Pesquisas com células NK avançam no Brasil e podem ampliar acesso a terapias celulares
Pesquisas com células NK avançam no Brasil e podem ampliar acesso a terapias celulares
Einstein recebeu autorização da Anvisa para pesquisa com um grupo de pacientes e estudo deve começar entre setembro e outubro
A ciência tem se debruçado cada vez mais em descobrir novos mecanismos de ação para o manejo de diversas condições e, neste sentido, as terapias celulares têm despontado pelo potencial de mudar o curso de algumas doenças. Uma das modalidades que ganhou destaque recente é a Car-T Cell, que consiste na retirada de células do sistema imunológico – os linfócitos T – para serem reprogramadas em laboratório para atacar as células cancerígenas e depois inseridas novamente no corpo do indivíduo. Mas há outras pesquisas em andamento com conceitos similares e capazes de ampliar ainda mais essas fronteiras, como a utilização de células NK (natural killer ou exterminadoras naturais, em tradução livre).
As células NK fazem parte do sistema imune e têm a função de reconhecer células estranhas ao organismo, como vírus, bactérias que causam infecções; ou algum tipo de alteração que possa levar ao surgimento de um tumor. Elas participam ativamente do mecanismo de vigilância imunológica e do ataque a essas ameaças, como explica Breno Gusmão, onco-hematologista do Comitê Médico da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (ABRALE).
O uso de células NK no tratamento de neoplasias tem se consolidado em alguns países, principalmente para doenças hematológicas e em pacientes refratários ou recidivados – ou seja, que já passaram por linhas de tratamentos anteriores, mas a doença não respondeu bem ou retornou mesmo assim. E já há estudos, ainda que em estágios iniciais, que exploram a possibilidade da terapia no combate a tumores sólidos, como publicado em artigo na revista Cell Death Discovery, da Nature.
No Brasil, as pesquisas começam a avançar nessa área e tiveram um marco importante, com a aprovação em julho, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de um estudo de fase 1, com humanos, que utilizará células NK para pacientes com leucemia mieloide aguda (LMA) refratários e recidivados e síndrome mielodisplásica (SMD) de alto risco, após quimioterapia. O objetivo é realizar o procedimento em até 10 indivíduos para avaliar dosagem, segurança, eficácia e potencial de cura destes pacientes – os participantes terão acompanhamento clínico e laboratorial durante a pesquisa.
O projeto é liderado pelo Hospital Israelita Albert Einstein e faz parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS).
“Esse estudo faz parte de um elenco de terapias que estamos trabalhando, que são terapias celulares de uma forma geral na área de hematologia”, afirma Nelson Hamerschlak, hematologista e coordenador do Programa de Hematologia e Transplantes de Medula Óssea do Einstein. “Já temos um projeto em andamento sobre o uso de Car-T Cell para linfomas e leucemias linfoides e outro de terapia celular contra o citomegalovírus, em pacientes que fazem transplantes e são refratários ao tratamento convencional. Agora, essa nova pesquisa se junta a esse escopo.”
Atualmente, os pesquisadores estão na fase de recrutar os participantes e a expectativa é de que os primeiros pacientes comecem a receber o tratamento entre o fim de setembro e começo de outubro, como aponta Lucila Kerbauy, hematologista e coordenadora de terapia celular avançada do Einstein. “Tivemos a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) no fim de agosto. O estudo já está aberto e estamos recebendo alguns interessados em participar” diz ela, que lembra que a primeira fase do estudo serve para avaliar a segurança do tratamento.
Potencial das células NK para pacientes com LMA
A LMA é um tipo de câncer que tem origem na medula óssea, onde são produzidas as células sanguíneas. A condição faz com que a medula comece a produzir células sanguíneas anormais, que não amadurecem corretamente e se multiplicam rapidamente, tomando o lugar das células saudáveis. A doença é considerada agressiva e exige uma resposta rápida.
De acordo com Hamerschlak, a ideia do tratamento consiste em coletar células NK de cordão umbilical e expandi-las em cultura no laboratório, o que facilitaria a ativação da função desejada, e então realizar a infusão nos pacientes. “Isso é fundamental, porque normalmente elas são encontradas em pouca quantidade no sangue. Depois de expandidas, as células serão injetadas em pacientes portadores de Leucemia Mieloide Aguda e a ideia é que elas exerçam a função imunológica original no paciente adoecido.”
