Claudio Lottenberg, presidente do conselho do Einstein: “Saúde não deve ser polarizada”
Claudio Lottenberg, presidente do conselho do Einstein: “Saúde não deve ser polarizada”
O Futuro Talks dessa semana recebe o médico oftalmologista Claudio
O Futuro Talks dessa semana recebe o médico oftalmologista Claudio Lottenberg, presidente do conselho do Hospital Israelita Albert Einstein, presidente institucional do Instituto Coalização Saúde e ex-secretário de saúde da cidade de São Paulo. Com uma carreira de várias décadas no setor, Lottenberg fala com propriedade dos desafios atuais da saúde e as prioridades que deveriam ser atacadas, que segundo ele envolvem a intensificação da saúde digital, a vacinação e o complexo industrial da saúde, dentre outros.
Ele, inclusive, é um dos representantes da área de saúde que fazem parte do Conselhão e traz um pouco de como foi a participação na primeira reunião. Neste contexto, Lottenberg também comentou sobre a interferência de posições políticas e que a polarização não deveria acontecer na saúde: “É uma área que não deveria ser discutida a cada eleição, mas sim de forma contínua”.
Durante a conversa, ele ainda explorou diversos outros temas quentes do setor, como os legados da pandemia, o avanço da tecnologia, a telemedicina, o uso da inteligência artificial na saúde, a importância da relação médico-paciente, o papel das agências reguladores, como a Anvisa, e de desenvolvimento, como o BNDES, e a questão da cannabis medicinal — Lottenberg é também chairman da Zion MedPharma, empresa brasileira que produz este tipo de medicamento. Para ele, se a substância fosse tratada de fato como um medicamento, as discussões estariam muito avançadas.
Confira a entrevista a seguir:
Você é um dos representantes da área da saúde no recém-criado Conselhão. Como foi a primeira reunião? Você acha que de fato podem sair pautas ou visões que ajudem a direcionar ações mais práticas?
Claudio Lottenberg – O presidente fez questão de acentuar, e eu falo isso sem qualquer paixão de natureza política ou vínculo com quem quer que seja, de que esse conselho tinha o papel de resgatar a participação da sociedade no debate estratégico do nosso país. Isso eu acho muito importante porque o exercício da democracia não acontece somente no período eleitoral, o exercício da democracia depende de uma participação sistemática e, portanto, no momento que o presidente abre esse tipo de espaço – e lá estavam membros do corpo ministerial, vice-presidente e com pessoas, sim, cada uma delas com uma importância em cada um de seus segmentos, por razões até de regionalização, diversidade, escopo de atividade empresarial, algumas pessoas da área da saúde – é um sinal positivo para que a gente possa pelo menos ter a certeza de que vamos participar. Nós sabemos que é um conselho grande, não é fácil. Por outro lado, ele é representativo. O Brasil é muito grande, nós temos mais de 200 milhões de habitantes. Ali também foi lançada a proposta para formar grupos temáticos de discussão. E possivelmente, nesses grupos temáticos, algumas questões a que dizem respeito a área onde a gente tem uma certa expertise vão ser tratados. Estava presente a ministra da saúde e ela já pediu que seja criado um grupo temático de saúde. E falar de saúde, não é só falar sobre saúde na questão da assistência – essa é a mais tangível, a mais objetiva – mas é falar sobre empregabilidade, sobre geração de conhecimento nessa frente. Então, eu logicamente aceitei esse convite, como todas as pessoas que estavam lá, crentes que a gente está trazendo uma contribuição para o nosso país. É bem verdade que existem políticos e, logicamente, que eles têm, e é compreensível, os seus interesses, mas me pareceu – pelo discurso do presidente do próprio vice-presidente e daqueles que estavam lá dos ministérios – que o grau de discussão vai ser maduro, estratégico e bastante sofisticado.
Já tem um próximo passo a partir desse encontro?
Claudio Lottenberg –Tem uma estrutura de natureza digital, de comunicabilidade, que foi criado justamente para isso. Os próximos passos vão ser liberados nesse portal, a gente vai ter a criação, pelo que eu entendi, de um grupo de um comitê gestor que vai estar mais no dia a dia, serão 10 pessoas. Não sei quais serão os critérios para a escolha dessas pessoas e se elas vão aceitar ou não, cada um tem as suas prioridades e necessidades em termos de tempo. Mas em cima disso sai esse primeiro núcleo, depois os grupos temáticos. E tudo isso vai ser acontecer progressivamente. Acho que o conselho deve se reunir pelo menos uma vez a cada 2 meses para, logicamente, trocar ideia e discutir com o presidente. É um grupo estratégico de assessoria ao presidente. Tanto que ele estava lá pessoalmente e diz que vai seguir. Aliás, a reunião havia sido marcada por outra data, como ele teve um problema de pneumonia, uma gripe que ele pegou, acabou atrasando, inclusive, a viagem dele para a China. Quer dizer, ele não passou essa função para ninguém. Acho significativo para nós como brasileiros.
