação e a carência de acesso a produtos adequados perpetuam a desigualdade e a exclusão social. “A evasão escolar frequente durante o período menstrual pode resultar em um déficit educacional significativo, limitando as oportunidades futuras”, diz.
Além do impacto na educação, outro aspecto também está ligado à saúde de quem menstrua. É que a má higiene menstrual pode causar riscos à saúde física e tem sido associada a infecções do trato urinário e problemas de saúde reprodutiva, de acordo com a UNICEF. Conforme o órgão, muitas pessoas utilizam materiais impróprios para absorver o sangue menstrual – como panos sujos, jornais e papel higiênico de banheiros públicos –, o que pode resultar em doenças e infecções urogenitais, câncer de colo de útero ou Síndrome do Choque Tóxico. No Brasil, 33% das mulheres já usaram papel higiênico no lugar do absorvente. Outras prolongam a vida útil do item a ponto de adquirir infecções, prejudiciais e perigosas.
Trajetória da lei
Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu a dignidade e a saúde menstrual como uma questão de saúde pública e indispensável para a promoção dos direitos humanos. A proposta de distribuição gratuita de absorventes higiênicos, da deputada Marília Arraes (PT), foi aprovada pelo Senado brasileiro em setembro de 2021 e repassada ao presidente na época, Jair Bolsonaro, que a vetou em outubro.
No dia 8 de março de 2023 foi regulamentado, por meio do Decreto nº 11.432, o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, passando a ser referido como Programa de Proteção e Promoção da Saúde e Dignidade Menstrual. O decreto contém a descrição dos objetivos, das pessoas beneficiárias e apresenta o caráter interministerial na definição das estratégias para implementação do programa. Com a aprovação, muito além da distribuição dos absorventes em todo o território nacional, foi necessária uma logística bem planejada e de um orçamento alocado para garantir a implementação da política pública.
Em nota, o Ministério da Saúde disse que, ao longo do ano passado, foram realizadas várias tratativas para definir a sistemática para implementação do programa, tanto no Ministério da Saúde quanto em âmbito interministerial.
A partir dessas tratativas, foi lançada a Portaria Interministerial MS/MM/MJSP/MDS/MEC/MDHC nº 729, de 13 de junho de 2023. Segundo o art. 4º, “serão definidos por ato do Ministério da Saúde, em articulação com os demais entes federados: os procedimentos para a aquisição, distribuição e dispensação gratuita dos absorventes; e a periodicidade, mecanismos e logística previstos no inciso I do caput.” A portaria permite a transferência de dinheiro do governo federal para os municípios, mas deixa claro também que “os Estados, os municípios e o Distrito Federal poderão fornecer, em caráter complementar ao Programa, absorventes higiênicos e outros cuidados básicos de saúde menstrual, com recursos de seus respectivos orçamentos”.
Na nota consta ainda que, em 2024, o Ministério da Saúde lançou duas portarias no dia 15 de janeiro (Portaria GM/MS Nº 3.073 e Portaria GM/MS Nº 3.076) que tratam da execução, critérios, procedimentos e monitoramento da disponibilização gratuita de absorventes higiênicos e outras ações do programa no âmbito da pasta.
“Após definições internas, pactuações interfederativas e estruturação legal, ficou definida a distribuição através do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB), assim iniciada em 17/1/2024”, diz o texto.
Conforme o Ministério da Saúde, a distribuição de absorventes ocorre em mais de 31 mil unidades do Farmácia Popular credenciadas em todo país. Para isso, só precisa ter idade entre 10 e 49 anos, estar inscrita no CadÚnico, ter renda mensal até R$ 218; ou ser estudante de baixa renda da rede pública; ou em situação de rua. A expectativa é a de que a ação beneficie 24 milhões de pessoas. Desde janeiro, estudantes de baixa renda da rede pública, pessoas em situação de rua ou em vulnerabilidade extrema podem se dirigir até as farmácias populares pare receber os absorventes.
