Christian Dunker, psicanalista: “Saúde mental tem de começar antes de você ter um sintoma qualificado”

Christian Dunker, psicanalista: “Saúde mental tem de começar antes de você ter um sintoma qualificado”

No último episódio do ano de Futuro Talks, o psicanalista Christian Dunker fala sobre os desafios atuais da saúde mental e como equilibrá-la em 2025

By Published On: 30/12/2024
Christian Dunker - Futuro Talks

A busca incessante por resultados e perfeição está cobrando um alto preço da nossa saúde mental. Sentidas ao longo do ano, a autocobrança e as pressões externas, tanto por produtividade quanto nas relações pessoais, se tornam pontos ainda mais sensíveis no fim do ano. No último episódio de 2024 do Futuro Talks, o psicanalista Christian Dunker faz um balanço sobre os desafios atuais da saúde mental, na perspectiva do indivíduo e, também, do coletivo.

Reconhecido no campo da psicanálise, Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP e fala em veículos de comunicação e seu próprio canal do YouTube sobre afetos, emoções, transtornos de saúde mental e autocuidado.

Em sua visão, o panorama da saúde mental atual abrange uma cultura de falta de cuidado de si, que prioriza a medicalização, aliado a um enfraquecimento de formas e políticas coletivas para tratar problemas e condições mentais. Para o psicanalista, o olhar para a saúde mental tem de começar antes da qualificação de sintomas, já na atenção básica à saúde. Além de práticas de autocuidado que vão além da psicoterapia, é preciso fortalecer políticas públicas.

Ao longo do episódio, Dunker abordou temas como as cobranças por produtividade, o aumento de diagnósticos de transtornos mentais e o subfinanciamento de políticas para saúde mental. Ele também analisa quais são as prioridades para a saúde mental no próximo ano.

Confira o episódio completo:

Eu queria começar falando sobre esse nosso olhar para as nossas metas. Toda vez que vira um ano, a gente começa a olhar o que eu não conquistei, o que eu preciso conquistar, mas, ao mesmo tempo, há uma grande dificuldade de reconhecer o que foi positivo. Às vezes, só falar assim, não quero mudar nada. Como fazer essa reflexão de um jeito que não seja um auto julgamento tão difícil com a gente?

Christian Dunker – Acho que um primeiro passo interessante é olhar com uma certa humildade para o período que vai vir, que é um desafio para a saúde mental. São três, é um triatlon. Natal, ano novo e férias, quando acontece essa conjunção. E é um desafio para a saúde mental porque o Natal é uma festa familiar, uma festa que, portanto, retoma os personagens da história de amor e ódio de cada um, retoma os conflitos vividos e revividos ao longo da sua existência desde pequeno, retoma os seus sonhos, os seus presentes, as suas decepções e, mais recentemente, as suas desavenças, inclusive políticas. Então, você entrar desavisado nisso é desleal. Você precisa entender que ali tem um encontro marcado com as pendências do seu passado. A ideia de que a gente pode restaurar… A gente pode recompor, mas isso exige um certo cuidado. Aquela ideia de “vou pro Natal de peito aberto e puxo aquela criança despótica que existe em mim, sento, falo, como e exagero”, é basicamente um convite pra uma ressaca num momento que você vai perder uma boa oportunidade. E aí vem o segundo capítulo, que é a festa ligada ao futuro. O ano novo, em que aí sim as pessoas são convidadas a encerrar um ano e começar outro. A recomendação é: se você quer fazer um balanço da sua vida, faça direito. Para começar pelo fato de que sua vida não é uma empresa. Então, metas e objetivos, se bateu o quarter ou não fez o budget, tira, e se for pra olhar pra sua vida assim, não faça.

“Um bom balanço é aquele que discrimina, mês a mês. É aquele que é capaz de voltar lá atrás e dizer o que eu me prometi, quais são as condições reais que eu tive, que cartas a vida me mandou, onde realmente eu podia ter virado à esquerda e virei à direita. Fazer um balanço que seja justo, que seja realmente transformativo”.

Em geral, as pessoas fazem um arremedo de balanço nessa época, soltam o super-eu sádico e o eu masoquista e deixam soltos na sala até que você se sinta destruído pelos seus próprios ideais. Bom, se você consegue fazer isso já passou, razoavelmente, da segunda fase e aí está em condições de fazer sonhos e não só metas para o ano vindo. E aí você tem o terceiro capítulo, que é assim: você sabe descansar? Você sabe enfrentar aquele vazio de que o seu cotidiano não está gerido por uma lista de tarefas, por um ordenamento de funções? Em geral, as pessoas desaprenderam isso e o que sobra é um pouco aquele ímpeto para tirar o atraso, repleto de excessos e insatisfações, porque “preciso viver nesses dez dias aquilo que eu me privei desnecessariamente, às vezes, lá atrás”. Não é assim que a gente descansa, não é assim que a gente goza, no sentido de gozar nas férias. Então, você tem três desafios, o primeiro desafio amoroso, o Natal, o segundo desafio desejante e o terceiro um desafio para o seu arco de satisfações, como você está lidando com os seus prazeres.

E por que será que a gente não sabe descansar? É um problema do mundo moderno?