Há espaço dentro do novo governo para discutir, sentar um pouco mais com o setor privado?
Claudio Lottenberg – Eu sinto que sim, aliás, eu quero só voltar um pouquinho atrás e dizer algo que eu comento desde a época em que fui secretário. A questão da saúde é um gargalo que você ultrapassa, em seguida você vai ter outro gargalo. Você sempre teve as questões de novas tecnologias, de financiamento, relacionados à envelhecimento. É que hoje você tem capacidade métrica de detectar isso, talvez primeiro, com uma percepção social mais profunda. As pessoas questionam, “por que ele tem, por que eu não tenho?”. Se era forte na época da televisão, imagina agora com a internet. As pessoas querem ter isso e se traduz em equidade, que no fundo é uma das bases e ferramentas quando a Constituição foi criada em 1988, e que coloca a saúde como direito social. Então, essa questão a gente tem que ter muito claro. Agora, o momento merece uma análise, com certeza. Porque a gente tem nesse cenário, primeiro um rescaldo daquilo que nós passamos. O Brasil e o mundo saíram de um cenário de pandemia absolutamente indesejável, com perdas de vidas humanas, com exposições de problemas sérios, movimentos que eu vejo como equivocados, todo o debate em relação à vacina, o uso impróprio de medicamentos. Quer dizer, ficou patente isso. A sociedade científica demonstrou inúmeras vezes que esse debate estava indo para um caminho equivocado, e eu acho que isso aqui virou muito mais uma bandeira política do que uma resposta a um desafio que era a pandemia. Então, a gente está num cenário em que isso já é um problema por si só. Nós temos que resgatar a importância da boa ciência, da boa medicina e da qualidade. O segundo aspecto que eu acho que é importante é que venha à tona de novo as questões relacionadas à sustentabilidade do sistema.
E como olhar essa questão da sustentabilidade do sistema?
Claudio Lottenberg – Quando a gente olha para a sustentabilidade, não é a falta de recurso somente de natureza econômica, financeira, é como você utiliza melhor esse recurso. E eu não gosto de a gente colocar em contraponto o público versus privado. Eu não acho que isso é correto, porque existem coisas muito boas que acontecem no público que inspiram o privado. No público, a gente fala há muito tempo de atenção primária. No público, a gente fala há muito tempo das questões de vacinação, praticamente todo mundo sempre se vacinou no sistema público, raras as pessoas que procuram instituição privada para se vacinar. Eu que fui secretário da saúde sei disso, aprendi muito. Aliás, digo que eu fui um melhor gestor na área privada, porque aprendi coisas do público. Por outro lado, o público tem determinadas respostas que não são tão eficientes. Dentro da perspectiva da qualidade, a gente sabe que o tempo de resposta em saúde é fundamental. Quer dizer, você não pode deixar de atender um paciente por conta de falta de leito ou de médico. Você não pode deixar de fazer um tratamento porque você não tem o medicamento que não foi comprado por conta de uma licitação que tem que existir. A licitação é instrumento de transparência. Agora, ele não pode ser impeditivo que prejudique a eficiência. Ninguém está dizendo para não ter controle social, para não ter transparência, mas como é que eu faço para responder à sociedade na forma como ela precisa?
Existem inúmeros estudos que dizem que o cidadão quer ser atendido. Ele não está dizendo que ele quer ser atendido pelo privado ou pelo público, ele quer ser atendido. Tem um cenário onde tem que existir uma convergência para aproveitar as virtudes de todos os lados.
E o setor privado?
