A experiência de uma médica brasileira no sistema de saúde público da Noruega

A experiência de uma médica brasileira no sistema de saúde público da Noruega

Fazer a gestão de sistemas públicos de saúde para que

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By Published On: 08/03/2023
Corredor do Ullevål Hospital, em Oslo, na Noruega

Corredor do Ullevål Hospital, em Oslo, na Noruega. Crédito: Caroline Kanaan

Fazer a gestão de sistemas públicos de saúde para que cumpram, com excelência, sua missão de oferecer acesso ao cuidado de forma integral, universal e gratuita – como é o objetivo do Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil –, é um desafio em todas as partes do mundo. Mas alguns países se destacam nesse quesito, como é o caso da Noruega.

De acordo com o European Observatory on Health Systems and Policies, observatório de saúde pública comandado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e especializado no desenvolvimento de sistemas de saúde na Europa, a cobertura de saúde entre os residentes noruegueses é, de fato, universal e contempla uma ampla gama de serviços. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os gastos per capita com saúde na Noruega são próximos de US 8 mil, cerca de dez vezes maior do que no Brasil.

Recentemente, a médica e consultora de inovação do Hospital Israelita Albert Einstein, Caroline Kanaan, esteve no país escandinavo pois um familiar se acidentou durante uma viagem a trabalho e precisou de atendimento médico. Kanaan pôde vivenciar o funcionamento de uma instituição pública daquele país e, como parte de suas atividades é justamente olhar para a inovação e enxergar oportunidades de melhoria para o paciente, foi inevitável estabelecer paralelos com o que vivencia no Brasil.

Organização e processos muito bem definidos

O acidente em questão aconteceu em uma estação de ski e demandou um atendimento emergencial devido a um trauma de perna. Segundo ela, “o resgate foi acionado e como a ambulância não consegue subir na pista, o atendimento inicial é realizado por paramédicos que transportam o paciente em quadriciclos até o local onde a ambulância está aguardando para fazer a remoção ao serviço médico de emergência”.

Caroline já relata uma primeira diferença: todos os paramédicos, personagens comuns em filmes e seriados estrangeiros, eram especialistas em emergências. No Brasil as equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) são compostas por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que não necessariamente têm formação específica em emergências.

Outro destaque apontado por ela é que o objetivo do atendimento na saúde norueguesa, desde os primeiros socorros, é dar o tratamento adequado ao paciente no lugar em que ele precisa estar. “Parece óbvio, mas para conseguir oferecer esse cuidado integrado é preciso contar com um processo muito bem estruturado e com uma interoperabilidade de dados eficaz”, aponta.

No caso do familiar de Caroline, o processo foi relativamente simples e impressionantemente rápido: o paciente foi levado a uma unidade de pronto-atendimento (que não é um ambiente hospitalar), no qual foi atendido por médicos especialistas em emergência. Depois de identificada uma fratura complexa, foi definido que o paciente seria transferido para um hospital universitário referência em ortopedia – o Ullevål Hospital, que fica em Oslo, capital da Noruega.

“Em menos de 6 horas foram feitos, de forma completa, o atendimento, o diagnóstico, a transferência e a indicação da cirurgia. No Brasil, considerando o SUS, esse processo demoraria facilmente um dia inteiro. Logo que foi informado a necessidade de uma cirurgia, imaginamos que demoraria um pouco mais. Mas o acidente foi ao meio dia de um domingo e às seis da manhã do dia seguinte o paciente já estava no centro cirúrgico”, relata. “A recuperação também é diferente: em vez de fazer uma passagem pela UTI, os pacientes voltam diretamente para o leito”.

Relação de trabalho horizontal

No quarto, o atendimento é unificado: todos os profissionais de saúde utilizam o mesmo tipo de vestimenta, sem diferenciação de cores para definir quem é médico ou quem é enfermeiro, por exemplo. Fato que, para Caroline, deu a sensação de unidade e atuação em conjunto.