Christian Dunker – Para o resto do Brasil, a resposta é: “você não sabe descansar porque você é paulista”. E os paulistas adoram essa narrativa de que eu não tenho tempo, de que eu estou cansado, de que a vida está me moendo de pancadas. Isso representa um certo heroísmo, numa época em que os heróis andam escassos. Cada um inventa uma justificativa para, às vezes, ter maltratado a própria vida e, durante esse tempo, vai se incutindo uma relação de compressão do seu arco de prazeres. Comprime, comprime, comprime. Sexta-feira, descomprime, solta a vaca louca, sábado está destruído, daí mais uma semana de compressão em que você pergunta: mas e aquele esporte que você gosta? Aquele curso de teatro? Aquela terapia? Aquele momento com sua esposa, com seus filhos? Como é que você está encaixando? Quer dizer, qualidade experiencial, vamos dizer assim, distensão do seu arco de prazeres, satisfações e gozos. Vai acontecendo aquilo que o Hegel chamava de “o mestre que não sabe deixar de ser mestre, ele vai se embrutecer”. Ele vai se tornar alguém que é violento, sem saber, consigo mesmo. É alguém que tem aquela relação disciplinar em que eu olho para a minha vida como uma estrutura de empresa ou como uma estrutura de polícia. “É porque preciso emagrecer, é porque preciso ler, é porque minha empregabilidade…”.

“É uma relação de autoavaliação permanente que vai tornando o prazer, que vai tornando esses momentos de descompressão, alívio e satisfação algo que está associado com perda de tempo. Isso não produz. Se não produz, é porque eu estou perdendo. Eu preciso ocupar isso com alguma disciplina, algum imperativo de aperfeiçoamento”.

E, dali a pouco, você está odiando aquilo que você faz e fazia com gosto. Aquela música que você tocava, aquele estudo que você fazia, aquele programa que você apresentava. Se você precisa apresentar todo dia, vai odiar ela.

E como talvez remediar isso ou combater e mudar essa trajetória? São Paulo claramente tem esse perfil que você trouxe, acho que outras pessoas de outras regiões também podem ter, mas pensando que a gente entende que há essa tendência de você viver para o trabalho, de você querer esses resultados, essas recompensas. A solução é terapia?

Christian Dunker – Antes da terapia tem muita coisa para se fazer. Não olhar para os seus filhos, por exemplo, como um problema administrativo. Não olhar para o seu casamento como “o que a gente faz para gerir a engenharia desse espaço?”, que faz parte da resolução de problemas. A vida é composta por resolução de problemas, mas a gente se autoriza pouco a prestar atenção, cultivar aquilo que seria o contrapeso da produção, que não é nem o bem-estar, nem o mal-estar, mas é a capacidade de a gente estar consigo, com o outro, em situações em que você não precisa ir para outro lugar para conseguir alguma coisa, mas pertencer àquela experiência. Você e aquele com quem você está nesse momento. Isso é muito difícil. A gente diz na clínica, no consultório, a gente diz para as mães. “Ah, quando eu estou com o meu filho, eu estou culpado porque eu não estou fazendo o relatório da firma. E quando eu estou fazendo o relatório da firma, eu estou culpado porque eu não estou com os meus filhos”. E isso cria uma destruição geral da qualidade da sua experiência. Bom, qual é o caminho óbvio? Você, quando está com o seu filho, estar com o seu filho. Tem que estar e fazer render ali a melhor experiência que você puder tirar. Tem que se entregar. E quando está fazendo relatório, é o relatório que está contando. Essa capacidade de você se dissociar, no fundo, estava lá nos heróis. O Clark Kent, o super-homem, o Peter Park, o homem aranha, a mulher maravilha.

No momento que você para e resolve viver esse presente, na verdade, a gente às vezes é roubado pelo celular.

Christian Dunker – É baixa qualidade. Quer dizer, você não se expõe aos seus monstros, vozes e pendências. Você se ocupa numa espécie de relação anestésica consigo, especialmente se a relação for de scrolling, de ocupação vazia. Tem outros jeitos de usar o celular que são mais interessantes.

Tipo o que, por exemplo?

Christian Dunker – Tipo aquele último poema do Joyce que fala da morte e os morcegos. “Freddy Malins deu boa-noite para as senhoritas Morkan de um jeito que pareceu meio descuidado em razão de sua voz sempre embargada e aí, vendo que o sr. Browne sorria para ele do aparador, atravessou a sala com passo pouco firme e se pôs a repetir à meia-voz a história que acabara de contar a Gabriel. — Ele não está tão mal assim, não é? — disse tia Kate para Gabriel. As sobrancelhas de Gabriel estavam pesadas, mas ele as ergueu rapidamente e respondeu: — Ah, não, mal se percebe. — Mas me diga se ele não é terrível! — ela disse. — E a coitada da mãe dele fez ele jurar na véspera do Ano Novo. Mas vamos, Gabriel, vamos para a sala de estar. Antes de sair da sala com Gabriel, ela fez um sinal para o sr. Browne fechando o rosto e sacudindo o indicador de um lado para o outro, um aviso. O sr. Browne aquiesceu com a cabeça e, quando ela saiu, disse para Freddy Malins: — Mas, então, Freddy, eu vou te servir um belo de um copo de limonada só para te dar uma sacudida.” É a história dele contando sobre a morte para o neto.

É isso, é você ter essa sensibilidade…

Christian Dunker – De mudar, como a gente fez aqui. Mudou completamente a conversa. A gente está interessado em saber como eles chegaram nisso, o que tem a ver o Malins com a história que ele contou para o neto, que era para o neto dormir, mas o neto acordou e está, enfim, às voltas com os mortos também.

A gente tem dificuldade de sair do script, na vida em geral.