Claudio Lottenberg – Quando você olha para o privado, essa queixa da falta de recursos também está acontecendo. Tanto que os grandes planos de saúde começam a investir e estimular os programas de atenção primária, com coordenação do cuidado. Porque eles sabem que em 90% das vezes, uma consulta que é feita dentro desse cenário é resolutiva. Então, veja quanto desperdício nós temos e o quanto o privado acaba sendo inspirado naquilo que acontece no público. Eu sou entusiasta em relação a isso, você sabe que eu sempre defendi as organizações sociais de saúde em São Paulo. Na área da prefeitura vieram quando eu fui secretário – nós não podemos nos deixar levar pelas ações que não são boas, mesmo porque no mundo privado ou no público você tem sempre maus exemplos. Veja aquilo que o Einstein, por exemplo – hospital que eu presido hoje o conselho –, fez durante a pandemia com o Hospital do M´Boi Mirim, que foi o maior hospital Covid de todo hemisfério sul. Os indicadores que nós tínhamos eram melhores do que os hospitais de contratação direta. No corpo do Ministério da Saúde – nada a ver com o Conselhão – a própria ministra criou um outro conselho estratégico e fruto dessas conversas, de um organograma que ela montou, surgiu ali uma Secretaria de Saúde Digital.
Acredita que a Secretaria de Saúde Digital pode trazer avanços?
Claudio Lottenberg – Veja a dificuldade que foi para trazer a telemedicina para o Brasil. E aí conseguimos trazer a telemedicina, a duras penas, até por conta da pandemia, porque até então não era nem regulamentado. Foi regulamentada precariamente durante a pandemia. Realmente o pessoal percebeu que estava numa mobilização tremenda, uma discussão exaustiva sobre coisas que não eram importantes e nós não podíamos ter telemedicina, coisa que já tinha nos Estados Unidos desde 1994 e no Reino Unido desde 1996. E, pasmem, na Venezuela e na Angola também há muito mais tempo do que nós. Com a Secretaria de Saúde Digital há uma oportunidade tremenda de acompanhar de monitorar, de ter dados, de trabalhar a inteligência artificial. Estimular, inclusive, uma cultura de desfechos. Essas coisas são, aliás, imprescindíveis até para a sustentabilidade do sistema. Porque aí a gente vai de fato entender “puxa vida, aqui eu remunero mal, aqui merece ser mais bem remunerado, porque isso aqui performa melhor do que a média”. Uma cultura que está sendo construída, eu acho que é um momento importante. Eu não quero transmitir isso a um cenário de um governo. Eu acho que também a gente tem que fazer valer muito papel das pessoas que ocupam posições, digamos, de carreira dentro das próprias secretarias de saúde, dentro dos próprios ministérios. São profissionais valorosos, são pessoas competentes, muitas vezes estão perdidos por conta de uma turbulência política. Eu tenho a melhor das impressões da atual ministra, acho uma pessoa séria com o passado e com o presente muito qualificado. Tenho certeza de que ela está envolvida nas melhores intenções para fazer alguma coisa boa pela saúde do nosso Brasil.
Você comentou sobre o público versus privado. Você acha que está mudando um pouco essa mentalidade a partir dos exemplos?
Claudio Lottenberg – Olha, eu acho que tem aqui talvez uma visão romântica do meu lado, em que eu vou continuar trabalhando por isso. Faço isso há 30 anos, eu sou formado numa escola pública, junto à Escola Paulista de Medicina. Estou dentro do Einstein e criei, com mais algumas pessoas, uma faculdade de medicina. Não obstante, acabei de aceitar participar da associação dos ex-alunos da Escola Paulista de Medicina, do seu conselho. Ou seja, eu acho que esse mundo tem que trabalhar em conjunto. Agora, quando você transfere isso para o contexto da sociedade maior esse é o problema. Porque a polarização está atingindo todos os níveis de discussão e, lamentavelmente, na saúde também. Eu acho que a saúde tem que ter um perfil evolutivo de melhoria e não destrutivo. O secretário que assumiu depois de mim certamente fez melhor, porque eu fiz alguma coisa e quem veio depois dele também vai fazer melhor. E eu acho que existem certas coisas no nosso país que a gente não pode ter essa paixão exagerada, politizada. Eu acho um equívoco, eu acho que a gente tem que construir convergências. Saúde, educação, não importa quem está lá, nós temos que encontrar formas de financiar, de entregar isso com qualidade e saber que isso é inclusão social. São coisas para as quais eu acho que a gente não deveria nem ter discussão no período de eleição. Deveria ser um processo de continuidade, de aprimoramento permanente. Eu tenho muito respeito pelos profissionais, talvez até por escutá-los é que eu consegui fazer coisas tão boas na minha vida. Não é um preparo diferenciado. Eu acho que é uma capacidade de ausculta. A gente aprende com as pessoas e nós temos, dentro das estruturas das secretarias, dos Ministérios – estou reafirmando mais uma vez – gente muito boa. O que falta, no fundo, é a gente criar um ambiente para que essas pessoas possam fazer valer e acontecer sem paixões políticas, sem tanta polarização. Difícil a gente entender o que é esquerda, o que é direita. Esquerda é mais intervencionismo na economia? Pode ser. A direita quer o liberalismo? Eu não acho que a resposta está de um lado nem do outro. Acho que a resposta está dos dois lados. Tem coisas onde o Estado tem que de fato colocar a mão dele. Tem espaços na saúde, por exemplo, onde talvez a iniciativa privada possa fazer até muito mais do que o Estado. E eu acho que é isso que a gente tem que construir.