Para a Ana Paula Morais Fernandes, professora da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP (EERP-USP), o impacto potencial para o Brasil é abrangente porque o programa visa combater a pobreza menstrual em diversas frentes:
“Ao focar especialmente em estudantes de escolas públicas de baixa renda, pessoas em situação de rua, em vulnerabilidade social extrema e aquelas recolhidas no sistema penal e em medidas socioeducativas, o programa aborda diferentes estratos da sociedade que podem enfrentar dificuldades para acessar produtos de higiene menstrual”, defende.
Diante desse contexto, a ex-deputada Marília Arraes lembra que a aprovação da Lei inclui o Brasil num grupo muito especial de nações com iniciativas concretas para a garantia e ampliação da dignidade menstrual: “Definitivamente foi um marco”, afirma.
Iniciativas buscam trazer esclarecimento
A pauta também afeta toda a esfera da sociedade, como reflete a professora Mônica Maria de Jesus Silva: “O enfrentamento envolve diversos segmentos, desde a sociedade civil até os formuladores de políticas públicas. As vivências de pessoas com útero podem contribuir para esse problema ganhando notoriedade nas instâncias de decisão”, acredita.
Para tornar o tema mais pauta da sociedade, iniciativas buscam dar visibilidade, além de projetos, mesmo que regionais, já que o estigma social associado à menstruação também desempenha um papel significativo.
Mônica e os alunos de Enfermagem da Universidade de São Paulo, desde 2021, fazem ações mensais para distribuição de absorventes na cidade de Ribeirão Preto (SP). Conforme a docente, além da distribuição, o projeto visa promover a informação e o conhecimento sobre o ciclo e a saúde menstrual para todas as pessoas
A professora Ana Paula Morais Fernandes é coordenadora do Programa USP Diversidade e do projeto Projeto MenstruAÇÃO – série de curtas animados sobre educação e comunicação com pessoas que menstruam. Segundo ela, o objetivo é desmistificar tabus e diminuir a desinformação em torno deste processo biológico, natural na pessoa com útero.
A série é apresentada pelo Programa USP Dignidade em parceria com o Instituto Cultural Barong e a Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP. Conforme a docente, o projeto não apenas se destaca pela qualidade técnica de suas animações, mas também pela profundidade de conteúdo, abordando de maneira inovadora e sensível às experiências menstruais:
“O MenstruAÇÃO não apenas reconhece, mas também celebra a diversidade de experiências menstruais, reconhecendo que todas as pessoas que menstruam merecem respeito e compreensão. O projeto visa não apenas fornecer informações precisas, mas também criar um espaço de diálogo aberto sobre um tema muitas vezes tratado com constrangimento, especialmente ao se considerar a diversidade de identidades de gênero e pessoas que menstruam”.
A série de vídeos do MenstruAÇÃO está disponível no YouTube do Programa USP Dignidade. Para a professora, o sucesso de projetos como esse muitas vezes é medido pelo aumento do acesso aos insumos menstruais, conscientização e redução do estigma associado à menstruação. “É encorajador ver o governo reconhecendo a importância da abordagem da dignidade menstrual e agindo para garantir o acesso a produtos de higiene menstrual. Iniciativas como essa são fundamentais para criar uma sociedade mais justa e igualitária”, reforça.
Especialistas ouvidos na reportagem afirmam ser importante não apenas fornecer produtos, mas também promover a educação menstrual e trabalhar para eliminar estigmas, garantindo que todas as pessoas possam vivenciar sua saúde menstrual com dignidade e sem barreiras. Além disso, reiteram uma abordagem que respeite as particularidades de cada região e que a distribuição dos absorventes seja acompanhada de programas educativos abrangentes sobre saúde menstrual, que desfaçam tabus e elevem a conscientização sobre essa questão fundamental.
Afinal, iniciativas como o Programa de Dignidade Menstrual, do Governo Federal, são fundamentais para mitigar esses desafios, assegurando não apenas a dignidade e o bem-estar das estudantes, mas também contribuindo para a promoção da equidade de gênero e para a erradicação da pobreza menstrual em diferentes estratos sociais. O avanço é comemorado pela ex-deputada Marília Arraes, autora da proposta: “Ainda há muito a ser feito para combater a pobreza menstrual no Brasil e isso incluiu um processo permanente e eficiente de educação sobre o tema.”
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.