Christian Dunker – Isso, exatamente. A gente tem dificuldade de pegar aquele fio, que está meio de lado e que muitas vezes leva a gente para um encontro inesperado, leva a gente para a contingência transformadora, leva a gente a ver as coisas de uma outra perspectiva ou outro foco. Daí a gente lamenta que não consiga regular mais o olhar, a não ser ver árvores no conjunto e sem ver um fruto em particular. Acho que um retrato muito curioso disso, na nossa época, é o declínio dos encontros sexuais. As pessoas transam menos. Está acontecendo, na escala global. No Brasil também, especialmente na geração Z. No fundo, é como se fosse uma Coca-Cola, que é bom, você pode resolver mais rápido aqui, de outra maneira, e você vai tirando isso da cabeça.

A pornografia vem de uma forma mais fácil.

Christian Dunker – Mais intensa, mais fácil. Dá um trabalho, percebe? Eu tenho, então, que me preparar, pensar nisso, e a preparação mais difícil é essa. É o mental, não é o passar o perfume. E isso é um sintoma que retroalimenta a situação. Se dedica menos a isso, sua vida no trabalho fica mais complicada, seu horizonte fica mais curto, você não consegue perspectivar o futuro, e aí começa a lista de adoecimentos, insatisfações, sofrimento. Se trata muito mal no sofrimento.

Falando sobre esse adoecimento, vamos falar sobre essa crise de saúde mental que a gente está passando. Não estávamos num momento fácil pré-pandemia, mas a gente tem visto que tem piorado pós-pandemia. A gente está mesmo numa crise de saúde mental? O que está acontecendo, na sua opinião?

Christian Dunker – Acho que está acontecendo várias coisas ao mesmo tempo.

“A pandemia, por exemplo, suscitou que aqueles que já tinham uma vulnerabilidade em termos de saúde mental incrementassem essa vulnerabilidade, produzindo mais sintomas. Por outro lado, ela também tornou mais visível o nosso sofrimento psíquico, enclausurados, longe, individualizados, vivendo solidões ou companhias forçadas. Isso tudo levantou uma visibilidade para uma situação que já não era boa”.

E ela já não era boa, eu diria assim porque a gente tem uma espécie de paradigma sobre como enfrentar as questões, como falar do assunto em saúde mental, que ele tem uma datação possível, que é de 1973 para cá. De 1973, a gente já tem três eventos, que em princípio não teriam muita coisa entre si, mas elas são uma constelação formativa do modelo hoje, dominante, hegemônico, em vigor. Em 1973, a gente tem a aplicação, pela primeira vez, do neoliberalismo como política de Estado, no Chile, de Pinochet, e depois nos Estados Unidos, em Reagan, e na Inglaterra, da Thatcher. A gente tem a reforma psiquiátrica americana produzindo um outro modelo diagnóstico. Aí não mais ligado a quais são as causas, tem a ver com a família, tem a ver com o ambiental, a genética, esquece tudo isso. Vamos fazer um tipo de diagnóstico em estrutura ilícita.

É aquele que nasce o DSM.

Christian Dunker – DSM III, que é por convenção. Então, como a gente não sabe direito como uma coisa funciona, vamos fazer diagnóstico de convenção. Em 40 anos, quase 300 novos diagnósticos foram criados assim. Não é muito comum na medicina em geral. E no último DSM de 2013, 73% dos envolvidos na confecção desse grande manual, usado em escala mundial, tinham compromisso com a indústria farmacêutica. Durante esse período, a gente já teve o que o Ethan Watters chama de exportação do modelo de saúde mental americano para o resto do mundo. A gente fala em globalização. A globalização da economia, do consumo, a saúde mental foi globalizada. E junto com isso, a ideia de que os transtornos, — isso é uma ideia que aparece lá em 73, vamos chamar de transtorno, não de doença —, e eles são síndromes, que é a categoria mais simples do ponto de vista de hierarquia diagnóstica, uma espécie de diabetes mental. Você tem um déficit de serotonina, você tem um déficit de dopamina, você tem um déficit de cortisol, testosterona, e isso pode ser então recomposto por uma reequilibração, por uma recaptação. Essa hipótese é falsa. Ano passado saiu um artigo muito interessante dizendo que ela é falsa e a gente sabia que ela é falsa há muito tempo, mas o apelo e os bons neurocientistas, os bons psiquiatras, sempre souberam disso e sempre foram contra essa proliferação de diagnósticos, essa industrialização da saúde mental. A gente tem isso no nosso modo de trabalhar. O nosso modo de trabalhar foi cada vez mais orientado para produção de sofrimento e aumento de desempenho. Então, eu vou te pressionar, eu vou reduzir benefícios dos trabalhistas, eu vou pegar, por exemplo, uma grande empresa jornalística e vou começar a sufoca-la, jogando uma parte contra a outra, criando cultura de ódio, criando cancelamento. Tudo isso que a gente viu depois já estava nesse processo de amassamento das pessoas e avaliacionismo permanente, métricas e resultados. Então, você tem isso no módulo de trabalhar e daí você teve, em sobreposição a isso, linguagem digital, que transforma subjetividades e que pegou todo um conjunto de duas, três gerações indefesas.

“Acho que daqui a 40 anos vai ser óbvio que, poxa, não se dá o celular para uma criança com menos de 18 meses, não se dá o celular com essas facilidades para uma menina de 18 a 24, que vai aumentar o suicídio. Você não faz isso na escola, você não usa o celular desse jeito. É compreensível, novas tecnologias sempre vieram com efeitos deletérios que demoram um tempo para você ajustar, criar marcos regulatórios, criar sistemas jurídicos de controle”.