Se eu passasse essa mensagem para os políticos no conselho, se eu passasse essa mensagem para aqueles que nos assistem, eu já estou satisfeito.
Na sua visão, qual deveria ser o principal foco de atuação na saúde?
Claudio Lottenberg – Eu acho que tem algumas coisas para serem feitas. Podemos falar da assistência. E eu acho que na assistência, o grande investimento é a saúde digital. Não me resta dúvida. Enquanto a gente fica discutindo como é que faz para alocar um médico numa situação distante dos centros, a gente vai obrigar o residente a ir para lá e, quando se obriga, a pessoa às vezes vai até com má vontade. A gente, aliás, tem que se deixar valer até pelos indicadores, o NPS de quem faz telemedicina é superior ao NPS de quem procura atendimento nos prontos-socorros. Essa questão da telemedicina é vital. Redes de acesso, sim, nós temos que construir a infraestrutura para dar suporte para isso. Isso é um grande investimento, não tem muita conversa. E lógico, tem uma colaboração, principalmente na sociedade médica, para entender esse lado.
E além da telemedicina, qual outra pauta?
Claudio Lottenberg – Acho que tem uma pauta muito importante que as pessoas não estão explorando que é o Complexo Industrial da Saúde, que eu acho que é uma coisa, que para nós, se você olhar o Brasil hoje em relação à saúde, ele tem um gasto, um investimento da ordem de 9% do PIB, são mais de 7 milhões de pessoas que trabalham na área de saúde com contratações diretas. Então, esse peso hoje não é percebido pela sociedade como é percebido por exemplo, dentro do setor automobilístico. Numa época em que os carros estão ficando até semidescartáveis. Por isso, muitos acreditam que não vai ter carro em forma de propriedade, ele vai ser alugado. Esse é o espaço de inclusão social, é o espaço de geração de emprego. Nós temos que agilizar, veja, nós temos uma Anvisa que funciona maravilhosamente bem, mas ela não consegue dar resposta no tempo, não porque as pessoas não sejam preparadas, as pessoas são muito preparadas. Estive recentemente visitando a Anvisa, é de dar orgulho que nós tenhamos uma agência da qualidade que nós temos, mas ela tem 1500 profissionais contratados, sendo que 600 podem pedir demissão imediatamente. O FDA tem cerca de 18500 funcionários e, durante a pandemia, eles contrataram mais 3500 para uma população de 315 milhões. E nós temos 215 milhões. Quer dizer, existe uma desproporção óbvia aqui, como é que a gente faz para validar, desde receber um protocolo, analisar esse protocolo, fazer avaliações técnicas, fazer visita a instalações? Tudo isso é importante. Quem faz isso se a gente não tem pessoal? Nós temos o BNDES, um banco de desenvolvimento, não é um banco para fazer empréstimo de dinheiro a juros, não é isso. Não significa que tem que perder, mas tem que ser utilizado para incentivar essa indústria que é vital para o nosso país. Veja a dependência que nós temos de insumos externos. Você acompanhou durante o período da pandemia que nós não podíamos comprar respiradores. Quer dizer, dá para o Brasil abrir mão de ter respiradores, porque não tem pressão do mercado ou porque não pode produzi-los aqui? E eu acho que essa visão um pouco mais estratégica, transversal – e, aliás, tem sido o discurso até do vice-presidente, que acumula as funções de ministro da indústria e comércio – está sendo debatida também, que é uma das coisas que eu quero falar. Se a gente não tiver o BNDES trabalhando, alinhadamente, se não tiver uma Anvisa trabalhando de forma adequada, se não olhar o mercado, SUS, com transferência de tecnologia, que é o princípio das PDPs… nós temos um mundo para trabalhar em cima disso. É uma das missões que temos lá no Conselhão.
O que precisa, na prática, para que o complexo industrial de fato deslanche, que seja um programa de verdade, de estado, e que ele percorra mais do que só a ideia?