O potencial do estudo é também uma resposta aos resultados de outras terapias celulares na abordagem da LMA. “Até agora não foram relatados bons resultados do Car-T Cell em LMA, como em outras doenças como linfoma, mieloma e leucemia linfoblástica aguda (LLA)”, relata Gusmão, da Abrale. “Iniciativas como esta são superimportantes para o avanço do tratamento de uma doença grave como a LMA.”
A escolha de pacientes com LMA se deu por alguns fatores, como a limitação de linhas de tratamentos para pacientes refratários ou recidivados, conta Kerbauy. “Hoje, não há muitas possibilidades dentro do SUS para pacientes com LMA que já tenham recebido pelo menos duas linhas de tratamento. O estudo é interessante também trazer uma nova alternativa para pacientes que não teriam acesso a outros recursos.”
Para esse estudo, estão sendo selecionados pacientes com 18 anos ou mais, que foram diagnosticadas com LMA e que já tenham passado por pelo menos duas linhas de tratamento, após os quais a doença retornou ou nunca foi curada. “A nova abordagem é não só uma tentativa de cura como também de uma melhor resposta clínica para que esse paciente possa tentar um novo tratamento”, explica Kerbauy.
Pioneirismo pode transformar acesso à terapia
O pioneirismo da pesquisa, entretanto, está na fonte das células utilizadas. Um dos principais desafios das terapias celulares é a escalabilidade e o acesso, já que costumam ser procedimentos de alto custo e que exigem centros altamente capacitados. A ideia dos pesquisadores para uma resposta a estes desafios é utilizar células NK de Centros de Processamento Celular (CPCs) – antes chamados de Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário –, que são bancos públicos de cordões umbilicais.
O Brasil conta com 15 CPCs públicos, de acordo com o último levantamento publicado pela Anvisa. Segundo Kerbauy, o estoque de células de cordão umbilical é grande, especialmente porque o transplante de medula óssea – principal uso desse tipo de material até então – evoluiu a passos largos nos últimos anos.
“Temos mais de 1 milhão de bolsas de células de cordão umbilical estocadas no mundo todo. Inclusive aqui no Brasil temos bancos públicos com estoques que hoje estão sendo muito pouco utilizados para transplantes de medula óssea. Isso facilita o uso para esse outro objetivo, já que as células já estão disponíveis e você dispensa a necessidade de um doador saudável. É uma forma diferente de fazer pesquisa de qualidade”, conta a coordenadora.
Gusmão complementa: “O uso de células alogênicas [que vem de um doador, não do paciente] possibilita também a fabricação em escala, o que diminui o custo e contribui para o acesso à terapia.”
A pesquisa é também um passo em direção ao desenvolvimento da ciência nacional, com a capacitação de centros que possam produzir terapias celulares em território brasileiro, destaca Hamerschlak. “Quando vindas de fora, os custos são impeditivos. Então, a ideia é desenvolver a tecnologia aqui mesmo para utilizarmos não só nos pacientes privados como, principalmente, nos pacientes e no serviço público.”
Desafios para viabilizar mais iniciativas
Para os especialistas, o projeto mostra que é possível fazer ciência de ponta no Brasil, mas é preciso investimento para capacitação e estruturação de novos centros pelo país. “Mesmo sendo líder desse segmento na América Latina, o Brasil ainda precisa de mais apoio e investimento para que a nossa pesquisa clínica avance no cenário internacional, assim como para tornar possível que as novas terapias estejam ao alcance dos nossos pacientes”, aponta Gusmão.
Hamerschlak vê o cenário nacional com otimismo e compartilha que há outra iniciativa com o uso de células NK em fase de avaliação regulatória. O novo projeto teria como objetivo não o uso terapêutico, mas preventivo, e foca naqueles pacientes com casos mais agressivos de leucemia e que precisam estar fortalecidos para passar por um transplante.
Ele lembra ainda que há outras pesquisas importantes que foram ou estão sendo feitas, como é o caso da liderada pela hematologista Lucia Silla, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que foi pioneira no Brasil nos estudos dessa terapia – mas utilizando células de doadores e não com cordão umbilical.
“Estamos aprendendo e ultrapassando as dificuldades, inclusive com a ajuda das agências regulatórias. Os órgãos também estão se acostumando a trabalhar além da indústria farmacêutica, com centros de pesquisas e hospitais. Já tivemos um aprendizado muito grande e estamos adquirindo experiência que tem nos possibilitado acelerar muitos projetos”, conclui Hamerschlak.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.