Bom, então o que você tem? Você tem a expansão do neoliberalismo no trabalho, você tem a entrada em uma nova linguagem que cria suas patologias próprias, porque muda laço social, muda a forma de se relacionar com o outro, de amar, de desejar, etc. E você tem uma mudança muito forte na maneira como a gente se inventa e transmite desejos. Então, padrões familiares, orientação para como é que a gente avalia uma vida. Em gerações para trás, se você foi honesto, se você esteve em paz com os mandamentos, se está tudo certo no cartório, tudo bem. Nós inventamos uma tarefa um pouco mais difícil. Seja feliz.

Seja feliz é muito abstrato.

Christian Dunker – Não é que é abstrato. Os outros também são, ser honesto, os pecados da carne, não é fácil realmente andar na linha. Mas o ‘seja feliz’ é uma individualização do padrão, você tem que escolher. O que é felicidade pra você? Seu pai não está dizendo, faça isso, faça aquilo. Em relação ao quê? Você pode se orientar, você pode dizer, “não, não quero” ou então, “quero sim, quero em termos”. Quando você é exposto a essa tarefa de se autoconstruir permanentemente, isso coloca um novo universo de problemas e de soluções e de emancipações também. Então isso vai valer para a felicidade, isso vai valer para o luto. Perdeu a pessoa. E agora o que eu faço? Vai lá, no enterro. O que você diz?

Sinto muito, normalmente.

Christian Dunker – E depois? “Se precisar de alguma coisa, liga”. Isso do ponto de vista psíquico, você precisa do outro pra contar a história, pôr o corpo em cima da mesa, todo mundo chora junto, daí a gente lembra, daí tem o Natal, a gente fica triste, a pessoa não está lá, a gente fala, a gente conta as histórias, a gente desmonta a casa, a gente guarda alguns, põe outros… Um trabalho para o qual tínhamos uma narrativa, só que era religiosa. Agora, alguns mantém isso, mas uma boa parte precisa se construir para dizer e fazer essa travessia que é o luto. Como uma boa parte tem que se construir para dizer uma resposta razoável. O que é um adulto hoje? A maior parte deles são adultos decentes, são crianças. A ideia de ser adulto saiu de cartaz. Os carecas calvos, como eu, estão associados com aqueles que mandam no mundo. Esses mesmos não se veem como adultos exatamente.

Faz muito sentido isso tudo que você está trazendo, mas eu queria que você me ajudasse a dividir isso mentalmente. Por um lado, houve toda essa transformação do modelo de trabalho, dos novos diagnósticos criados, da digitalização, que de alguma forma nos colocou em uma outra realidade muito mais isolada, mas temos esse aumento dos transtornos. A pergunta é: as pessoas estão mais doentes ou as pessoas estão categorizadas e, na verdade, elas estão normais?

Christian Dunker – Essa é uma pergunta que você faz quando você vê os dados de autismo, por exemplo, nos Estados Unidos, e no Brasil também, você vê os dados de suicídio. Eu diria assim: não é uma pergunta fácil de você realmente ir ali ver e mostrar, mas eu apostaria nas duas coisas.

“Ou seja, você tem efeitos sistêmicos que tornaram a vida social aparentemente mais conflitiva, com menos mediação e com menos recursos naturais em saúde mental que são basicamente seus laços, sua capacidade de fazer redes, de tratar o sofrimento coletivamente, de pertencer a um território, a um projeto, a um sonho mais ou menos coletivo. Então, a gente atacou, ou fez pouco, daquilo que seria o cuidado consigo”.

Durante esses 50, 40 anos, a gente viu no Brasil se estabelecer uma cultura do cuidado com a saúde. Não tem ninguém que não esteja à par. Tira o açúcar, põe o sal, gordura, emagrece, faz exames, segue a coisa, faz academia, cuida. E aí o tomar cuidado com a saúde foi virando também tomar cuidado com a sua aparência. Durante os 50 anos, quem falou assim “você precisa tomar cuidado com a sua saúde psíquica”? O que a gente ouvia era basicamente assim: o que eu posso fazer para uma saúde psíquica? Esportes? Comer bem? E terapia? Terapia é bom, é o meu ganha pão, mas você não pode começar pela terapia e isso é um dos problemas desse modelo. Você só fala em saúde mental quando você tem um diagnóstico. E esse diagnóstico, o que acontece?

“É preciso olhar para o sofrimento das pessoas. Sofrimento coletivo, sofrimento individual, como ele está sendo tratado porque se você nega, se você desfaz, se você acha que isso é coisa para, sei lá, resolver na sua igreja, você vai ter um problema de saúde mental”.

Se você acha que, por exemplo, sofrimento de gênero, sofrimento de raça, sofrimento de orientação sexual, sofrimento de bullying nas escolas, é uma questão para políticas sociais. Se você não trata disso, o que vai acontecer lá? “Puxa vida! Aumenta a depressão em negros”. Por que será? “Aumenta a depressão em mulheres”. Parece ridículo. E pior, a gente sabe disso. Os big data, as grandes companhias tecnológicas, elas têm os dados. Elas sabem o que faz mal. “Bom, a gente não divulga”. Por quê? Porque não tem uma cultura de cuidado da alma. Antes do terapeuta, antes tem que olhar para certos estados, e isso aqui precisa de intervenção para que eu não precise de um terapeuta, para que eu não precise de um diagnóstico. Veja, a população está totalmente desguarnecida. A hora que você fala qual o seu recurso em saúde mental, a pessoa vai dizer, “eu tenho convênio”. Não! Você tem sua família, você tem sua relação consigo. E aí vamos voltar para práticas, olha para os seus sonhos, pensa nos seus medos, dá forma às suas fantasias, cuida dos seus prazeres. Tudo isso é prática de cuidado consigo no campo da saúde mental. Conheça seus sintomas, dá uma namorada naquilo de “onde é que começa a sua loucura? Onde é que está o ponto vulnerável?” Cada um tem que conhecer. E isso escutando o outro, falando, dividindo sua vulnerabilidade, isso faz parte da sua vida psíquica. “Eu sou normal, eu não preciso nada disso, porque eu sou um herói, uma cabeça que anda”. Vai dar ruim.