Claudio Lottenberg – Primeiro, ter a conscientização que você tem um mercado de 215 milhões de consumidores. Segundo, tem que existir uma política pública que incentive as companhias com segurança jurídica e com agilidade. Quer dizer, não dá para alguém licenciar, colocar e instalar uma fábrica que demora 2 anos para ser aprovada. Por mais que nós tenhamos que fazer os testes de segurança, não é isso, mas é de burocracia pura. Precisa de gente para fazer isso, citei agora as questões da Anvisa. Não dá para você imaginar que você não vai ter financiamento que incentive o crescimento dessas empresas, dessas áreas.
Essa articulação multissetorial é o que estaria faltando para a gente de fato poder ter um ambiente de negócios favorável. Senão, tudo vira judicialização, porque você não consegue aprovar. Então, se alimenta muito mais a indústria jurídica do que a indústria do complexo da saúde.
Estamos vivendo uma nova era tecnológica, com inteligência artificial. Você já refletiu sobre isso? Como que você vê esse mundo com essa inteligência artificial generativa?
Claudio Lottenberg – A inteligência artificial é fruto daquilo que você pergunta. Acho que o primeiro ponto é: quais perguntas queremos respondidas dentro da lógica da inteligência artificial e saúde? Quais são os verdadeiros problemas? Se é no campo da medicina diagnóstica, talvez isso possa ser feito de forma mais automatizada, porque realmente, dentro dessa perspectiva, você junta dados e aí você vai para aquilo que é o mais provável. Dentro do aspecto relacional, o médico não vai ser substituído. E eu acho que é muito importante porque existe um aforismo que diz que as tecnologias elas têm, no fundo, uma tendência. Quando elas surgem, você acha que elas são a resposta para todos os males. De repente, sai uma falha e dizem que não serve para nada. Até que volta para um ponto de equilíbrio. Eu acho que a gente tem que correr rapidamente para o ponto de equilíbrio. Quer dizer, o contato humano, para entender qual é o melhor tipo de tratamento para um determinado câncer, tem que ser debatido com o paciente. Porque de repente eu posso ter uma alternativa que te dá um prognóstico de vida um pouco melhor, mas te dá uma qualidade de vida muito pior, quem vai decidir isso? Então, a personalização, ela não é fruto da inteligência artificial. A personalização depende de um entendimento, de um pacto. Eu acho que a relação médico-paciente é insubstituível.
Por quê?
Claudio Lottenberg – A relação médico-paciente é aquilo que no fundo cria o status da confiança para as coisas que, de fato, são mais importantes. Eu sou médico oftalmologista e continuo atuando, operando e fazendo aquilo que eu faço. Qual é o diferencial que talvez eu possa dar? Talvez a maneira como eu transmita, na forma como eu passo o meu conhecimento, na segurança que eu possa transmitir. Tanto que isso é muito verdade nas questões dos médicos mais seniores. O que eles passam? Às vezes, tecnicamente, eles não são nem tão competentes quanto os mais jovens. Imagina fazer uma cirurgia, um jovenzinho que mexe com estruturas de videogame às vezes faz mais fácil, mas a indicação dele não é tão boa quanto o médico mais sênior. Acho que isso as máquinas não conseguem se apropriar. Acho muito difícil que a gente possa passar capacidade de diálogo e confiança. E a confiança é, no fundo, o que te faz decidir. O paciente confia no médico, ele não vai confiar numa máquina. Não vai confiar numa resposta para algo tão significativo e tão importante como a saúde, ele vai querer o médico decidindo com ele.
Então, todo esse hype, esse temor da inteligência artificial muito provavelmente vai passar por esse platô que você trouxe?
Claudio Lottenberg – Você sabe que no passado eu li um artigo que falava do perfil dos médicos, que no futuro, com os diagnósticos da maneira como estava indo a tecnologia, você vai ter médicos que seriam clínicos gerais, médicos operadores, que fariam cirurgias, e médicos diagnosticadores. Quando o médico precisasse pedir um exame, ele não ia pedir sozinho porque tem tanta tecnologia que ele precisava ter alguém que só entendesse tecnologia. Mas as coisas básicas, eu imaginei que elas seriam básicas. Eu confesso a você que certos exames eu tenho muita dificuldade de entender hoje se eles ainda são válidos ou se existe algo melhor. Então, essa definição desse escopo, essa mecânica decisória, por mais que a inteligência artificial possa avançar, como ela implica algo chamado prognóstico? E a decisão do paciente era soberana e da sua família. Eu acho que isso não será substituído pela relação médico-paciente.
Você sentiu que houve muita mudança dessa relação médico-paciente? Até por parte de que eles chegam mais bem informados, e até do ponto de vista de tecnologia de hoje, por causa dos avanços da ciência, da medicina, você conseguir fazer muito mais por eles do que você podia no passado.