“Você só descobre com quem está falando se prestar atenção no crachá. Mas, por lá, no fim das contas, isso nem faz diferença, porque a equipe de enfermagem tem autonomia para tomar a conduta que julgar necessária, sem ter que, necessariamente, passar pelos médicos, que sequer ficam no hospital o dia todo”, diz.

Ela lembra que, no Brasil, os pacientes em internação também não são assistidos por uma equipe médica 100% do tempo, mas os enfermeiros não tomam uma conduta sem acionar o médico que está no plantão, por exemplo.

“Essa diferença é possível por alguns motivos: todo o plano de tratamento do paciente é muito bem definido de imediato e alinhado com as equipes responsáveis. Se, por acaso, houver uma intercorrência, as equipes de enfermagem têm treinamento e são capacitadas para atuarem sozinhas”, afirma.  “Os profissionais recebem essa autonomia desde a sua formação e isso faz a diferença. A enfermagem não é responsável apenas pelo cuidado de asseio, de checagem e de medicação, mas está de posse do plano terapêutico, fazendo o acompanhamento tal qual o médico e outras equipes assistenciais”.

Além de capacitados, os profissionais também são valorizados. Segundo Caroline, as pessoas que se formam em enfermagem, saem da graduação vendo valor em suas profissões e recebem esse retorno do mercado de trabalho com bons salários – e não apenas de forma superficial ou subjetiva.

“Não é um reconhecimento apenas para dizer ‘vocês são importantes’, pois isso é o óbvio e o mínimo que deveria ser feito, mas eles verdadeiramente são beneficiados com plano de carreira e salários adequados. No Brasil, ainda vemos uma disparidade enorme entre salários de médicos e de enfermeiros. E isso impacta nas equipes e no sistema de saúde como um todo. Até o paciente acaba impactado, pois não tem a sensação de receber um cuidado integrado. Ainda que eu trabalhe em um hospital como o Einstein, que tem um plano de carreira e valoriza a equipe de enfermagem, essa infelizmente não é a realidade no Brasil”, reforça.

Protocolos, expertise, objetividade e transparência

Na segunda noite, logo depois da primeira cirurgia, uma intercorrência revelou a necessidade de outro procedimento cirúrgico, que foi feito na manhã seguinte. Caroline explica que o paciente precisou de um fixador externo para a estabilização da fratura e que ela como médica, por mais que não tenha especialização em ortopedia, estimou por experiência empírica, que a terceira cirurgia seria feita dentro de quatro ou cinco dias.

“Para minha surpresa, o procedimento foi feito 24 horas depois da cirurgia anterior. Isso foi um susto, mas a equipe garantiu que eles tinham a expertise e que tentariam fazer toda a reconstrução em uma única cirurgia final. Eu achei muito ousado, mas eles realmente a fizeram e o paciente já voltou para o quarto, dessa vez, com a perna fechada, sem fixador. A sensação que tive foi que eles estavam muito acostumados a fazer esse procedimento e que o protocolo, mais uma vez, era muito claro”.

Além dos próximos passos parecerem óbvios para a equipe médica, as informações levadas a pacientes e familiares é também muito transparente nesse sistema. Caroline, por exemplo, foi informada diversas vezes da previsão de alta do paciente e a estimativa foi certeira: foram 12 dias de internação, incluindo as três cirurgias, controle da dor e começo da reabilitação.

“Eles seguem a literatura e protocolos próprios que dão uma noção prévia muito assertiva da jornada de cada paciente. Assim, eu tinha a certeza de que, se não houvessem intercorrências, a previsão de saída era no dia tal. Isso é ótimo. Primeiro porque garante um maior giro de leito – para se ter ideia, no período de 12 dias em que ficamos por lá, conhecemos 17 pacientes diferentes, é uma rotatividade muito grande, considerando que o quarto tinha quatro leitos –, há a possibilidade de atender mais pessoas e ainda diminui a ansiedade do paciente e de seus familiares”.  