Vai dar ruim é questão de tempo.

Christian Dunker – Daí você me pergunta, eu não te respondi. Tem um aumento de diagnósticos e tem um aumento de fatores sistêmicos, talvez piorando a situação, aumentando, de fato, do ponto de vista etiológico, do ponto de vista causal, a situação que a gente tem. O aumento de diagnósticos também tem uma relação com o esticamento das categorias. Fiz uma tese sobre psicose na criança há 20 anos. Essa categoria não existe mais. Por quê? Porque a gente pegou várias formas de sofrer presentes na criança e criamos um super megabloco chamado autismo, nível 1, 2, 3. E depois tem aquelas que tem o fenótipo. Isso beira uma indecência epistemológica. Se você olha a história da medicina, isso não está à altura do que a gente faz em outras áreas. São categorias que a pessoa faz um teste de internet e diz assim, “sou depressivo. Ah, não, TDAH”. Um diagnóstico de TDAH para valer, custa caro pra caramba, demora tempo pra caramba, e é mais fácil você dizer, “não, mas eu me sinto TDAH”. A gente faz parte de um grupo legal de pertencimento. Olha como se entende um pouco esse processo, porque a saúde mental virou também um lugar onde as pessoas encontram reconhecimento do seu sofrimento enquanto identidade.

Espaço para a vulnerabilidade. Sem tanto julgamento.

Christian Dunker – Espaço para ser reconhecido. Olha, isso que é o meu jeito de sofrer, que tem as limitações, que é mais ou menos assim e tal, o outro concede que sim. O outro diz, “olha, eu estou escutando você”. Vamos fazer alguma coisa para irmos junto. Porque, até então, o diagnóstico era, como a gente comentou, um anátema, um estigma, ou até um diagnóstico que esconde. Minha mãe me educou bem.

“O diagnóstico era um sinal de fracasso da sua família, da sua escola, da sua religião. Hoje ele é sinal de que você tem o seu sofrimento reconhecido e isso cria um fenômeno”.

Tem um caso muito interessante, que é o caso da anorexia em Hong Kong. Hong Kong era um lugar que não tinha casos de anorexia, até a princesa dar a sua famosa entrevista em 87, dizendo, “eu sou uma princesa linda, todo mundo me adora, só que eu tenho problemas. Eu tenho anorexia”. Três anos depois, tem uma crise de anorexia em Hong Kong. Por quê? Porque as pessoas viram, se reconheceram na princesa e disseram, “eu tenho esse negócio”. Eu também. Me too. Antes de ser uma alavanca para denúncia, para a crítica da iniquidade entre gêneros, era um processo de disseminação de formas de sofrer preferenciais. Isso a gente vê ao longo da história. Crises de 50 em 50 anos, que dão destaque para um jeito de sofrer, que as pessoas dizem “eu também”, mas a hora que chega num nível, por exemplo, depressão, todo mundo tem depressão, aí o teu potencial de conhecimento cai e a depressão fica menos visível e aparece outra.

Hoje o que a gente tem visto, pelo menos nas redes sociais, você vê muita gente falando que teve o diagnóstico de algum tipo de grau de autismo ou TDAH, que são as que estão talvez mais populares. E você fala sobre essa questão do reconhecimento, do pertencimento ao grupo. A pergunta é: até que ponto isso é negativo para as pessoas que estão se sentindo dessa forma?

Christian Dunker – O que você faz com isso aqui que eu tenho? “Ah, não, sou eu. Eu sou isso. Essa é a minha personalidade, o meu jeito”. Esse é um efeito muito importante e que não pode ser ignorado. A ideia de que você não precisa se envergonhar, não precisa se culpar daquele sofrimento que é seu. Isso não é uma inadaptação moral ou médica. Ou seja, essa experiência pela qual você está passando, outros passaram antes de você e outros vão passar depois de você. Você se sente pertencendo a uma forma de vida que vale a pena e que pode ser reconhecida. Muito importante. O que a gente considera nocivo a partir disso? Muitos diagnósticos são feitos para que a pessoa não faça nada a mais além disso. Isso é um pouco estranho, se a gente pensa assim, “olha, tem uma notícia meio chata, você tem diabetes”, “ufa, agora eu entendi que a noite tava difícil pra dormir, tava suando, legal”. Não vou tomar, não vou fazer nada, porque agora eu já tive esse alívio. Isso é um uso meio errático do diagnóstico, meio assim, para que ele serve?

“A gente vai ter também a partir disso uma onda de diagnósticos, pessoas na internet, em torno de uma medicação, valorizando, e daí você olha para o outro lado. Quantos desses diagnósticos foram feitos por um psiquiatra? Menos de 20%. A maior parte desses diagnósticos foram feitos por dermatologistas, cardiologistas. Quando não, por procuração que eu vi na internet e fiz o teste. Ou seja, você tem uma inflação de diagnósticos que são espúrios”.

