Sem ampliar financiamento e profissionais, atenção básica não avança
Sem ampliar financiamento e profissionais, atenção básica não avança
Levantamento do IEPS aponta estados com menor cobertura de atenção primária no Brasil. Especialistas apontam caminhar para melhorar o cenário.
O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) fez um levantamento sobre os índices de cobertura da atenção básica à saúde em estados e municípios brasileiros, com o objetivo de analisar a situação nessa importante ferramenta do SUS e contribuir para que os entes federativos busquem ampliar e organizar os serviços em suas regiões. Os dados são de 2021 e foram compilados pelo IEPS Data, iniciativa da organização que visa facilitar o acesso às informações.
Entre os estados, as melhores coberturas estão no Piauí (99,9%), Paraíba (97,5%) e Tocantins (96,6%), sendo que a região Nordeste a que possui a maior abrangência, com 87,1% da população. Distrito Federal (63,3%), São Paulo (63,4%) e Rio de Janeiro (57,2%) apresentam os menores indicadores, assim como a região Sudeste (69,3%).
Em comparação com os dados de 2010, a maioria dos estados tiveram algum aumento ou estão estabilizados. Somente Roraima e Amapá tiveram uma redução expressiva, com uma queda de mais de 7%. Ambos estão localizados na região Norte, sendo reconhecida historicamente como local de difícil fixação de profissionais de saúde.
Futuro da Saúde conversou com representantes do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) para entender quais as dificuldades para o Brasil alcançar as metas desses indicadores e o que é preciso mudar para estimular a atenção básica do SUS.
Dentre os principais pontos, eles indicam que é preciso repensar o modelo de financiamento — uma vez que, em média, os municípios custeiam 70% da atenção básica –, melhorar o cenário de formação de médicos de Família e Comunidade e criar estratégias para a fixação de profissionais em todo o Brasil, especialmente em regiões consideradas vazios assistenciais. Ainda, o avanço da regionalização pode colaborar com uma maior cobertura.
“É muito importante o aumento da cobertura. Só há acesso para todos se a atenção primária estiver próxima da população. Mas só olhar para a cobertura não resolve o problema da atenção primária no Brasil. As 48 mil equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), mais as quase 5 mil Equipes de Atenção Primária (eAP), precisam fortemente melhorar a resolutividade, a qualidade da atenção e organizar redes de fato, integrando os níveis de atenção. Temos que fazer uma revolução no modelo”, defende a coordenadora da Câmara Técnica de Atenção Primária à Saúde do Conass, Maria José Evangelista.
Detalhes da pesquisa de atenção básica
“O nosso objetivo foi pegar alguns dos principais indicadores da atenção básica que permitissem dar o panorama e também a evolução ao longo dos últimos 10 anos no Brasil, tanto no nível estadual quanto municipal. Ao fazer isso, nos chamou atenção para alguns casos de estados principalmente que estavam com coberturas muito baixas e a gente entende que isso ajuda os governos locais a perceberem pontos de atenção que talvez não estejam tão claros e que isso possa ser debatido, discutido e melhorado de certa forma”, explica Helena Arruda, pesquisadora do IEPS.
Além da cobertura da atenção básica, os pesquisadores analisaram a cobertura vacinal contra a poliomielite e o percentual de nascidos vivos com pré-natal adequado. Todos os estados brasileiros tiveram queda no número de pessoas imunizadas contra pólio, ficando abaixo da meta de 95%. Contudo, a situação se agrava em 4 estados, que não alcançaram 60% do público-alvo.
Já os números relacionados à pré-natal mostram uma diferença regional. Enquanto o Sul e o Sudeste tiveram os maiores índices, com o estado do Paraná atingindo a maior marca, de 82,7%, a região Norte possui as menores coberturas, com estados que não acompanharam metade das gestantes.
“Você pode ter casos de regiões, como o Amapá, que apresentou uma cobertura de atenção básica alta em comparação com outros estados, já a cobertura vacinal e o pré-natal adequado estava entre as mais baixas. Mas em linhas gerais é possível ter alguma confluência entre os três indicadores, visto que eles estão olhando para o mesmo nível de atenção”, explica Helena.
É o caso, por exemplo, do Rio de Janeiro. O estado figura entre os piores indicadores nos três temas analisados. Os pesquisadores do IEPS apontam que ele destoa dos números encontrados para outros estados do Sudeste. Os dados chamam a atenção para a situação da atenção primária fluminense.
O levantamento do IEPS levou em consideração o percentual da população residente coberta por equipes da Estratégia Saúde da Família e outras equivalentes. Já o indicador de pré-natal adequado considerou o número de gestantes que tiveram seis ou mais consultas de acompanhamento.
Arruda aponta que apesar da pandemia poder ter impactado as informações, todos os indicadores mostraram uma evolução temporal, indicando uma pequena melhora nas coberturas. Por isso, descarta que tenha sido crucial para determinar os dados relacionados à atenção primária.