Na comunicação, a objetividade também impera: as equipes são mais frias, em comparação com o acolhimento brasileiro, mas bastante solícitas. “Eles são mais distantes, é uma questão cultural, mas sempre foram muito gentis e respeitosos conosco. Eles mostraram segurança no que estavam fazendo e isso ajuda inclusive a dar mais autonomia para o paciente. Os fisioterapeutas, por exemplo, não acompanhavam os exercícios o tempo todo, eles passavam nos leitos, indicavam o que era para ser feito e deixavam que os pacientes fizessem sozinhos. E funciona muito bem, de forma otimizada”.

Tecnologia que funciona

Também as questões burocráticas são resolvidas com eficácia: Caroline precisou solicitar um relatório que comprovasse que ela estava na Noruega por questões pessoais e, para a sua surpresa, recebeu o que pedira no mesmo dia.

“Eu solicitei o documento de manhã e recebi tudo completo, assinado e carimbado eletronicamente pelo médico à tarde. Eu achei que fosse demorar, porque imaginei que o médico teria que parar para procurar as informações necessárias, buscar no prontuário e escrever o relatório. Mas o documento certamente não passou pelo médico: o sistema emitiu um resumo de forma completa e precisa e o carimbou eletronicamente”, conta.

Nesse caso, a interoperabilidade dos dados se mostra absolutamente eficiente e facilita o trabalho das equipes. Um claro exemplo da tecnologia a serviço da equipe, e não o contrário. “No Brasil, temos visto a incorporação de algumas tecnologias na saúde que não necessariamente fazem a diferença. Elas são instaladas mais por conta da pressão da implementação de inovações do que pelas melhorias que causam na operação. Por lá, não há supérfluos, não há excessos, mas tudo o que tem, tem um propósito e funciona”.

Inspirações da Noruega para Brasil

É claro que, antes de comparar uma coisa com a outra, é preciso levar alguns pontos em consideração: a Noruega tem pouco menos de 5,5 milhões de habitantes, enquanto o Brasil conta com mais de 214 milhões. A Noruega já esteve em primeiro lugar no ranking de países mais desenvolvidos do mundo e o Brasil ainda está em desenvolvimento.

Ainda assim, Caroline acredita que é possível se inspirar no atendimento de excelência experienciado para fazer com que o SUS, que é considerado um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública globalmente, dê largos passos em direção às melhorias necessárias. “Eu verdadeiramente acredito na saúde pública, não só porque é direito de todos e dever do Estado, mas pelo seu princípio de equidade”, reforça.

Segundo a médica, existem muitos “brasis” dentro do Brasil e, baseado em tudo o que foi observado no sistema norueguês, o primeiro passo que o país precisa dar é em direção a um prontuário eletrônico unificado: “Nós sabemos que a maioria dos hospitais brasileiros ainda funcionam com papel e caneta. Fazer a gestão desses dados de forma integrada vai garantir que a jornada do paciente seja mais rápida e que ele receba o tratamento adequado, no local adequado, pelo tempo adequado e que depois termine de se recuperar em casa, com acompanhamento à distância, por exemplo”.

Menos desperdícios, protocolos mais bem definidos e a valorização dos profissionais também são itens da lista da especialista. “O profissional que é visto pelos pares como sendo de alto valor desempenha sua atividade com melhor qualidade técnica, dando dignidade para os seus pacientes e sendo justo. Eu vi tudo isso na equipe de médicos, enfermeiros e demais profissionais da assistência. Isso me fez ter orgulho de ser uma profissional da saúde e eu falei isso para eles: só um profissional da saúde sabe reconhecer o valor de um bom profissional da saúde. Ficamos duas semanas praticamente morando no Ullevål e essa experiência superou completamente as minhas expectativas. É assim que a jornada de saúde deveria ser para todos os pacientes e acompanhantes, em todos os lugares do mundo, onde o cuidado em saúde é projetado para igualdade de acesso”, conclui.

Ana Carolina Pereira

Jornalista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ao longo de sua carreira, passou por veículos como TV Globo, Editora Globo, Exame, Veja, Veja Saúde e Superinteressante. Email: ana@futurodasaude.com.br.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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