Que são, vamos dizer assim, não técnicos. Quer dizer, você está criando um ponto de redução do sentimento de inadaptação. Isso é muito importante. Isso precisa ser enfrentado como problema geral de saúde mental. Não tem ninguém que esteja confortável consigo mais. Por quê? Porque você está devendo. Por que você está devendo? Porque você não bateu a meta. Porque a sua empregabilidade não está ok. Por quê? Porque podia ser melhor. Porque a medicina passou durante esses 40, 50 anos por um processo de mutação de paradigma. Medicina anterior estava baseada assim: você tem um problema e a gente vai ajudar você a voltar para o estado anterior ao seu problema. Você vai readaptar, você vai voltar para uma posição anterior de saúde. Saúde, doença, volta para saúde. Nesses últimos 50 anos, especialmente a partir da cirurgia plástica e de outras áreas, surgiu a medicina de enhanced. Por que eu tenho que voltar para aquela posição, se aquela posição me dava 6 na prova de álgebra? Se eu tomo Ritalina, eu tiro 8. Você não quer a melhor versão de si? E esse nariz, se você está lá no Irã, vamos dar uma retocada nele, porque ele ainda não é o nariz perfeito. E esses quilinhos a mais, vamos fazer um Ozempic aqui, isso a gente resolve. E está meio aéreo, será que é porque você está trabalhando 18 horas por dia? Não tem problema, tomam Venvanse. E aí, a gente cruzou uma barreira em que, sinceramente, onde é que termina a medicação, onde começa o doping? E fora que junto com isso vem o doping oficial, o doping na paralela, álcool e café e o doping com substâncias criminalizadas. E aí a gente já tem hoje um estado de medicalização geral.

E isso está acontecendo. As pessoas normalizaram o uso desses medicamentos para serem melhores?

Christian Dunker – Para serem melhores. Quem é que não quer ser melhor? Donna Haraway tem uma teórica inglesa que já antecipou isso lá nos anos 70, dizendo que nossa mentalidade vai fazer que a gente pense que somos ciborgues. Ciborgues são pessoas com próteses, órteses, com sistemas operacionais que melhoram o que a gente é. Óculos, que vai prometer isso. Realidades virtuais. Realidades, vamos dizer assim, aumentadas. Isso de fato aconteceu. Implantes cerebrais talvez seja uma próxima fronteira aí. Não vamos julgar a tecnologia e dizer que é péssimo. Eu prefiro as cavernas. Não é esse o ponto, é que toda tecnologia tem que vir com mediação. E quem vai fazer a mediação? É o que a gente vê na internet hoje, com as questões de geração ansiosa, Bauman, etc. Quem vai fazer a mediação disso? No Brasil, acabamos com as classes especiais, agora nós fazemos inclusão. Quem fez a mediação da inclusão? Ele disse, “olha professor, aqui você tem um autismo nível 2, lá é uma depressão, aqui você tem um aluno com deficiência sensorial”. Zero! Entrega aos leões! E nas universidades, cotas, põe todo mundo junto. Quem fez a mediação de que, olha, isso aqui são mundos diferentes, infelizmente distantes. Superlegal cota, aprovem mais cota, mas cota sem permanência, cota sem mediação, vai dar o quê? Vai aumentar o sofrimento.

“Essa nossa crença, vamos dizer assim, na tecnologia sem mediação faz a gente fazer a discussão errada. Se é a favor ou contra o celular? Não vamos fazer isso. Cadê a mediação para o uso?”

Como que a gente sai dessa situação em que a gente normalizou querer ser melhor, pertencer e não querer passar por nenhum desconforto? Isso mediado pela tecnologia e por todos esses medicamentos, drogas lícitas e ilícitas permeando esse contexto. O que a gente faz se essa é a realidade atual?

Christian Dunker – Nós, no laboratório de teoria social, filosofia e psicanálise da USP, temos algumas propostas. Em primeiro lugar, saúde mental tem que começar pelo sofrimento e não pelo sintoma. E faça-se uma política para localizar, qualificar, determinar onde é que tem grupos de risco, pessoas em sofrimento de risco. Sofrimento não é uma categoria clínica diagnóstica, ela é pré-diagnóstica.

Existe uma categoria, um score de sofrimento, como tem da dor?

Christian Dunker – Não, a categoria de sofrimento é mal definida, porque ela é não clínica. Sintoma, sim. Sinal, sim. Síndrome, sim. Disorder, sim. Ou transtorno, sim.

“Veja, a saúde mental tem que começar antes de você ter um sintoma qualificado. Isso significa que a saúde mental tem que começar no nível da atenção primária, no nível da prevenção. A saúde mental tem que seguir os princípios do SUS. São três: tem que ser no território, tem que ser em rede e tem que envolver cuidado”.

“Ah, então, já falou aqui que a solução passa por cuidar de si”. Como é que você está cuidando das suas condições psíquicas? Bom, para isso você precisa ter algum léxico, você precisa ter algum vocabulário, você precisa ter alguma forma de prática de cuidado com si. Quais são elas? Posso dar uma lista aqui. Alguma tem que ser feita. Mas e na escola? E na sua empresa? A gente precisa de espaços de escuta, a gente precisa da Brigada de Saúde Mental, a gente precisa de esclarecimento. Dizer, olha, isso aqui, liga a lanterna amarela. isso aqui, isso aqui. A gente sabe, pode ser um bom caminho. Vai resolver? Não vai resolver. E a loucura veio no chassi da nossa montagem, não vamos eliminar isso porque aí sim nós vamos criar inumanos. Mas, essas medidas são óbvias. Saúde mental é direito de todos, mas é dever também. Aí você diz assim: mas é dever? Mas eu não estudei nada para isso. Eu não entendo nada. Você entende, sim. Se eu te perguntar, você entende do transtorno desafiador ou opositor? Talvez você diga não. Mas se você já viu uma criança, você deve entender alguma coisa sobre birra. Birra é uma forma de sofrimento e a gente tem que enfrentar. Pode ser que não consiga, mas aquilo te diz respeito e aquilo é o quê? Manejo de conflito. Os conflitos são importantes, não deixe as pessoas se esquivarem de conflitos, não crie culturas, vamos dizer assim, evitativas em relação ao conflito. Erro básico.