“A atenção básica é a porta de entrada dos usuários dentro do sistema de saúde, então é muito importante que ela funcione. Porque se ela funciona a gente evita que aquela pessoa desenvolva alguma doença mais para frente ou permita que ela acompanhe alguma condição crônica que já tenha no presente. Então, escolhemos falar sobre esses três indicadores, que são a cobertura da atenção básica, a cobertura vacinal de poliomielite e o percentual de nascidos vivos com pré-natal adequado”, conclui a pesquisadora do IEPS.
Subfinanciamento
O subfinanciamento do SUS é tema recorrente em debates sobre a saúde pública no Brasil. O orçamento federal da saúde em 2023 foi de R$ 168 bilhões, mas especialistas apontam que é muito abaixo das necessidades que o país enfrenta, com um investimento menor que 4% do PIB. Ao contrário do cenário mundial, a saúde privada representa mais da metade do total gasto com saúde no país.
“A questão do SUS é suprapartidária. Independente de quem está no poder, nunca foi investido mais de 2% do PIB em atenção primária. Só nos últimos tempos criaram uma Secretaria de Atenção Primária. Não é simplesmente trabalhar numa lógica de incentivo a programas que não tem sustentabilidade financeira, mas alterar e recompor o valor do financiamento. Não temos observado crescimento orçamentário da atenção primária”, defende Hisham Mohamad Hamida, presidente do Conasems.
Ele aponta que, em alguns casos, os municípios representam 80% dos investimentos nessa área, mesmo recebendo junto aos estados apenas um terço da arrecadação pública. Municípios que têm menos recursos acabam ficando em situações mais complexas para custear os serviços. Por isso, cobra que o Ministério da Saúde invista de forma mais expressiva.
No entanto, os dados do levantamento do IEPS mostram que mesmo estados com mais recursos, como Rio de Janeiro e São Paulo, líderes em arrecadação de impostos no país, figuram entre as posições mais baixas do ranking da cobertura da atenção primária. São Paulo é o segundo pior, com 63,2% da população alcançada.
“Tem que observar o perfil populacional. Em municípios menores existe a tendência de ter uma cobertura maior, até porque são municípios que não dispõem de média e alta complexidade. Quando falamos que São Paulo tem uma baixa cobertura comparado a outros, temos que ver qual o universo populacional e como se compõe a rede de atenção à saúde”, explica Hisham.
Ainda, o estado possui 35% dos beneficiários de planos de saúde de todo o Brasil, cerca de 18,2 milhões, o que pode impactar a população que de fato é coberta, além de ter a maior população da América Latina, o que demanda um número expressivo de equipes da Estratégia Saúde da Família.
Falta de médicos
“Na prática, às vezes o fato de ter uma cobertura muito boa não quer dizer que está tudo certo, porque muitas vezes o profissional médico não cumpre a carga horária. Tem a cobertura mas não tem atendimento. Isso ocorre muito, principalmente nos estados do Nordeste. Por outro lado, quando se tem a cobertura muito baixa, no geral as grandes cidades, há a dificuldade de não vincular a população à atenção primária e não ter equipes de saúde da família”, aponta Maria José Evangelista, do Conass.
A coordenadora da Câmara Técnica de Atenção Primária à Saúde da entidade explica que olhar apenas o dado bruto pode não mostrar os problemas que estão envoltos nessa área. Apesar de considerar importante abordar o aumento a cobertura, Evangelista explica que é preciso focar na resolutividade e integração das equipes com todo o sistema e seus níveis de atenção.
Para expandir a atuação da atenção primária, além da questão do financiamento, o Conass e o Conasems apontam que há uma falta de médicos em todo o país. Mesmo com a criação e desenvolvimento de programas como o Mais Médicos e o Médicos pelo Brasil, os profissionais não se fixam em regiões longes das capitais, que carecem de estrutura de saúde.
Uma pesquisa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) feita com 60,79% das cidades brasileiras aponta que 979 municípios indicam que faltam profissionais na atenção primária. O cenário se agrava quando 55,3% indicam que estavam há mais de 90 dias sem nenhum médico nas unidades de saúde. O regime de 40 horas semanais é considerado um dos principais entraves para a contratação, seguido pelo salário e falta de recursos.
A Demografia Médica Brasileira 2023, produzida pela Associação Médica Brasileira (AMB) e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), apontam que o país tem mais 514 mil médicos. É preciso criar estratégias para que haja disponibilidade em todas regiões.
O presidente do Conasems, Hisham Mohamad Hamida, também levanta a questão sobre a formaçã: “A grande maioria dos profissionais recém-formados não tem uma formação que venha ao encontro das necessidades do SUS, em especial da atenção básica. Hoje quem procura essa área na sua grande maioria não teve acesso à residência, então ele fica na atenção básica por um tempo até ter a oportunidade de fazer residência”, explica.
Para Maria José Evangelista, do Conass, a falta de profissionais também pode impactar nos índices de pré-natal e vacinação, já que a população deixa de confiar e procurar as unidades de saúde quando não encontra os serviços funcionando. Por isso, tanto o problema quanto a solução são multifatoriais.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.