Claudio Lottenberg – Isso não resta dúvida. Porque primeiro que te obrigam a você estar mais atualizado ainda. E por vezes eles chegam para você com questões que você não sabe responder, e aí o espírito da humildade deve perseverar. Você tem que aceitar, discutir e dizer que eventualmente você não sabe, que você vai olhar.
O paciente hoje, ele é muito mais questionador. Ele traz um pano de fundo, de conhecimento. Existem exageros e saem coisas que eventualmente não fazem o menor sentido, mas é um ambiente de relação muito mais exaustivo para eles, pacientes, e para nós, médicos.
E do ponto de vista de novas tecnologias. Mudou muito a sua atuação?
Claudio Lottenberg – No começo da minha carreira as pessoas procuravam meu consultório para trocar de óculos, hoje elas procuram para se livrar de óculos. Então, tem que ter um conhecimento a respeito de laser, cirurgia refrativa, que é enorme. Agora tem um outro detalhe: hoje, a cirurgia de catarata já não é mais uma cirurgia de catarata para devolver a visão. Ela é qualitativa. O paciente quer saber como é que ele vai enxergar depois, porque ele precisa enxergar para perto ou para longe ou porque ele quer ter visão simultânea boa de longe e para perto. E isso depende também de uma interação médico-paciente, porque às vezes você toma uma decisão que pode ser tecnologicamente a mais sofisticada e que não interessa para ele. Hoje, com os medicamentos que você inocula dentro do olho e com injeções intraoculares, você leva pacientes por anos, mantendo a visão. O próprio tratamento do glaucoma, que também é uma causa de cegueira irreversível. Existem drogas mais potentes, cirurgias melhores. Isso tudo trouxe, eu acho que um arsenal para nós, que é bastante diferente daquele que eu tinha quando me formei enquanto médico. E isso acontece em todas as áreas. Quer dizer, raramente você vê um paciente que faz uma cirurgia a céu aberto, é tudo laparoscopia, é tudo robótica. E o próprio contexto, eu vou até voltar um pouco antes. As pessoas diziam “a pessoa foi operada, está na UTI”, era um passo para morrer. Hoje se fala “graças a Deus, já está na UTI, vai ter alta e vai sair”. Isso mostra o contexto da tecnologia e a importância que trouxe do reflexo da atividade na vida das pessoas.
Mudando de assunto, queria entrar no tópico da cannabis. Você hoje é sócio da Zion Medpharma. Como que você enxerga esse mercado?
Claudio Lottenberg – Primeiro, eu acho que colocaram no rótulo do cannabis uma estampa chamada maconha. E aí misturam-se mundos. Hoje de manhã, coincidentemente, estava participando de um debate, eu falei “olha, não vim aqui discutir discriminação de drogas”. Não estou nem dizendo se tem que ser discriminado ou não, mas não é o cenário. Estou discutindo uma coisa que já é muito real, que se chama cannabis medicinal. E aí você tem dentro desse capítulo também o que envolve a própria concentração de THC. Porque baixíssimas concentrações de THC, que estão presentes no cânhamo, elas na realidade proporcionam a criação de toda uma indústria têxtil, que é um mundo enorme. E não é bom isso para o país? Não é bom para criar emprego? Não é bom para o critério de sustentabilidade que a gente está discutindo tanto com as pautas de ESG? Quer dizer, essa é uma questão que a gente tem que tratar também. Agora, o cannabis medicinal você já tem coisas que estão demonstradas, como, particularmente, os casos de epilepsia refratária. O Brasil também veio muito devagar nessa discussão. Tem coisas paradas dentro da mecânica infralegal, tem coisas andando no parlamento. Mas o fato é o seguinte: não fosse a questão do uso recreativo, possivelmente isso seria tratado como qualquer outro medicamento no mercado. Então, se politizou esse tema. A gente viu manifestações que, a meu ver, foram impróprias tanto do governo anterior ou até uma politização do próprio CFM, que acabou se posicionando. Eu acho que esse não é o papel do conselho, sinto muito dizer. O conselho é muito importante na fiscalização, na apuração de uma prática ética, mas não fazendo o papel da Anvisa, porque essa já tinha validado. Acho que a gente está num processo interessante de algo que precisa de muito estudo. Temos que fazer muita coisa no nosso país, temos que discutir a questão da verticalização, porque se você puder cultivar e produzir no Brasil, também é mais barato. Também existe um complexo industrial da saúde para o cannabis. Então, é um mercado fantástico. Eu não estou participando de uma iniciativa empresarial, estou participando de um processo de mudança cultural. Porque eu não acho que o cannabis é a resposta para tudo, mas eu acho que o cannabis tem o seu local e eu acho que isso cabe a nós criar um ambiente favorável para esse cenário.