“Saúde mental ou ela vira moral ou ela vira médica. Ou você tem um problema no seu cérebro e daí tudo bem, é uma doença, tudo tático, e a gente acha que deve ser tratado como uma doença, só que não são doenças. Isso precisa ficar bem claro. Por isso chama disorder e não disease”.

Não é doença. É um transtorno. É uma coisa que merece toda atenção. Igualzinho a uma doença, mas não é. E também não é, como as pessoas vão dizer, se não é doença, é moral. Falta de pensamento positivo, falta de fé, você não está se educando bem, você precisa se organizar, se controlar, bobagem. Essas duas margens são maneiras de você negar que existe uma coisa entre as duas que o Sartre chama da sua vida psíquica. Sua vida psíquica tem de ver com como você se relaciona com o outro, como você fala com o outro, como você se interpreta, como você se compreende, como você lida com conflitos, como você lida com sua vulnerabilidade. Enfim, é uma série de coisas que todo mundo sabe e que todo mundo faz de algum jeito. O que acontece com esse paradigma hoje em vigor? Ele demite as pessoas. Ele diz assim: você não estudou para saúde mental? Então, deixa comigo. Você não sabe nada. Manda, encaminha para o psicólogo. E daí eu vou concordar com o pesquisador indiano. Experimento mental que precisaria ser informado a todo mundo. Pega todos os especialistas em saúde mental, junta na Inglaterra. Não vai atender metade da demanda daquele país. Não vai ser o tio Cris que vai resolver isso aí. Pode abrir mais faculdades de medicina, de psicologia. Não vai ser uma questão resolvida pelos especialistas. Você põe na ponta do lápis. Não dá, entendeu? Não dá para atender as pessoas que estão à volta com isso. Então, o que a gente vai precisar? Formação básica em saúde mental para todas as pessoas que cuidam de pessoas. Enfermeira, professor, counseling, educador, jornalistas, todo mundo tem que estar ali. Bom, se é direito de todos, é dever de todos também. Cuidar e “opa”, estou vendo ali uma coisa. Por que se você perde o seu cônjuge você tem, no caso dos homens, ainda menos tempo de vida? Porque a gente se cuida juntos. E as mulheres, nesse ponto, estão muito à frente dos tigrões aqui.

Mulheres cuidam mais, né?

Christian Dunker – E sabe cuidar, e transmite. Agora, vamos lá, vamos aproveitar isso que, infelizmente, ficou assim mais acumulado como tarefa, às vezes, das mulheres, mas agora tem que vir todo mundo.

Você tem uma visão mais positiva ou mais negativa dos caminhos que a gente está indo para a saúde mental, do jeito que está?

Christian Dunker – Eu costumo dizer que sou um otimista sem esperança. Eu vejo com bons olhos que a questão da saúde mental se tornou mais visível. Um país com as dificuldades que a gente tem apresenta uma taxa de 5% da população fazendo psicoterapia, o que é muito. O que significa que a psicoterapia saiu da elite. Nossa elite é 1%. 5% é muita gente. Isso significa, ok, legal, a gente está chegando. 16% a 19% dão a medicação. Quantos fazem isso de forma correta e acompanhada? Menos de 5%. Então, nós estamos num momento muito interessante, porque a gente sacou que o modelo antigo não funciona bem e a gente não tem um claro de como é que vai fazer. A começar por um probleminha que quem faz economia tem trazido para a gente, e que diz o seguinte: o problema da saúde mental é que ela é excepcionalmente cara porque é o tratamento é crônico, porque é longo. Quanto tempo você demora para trabalhar esses sintomas? Demorar um tanto para sair ou controlar. Às vezes não vai dar jeito.

Às vezes é eterno, né?

Christian Dunker – É, exatamente. Então, o que a gente tem? As patentes, que eram Fluoxetina, Paroxetina, que era a nossa esperança maior lá nos anos 80, venceram. E novas medicações que a gente achava que vinha, não vinham. E essas medicações que hoje estão em uso, elas curam menos de 20 a 30% do que curavam lá atrás. Fenômeno estranho, não sabe dizer o porquê a mesma coisa cura menos. Será que é como o antibiótico? Não sei, não tenho ideia, mas isso é a boca do caixa, a pesquisa. Então, a gente tem um problema mundial que é desinvestimento em saúde mental. Isso não é só Brasil. E o terrível no Brasil é que, como a gente entrou tarde na parada, a nossa reforma psiquiátrica vem em 2001, com o Paulo Delgado, na esteira do SUS. O SUS foi subfinanciado e a saúde mental foi sub-subfinanciada. Então a gente critica, o plano nem foi posto, nem construíram os CAPS, os equipamentos substitutivos. Foi um plano que ficou assim, um queijo suíço. Hoje faltam profissionais em quase todos os CAPS e você tem uma hiper medicalização, porque o profissional que vai trabalhar com escuta, ele é mais caro. Então, você tem um dado muito curioso no Brasil, que 70% da população diz que a saúde mental é subfinanciada. Então, vamos lá, Estado, vamos pôr mais dinheiro. Daí os mesmos 70% e 80% dizem, “não, isso é assunto privado”. Tipo, eu educo os meus filhos e lá em casa é a família que manda. Problema que você soma com o que você vai fazer com os recursos que você tem que já são baixos? Bom, vão investir em alta complexidade. Esquizofrenia, psicoses, transtornos gravíssimos, né?