Nos Estados Unidos, está muito mais desenvolvido do que aqui, não está?
Claudio Lottenberg – Sim. Você tem legislações, mas elas são bastante variáveis em decorrência do estado em que você está.
Que tem a ver com conservadorismo ou não do estado?
Claudio Lottenberg – Eu acho que a gente mistura coisas. Eu não acho que aqui é pauta de direita, nem pauta de esquerda. Isso não é conservador, nem mais liberal. Você já viu o desenvolvimento científico de um remédio? Porque no fundo é um remédio. Imagina uma criança que é epilética – no Brasil acho que tem 2% ou 3% de crianças epiléticas, da população, são milhões de pessoas. Uma porcentagem significativa é refratária. Você quer ter um filho com crise epilética e não poder dar um remédio para ele? Ou ter uma dor crônica e não poder dar para ele um remédio? Isto é um remédio. Então, essa discussão, se não tivesse esse outro lado, provavelmente estaria muito mais avançada. E não avançada na discussão, mas sim na execução. A gente tem que olhar maduramente para isso, não pode deixar para o cenário político. Será que é papel do parlamento fazer uma lei sobre cannabis? Eles fazem para a digital, eles fazem para remédio para glaucoma, eles fazem para antibiótico? Você conhece leis para isso? Acho que nós vamos tratando algo técnico dentro de um viés político, o que é lamentável politizar algo dessa natureza.
E é uma área que tem pesquisa por trás.
Claudio Lottenberg – Sim, mas, veja, tudo o que você faz no desenvolvimento de drogas, medicamentos, você faz avaliações, avaliações pré-clínicas, avaliações clínicas, testes de segurança. Isso é prerrogativa de uma agência que faz dentro do escopo técnico e é lá que tem que ser endereçado. Agora, tudo bem, se por acaso a coisa não anda, vamos discutir também no infralegal, porque eles têm medo da judicialização. Então, quando você tem alguma coisa na área infralegal, você, de certa maneira, traz um certo conforto para, principalmente, quem quer investir. Mas virou uma guerra. Nós tínhamos agora até pouco tempo, uma RDC que permitia que você pudesse importar somente com autorização individual. Você pedia para Anvisa, importava para aquele paciente. Isso encarece, isso não é equidade. Acho que temos que resgatar as origens da nossa saúde: equidade, integralidade, universalidade. Eu acho que está nesse momento.
O que falta para essa pauta andar?
Claudio Lottenberg – Eu acho que tem que tratar de despolitizar. Nós temos hoje aqui, eu tive a oportunidade que você me dá aqui para falar para o público, que a gente tem que tirar isso do escopo político e levar para o escopo técnico. Nós temos uma Anvisa, nós temos profissionais competentes, gente que trabalha por isso, nós temos que achar que isso é uma oportunidade de natureza industrial, isso pode gerar emprego e, acima de tudo, lembrar sempre que isso pode ajudar paciente. Tem gente que esquece que o paciente tem que ser privilegiado. Então, vale a discussão para todo mundo. Uma senhora que falou com lágrimas nos olhos – conto hoje – que ela, quando o filho, abraçava ela durante a noite, ela dormia abraçadinha porque ele tinha tantas crises epiléticas, que não cediam, que ela achava que iria morrer. Então, se era para morrer, que fosse nos braços dela. Nós vamos negar dar cannabis para essa criança se já está documentado que funciona?
Recentemente você passou por um procedimento cirúrgico e fez um alerta nas suas redes da importância de se cuidar. E a gente passou agora por uma pandemia em que as pessoas olharam, de alguma forma, mais para a própria saúde. Você acha que isso ficou como legado da pandemia?
Claudio Lottenberg – Eu acho que ficou parcialmente como legado, o que significa que a gente tem que reforçar, e é o que eu faço.
Vamos de novo resgatar a constituição: saúde, dever do estado, direito do cidadão. Está errado, saúde é dever do cidadão.
O cidadão tem que cuidar da sua saúde, ninguém vai cuidar do cidadão senão ele mesmo. Quando ele está fazendo uso de cigarro, por exemplo, ele tem que saber que ele está fazendo mal para ele, e, de certa maneira, ele não olha para isso, ninguém fala e, pelo contrário, ele responsabiliza o coletivo, até na sustentabilidade. Porque esse sistema de financiamento, tanto no público quanto no privado, ele é afetado pelo indivíduo que não se cuida. O indivíduo é um obeso, ele não toma cuidado em relação a isso, ele tem comorbidades. Quem paga por isso? Então, até que ponto viver em comunidade significa que não tem que pensar naquilo que você está causando perante o outro? Isso é ética Weberiana, aquela que fala do próximo. Então eu tenho que cuidar de mim, sim; por mim e pelo próximo. Essa questão deveria ser o legado da nossa Constituição e da pandemia. Não sei o quanto isso se aprofundou. Quanto a mim, eu não perco uma oportunidade para poder registrar alguma coisa. Fiz questão de ir às redes e contar, primeiro porque é uma questão de transparência com aqueles que dependem de mim, eu digo pacientes, a eles eu devo uma satisfação. Eu sou uma pessoa que se alguém ligar e passar uma mensagem médica, eu respondo, eu cuido, eu devo uma satisfação. Todo médico é um servidor público, ele está à disposição de pessoas que precisas dele. Segundo, porque eu achei que era um bom momento – de alguém que tem uma certa voz na área da saúde – de poder publicitar uma situação e inspirar, estimular as pessoas para que elas façam algo semelhante. Então, foi um momento bom, estou recuperado. E quero dizer que todo mundo tem que se cuidar. E a melhor forma de se cuidar é entender o que acontece, é se interessar pelas questões da saúde. Tanto que acho que educação e saúde caminham tão próximo. Se a gente desse um pouco mais de educação em saúde para os jovens – aliás, está sendo difícil dar a educação como um todo – poderia ter uma sociedade melhor daqui para frente.
Caminhando para o fim da nossa conversa, tem uma coisa que eu sempre faço para os meus entrevistados. Quais são as pautas que você acha que a gente tem que ficar de olho em 2023?
Claudio Lottenberg – Acho que existem coisas mais emergenciais. Uma delas é a questão da vacinação. Eu acho que esse negacionismo que aconteceu com pessoas públicas importantes, de expressão, foi muito ruim. Pessoas com credibilidade, que tem um papel público – ou porque são eleitas para isso ou porque são nomeadas ou porque são admiradas por conta do seu conhecimento – são formadoras de opinião naturalmente. E eu acho que a gente descaracterizou a importância da vacinação. Não estou falando da Covid, estou falando do sarampo, da pólio, que a gente voltou a números muito ruins. Esse resgate tem que ser feito imediatamente. O segundo aspecto eu acho que a gente tem que dar um crédito para governos, independentes de ser esse, e passar a enxergar a saúde dentro de um modelo mais construtivo e pontuar as coisas que são mais fundamentais. Acho que este é o momento da saúde digital. Falei para a ministra [no Conselhão] e a questão da saúde digital, e ela escutou pacientemente cada uma das minhas sugestões. E nós temos oportunidades, a gente tem cabines de autoatendimento médico. Quer dizer, vai dizer que falta médico? Sim, mas tem médico por telemedicina. Então, essa é uma coisa que a gente pode fazer para tirar o Brasil do atraso. Acho que é algo que também a gente deveria estar cobrando. A terceira questão – que eu acho que é uma pauta importante – é acelerar o complexo industrial da saúde, de fato, rediscutir. Quer dizer, a gente tem a mania de falar que o estado está inchado, temos muito funcionário. Tem que parar de generalizar porque tem áreas onde falta. Acabei de falar para você do número de profissionais da Anvisa. Então, se a gente quer incorporação tecnológica, quer acelerar, atrair emprego, gerar riqueza para o país, não dá para ser devagar, precisamos cobrar também esse tipo de coisa, com a integração com os órgãos de fomento. Estimular o ambiente de startups, aceleradores de empresas. Quer dizer, tem coisas aí incríveis para serem feitas.
E quais outras pautas?
Claudio Lottenberg – E, logicamente, existem as pautas do dia a dia, aquelas que a gente sempre cobra: médicos da família, cesta básica de medicamentos. Quer dizer, isso tem que continuar, mas isso não é paradigmático. Isso não vai mudar o modelo por completo, isso é obrigação. Agora, transformação, talvez a gente tenha que cobrar no dia a dia. Chama a atenção da questão da vacina, porque a vacina, infelizmente, a gente voltou lá atrás. Tem que ser um clima de transformação, porque o cidadão, na ponta, já não acredita mais nisso. Porque transportou para o cenário da vacina um cenário de polarização de 50% da população, que de repente acha que existem os vacinados e os não vacinados. Então, eu acho que esses movimentos talvez sejam pautas importantes para reforçar.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.