Que precisam de internação.

Christian Dunker – Que são um problema pra comunidade, às vezes um risco pra família. Muito complicado. E as de média complexidade? Depressões, ansiedade. Quem vai ficar? Planos de saúde não cobrem direito. Faz esse remendo, te dou 10 sessões, 20 sessões, aí fica a briga, paga muito pouco. Resultado, você tem uma…

Exceto pra TEA, que agora tá liberado.

Christian Dunker – Mas eu acho que a batalha jurídica não acabou, o outro lado vai responder e, de fato, você pensa em valores de 30 mil, 20 mil por mês para tratar uma criança desse jeito que a Associação Internacional da Psiquiatria retirou a recomendação do ABA para autismo e que a gente insere as restrições justamente a modelos de empreitamento da saúde mental.

Você trouxe pra mim também um contexto muito importante de saúde pública e desse olhar mais estrutural da saúde mental, mas queria que você olhasse aqui pra 2025. O que você sente que é prioritário quando a gente olha pra saúde mental? A gente está indo para um caminho de restringir, por exemplo, com a Austrália proibindo recentemente a rede social para adolescentes com menos de 16 anos. O caminho vai ser mais restritivo?

Christian Dunker – Vamos falar de 25. Não é que essa é a política mais legal para sempre, mas nós estamos num momento em que faltam marcos regulatórios. Isso acho que precisa ser melhor encaminhado do ponto de vista de financiamento, do ponto de vista de base jurídica, do ponto de vista pedagógico. Cadê as boas práticas? Eu quero saber qual é o bom uso de rede social para essa idade. Qual é a rede social? Bom, eu fiz parte lá do GT de discurso de ódio, do Ministério dos Direitos Humanos. Não pode anonimato. Não pode você deixar uma pessoa com 14 anos, 16 anos entrar numa rede social, pôr um nome falso e agredir todo mundo. Não pode, não é que faz mal para aquele que está sendo agredido, faz mal para aquele sujeito que começa a instilar uma situação de inconsequência discursiva. Eu falo qualquer coisa e ninguém me pega.

É isso, é o submundo da internet.

Christian Dunker – Não é o submundo, é o mundo. Isso não vai ser eliminado, isso vai continuar, faz parte da espécie humana, mas facilmente pode levar um pouquinho mais a sério o anonimato na internet. Inclusive para uso político. Quer fazer denúncia política? Então faz a denúncia política, mas anonimato para ofender os outros, não pode. Falta. É tipo assim: telas, vamos diminuir nas escolas, tem que diminuir. E várias coisas que a gente falou aqui tem que ter mediação, tem que ter políticas públicas mais claras, tem que ter, por exemplo, no caso da saúde mental, acho que um acordo mais bem estabelecido com a saúde suplementar. É uma pouca vergonha, porque um empurra para o outro, o outro empurra para um, e quem paga a conta é aquele cara que está sofrendo. Precisa de políticas mais claras sobre o que essa empresa oferece em termos de entendimento sobre saúde mental. Está cheio de compliance e saúde mental? O que se faz? Você tem um plano de saúde e aí o cara vai lá para a classe especial dele? Não, e aqui dentro tem que mudar esse registro, esse regime, essa forma de tratar seus funcionários, assédio moral, assédio sexual. Não pode, racismo não pode. Isso é problema de saúde mental. O uso de substância. De novo, você vai dizer, eu sou favor da descriminalização, mas sem mediação não. Sem mediação vai terminar muito mal. Então, campanhas, exemplos, boas práticas, tudo isso está aí por fazer. Inclusive, usando agora o que a gente tem, que são os tratamentos online. Eles revolucionaram a psicoterapia. As pessoas que moravam em lugares que não tinham acesso de jeito nenhum. Altamira, Amazônia, você atende a pessoa. E funciona, e vai bem. O que não funciona é outra coisa que precisa ter um jeito, é a desregulação das práticas. Eu faço psicanálise e você vai emagrecer 30%. Eu faço psicanálise e você vai adquirir asas. Tem que ter alguma regulação, que seja pelas instituições, instituições formativas, para quem você apela a hora que você tem barbárie.

Isso vai me levar para a última pergunta. Por que a gente é tão vulnerável a essas fórmulas mágicas?

Christian Dunker – É o que a gente quer ouvir, que tem uma solução fácil para um problema cabeludo que você não sabe nem do que ele é feito. Chega alguém e fala, vem aqui que eu vou, vem com papi.

A internet ajudou?

Christian Dunker – A internet ajuda muito. Não só a internet, mas o nosso despreparo com a internet, os golpes. Isso está acontecendo de forma genérica. Por que não aconteceria em saúde mental? Também vai acontecer. O coach, que é uma prática que nasce falando do sofrimento nas empresas, nas corporações. O que está acontecendo hoje nas corporações é ridículo. Os bons nomes não querem isso. Trabalhar no escritório da advocacia virando noites seguidas pra conseguir o seu primeiro milhão com 40 anos. As pessoas não querem isso. Tem uma resistência da matéria e a gente precisaria ouvir isso. 2025 pode ser bem melhor se a gente fizesse o básico. Não precisa de receitas faraônicas.

Obrigada por dividir essas reflexões. Já refaço aqui o convite para um próximo, para a gente continuar essas conversas. E que você tenha um 2025 muito bom.

Christian Dunker – Que tenhamos todos nós. Eu acho que tem aí uma janela de oportunidades para a gente juntar vários problemas e novas soluções.

Natalia Cuminale

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, com as reportagens, na newsletter, com uma curadoria semanal, e nas nossas redes sociais, com conteúdos no YouTube.

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