A experiência de uma médica brasileira no sistema de saúde público da Noruega
A experiência de uma médica brasileira no sistema de saúde público da Noruega
Fazer a gestão de sistemas públicos de saúde para que
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Fazer a gestão de sistemas públicos de saúde para que cumpram, com excelência, sua missão de oferecer acesso ao cuidado de forma integral, universal e gratuita – como é o objetivo do Sistema Único de Saúde (SUS), no Brasil –, é um desafio em todas as partes do mundo. Mas alguns países se destacam nesse quesito, como é o caso da Noruega.
De acordo com o European Observatory on Health Systems and Policies, observatório de saúde pública comandado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e especializado no desenvolvimento de sistemas de saúde na Europa, a cobertura de saúde entre os residentes noruegueses é, de fato, universal e contempla uma ampla gama de serviços. Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os gastos per capita com saúde na Noruega são próximos de US 8 mil, cerca de dez vezes maior do que no Brasil.
Recentemente, a médica e consultora de inovação do Hospital Israelita Albert Einstein, Caroline Kanaan, esteve no país escandinavo pois um familiar se acidentou durante uma viagem a trabalho e precisou de atendimento médico. Kanaan pôde vivenciar o funcionamento de uma instituição pública daquele país e, como parte de suas atividades é justamente olhar para a inovação e enxergar oportunidades de melhoria para o paciente, foi inevitável estabelecer paralelos com o que vivencia no Brasil.
Organização e processos muito bem definidos
O acidente em questão aconteceu em uma estação de ski e demandou um atendimento emergencial devido a um trauma de perna. Segundo ela, “o resgate foi acionado e como a ambulância não consegue subir na pista, o atendimento inicial é realizado por paramédicos que transportam o paciente em quadriciclos até o local onde a ambulância está aguardando para fazer a remoção ao serviço médico de emergência”.
Caroline já relata uma primeira diferença: todos os paramédicos, personagens comuns em filmes e seriados estrangeiros, eram especialistas em emergências. No Brasil as equipes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) são compostas por médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que não necessariamente têm formação específica em emergências.
Outro destaque apontado por ela é que o objetivo do atendimento na saúde norueguesa, desde os primeiros socorros, é dar o tratamento adequado ao paciente no lugar em que ele precisa estar. “Parece óbvio, mas para conseguir oferecer esse cuidado integrado é preciso contar com um processo muito bem estruturado e com uma interoperabilidade de dados eficaz”, aponta.
No caso do familiar de Caroline, o processo foi relativamente simples e impressionantemente rápido: o paciente foi levado a uma unidade de pronto-atendimento (que não é um ambiente hospitalar), no qual foi atendido por médicos especialistas em emergência. Depois de identificada uma fratura complexa, foi definido que o paciente seria transferido para um hospital universitário referência em ortopedia – o Ullevål Hospital, que fica em Oslo, capital da Noruega.
“Em menos de 6 horas foram feitos, de forma completa, o atendimento, o diagnóstico, a transferência e a indicação da cirurgia. No Brasil, considerando o SUS, esse processo demoraria facilmente um dia inteiro. Logo que foi informado a necessidade de uma cirurgia, imaginamos que demoraria um pouco mais. Mas o acidente foi ao meio dia de um domingo e às seis da manhã do dia seguinte o paciente já estava no centro cirúrgico”, relata. “A recuperação também é diferente: em vez de fazer uma passagem pela UTI, os pacientes voltam diretamente para o leito”.
Relação de trabalho horizontal
No quarto, o atendimento é unificado: todos os profissionais de saúde utilizam o mesmo tipo de vestimenta, sem diferenciação de cores para definir quem é médico ou quem é enfermeiro, por exemplo. Fato que, para Caroline, deu a sensação de unidade e atuação em conjunto.
“Você só descobre com quem está falando se prestar atenção no crachá. Mas, por lá, no fim das contas, isso nem faz diferença, porque a equipe de enfermagem tem autonomia para tomar a conduta que julgar necessária, sem ter que, necessariamente, passar pelos médicos, que sequer ficam no hospital o dia todo”, diz.
Ela lembra que, no Brasil, os pacientes em internação também não são assistidos por uma equipe médica 100% do tempo, mas os enfermeiros não tomam uma conduta sem acionar o médico que está no plantão, por exemplo.
“Essa diferença é possível por alguns motivos: todo o plano de tratamento do paciente é muito bem definido de imediato e alinhado com as equipes responsáveis. Se, por acaso, houver uma intercorrência, as equipes de enfermagem têm treinamento e são capacitadas para atuarem sozinhas”, afirma. “Os profissionais recebem essa autonomia desde a sua formação e isso faz a diferença. A enfermagem não é responsável apenas pelo cuidado de asseio, de checagem e de medicação, mas está de posse do plano terapêutico, fazendo o acompanhamento tal qual o médico e outras equipes assistenciais”.
Além de capacitados, os profissionais também são valorizados. Segundo Caroline, as pessoas que se formam em enfermagem, saem da graduação vendo valor em suas profissões e recebem esse retorno do mercado de trabalho com bons salários – e não apenas de forma superficial ou subjetiva.
“Não é um reconhecimento apenas para dizer ‘vocês são importantes’, pois isso é o óbvio e o mínimo que deveria ser feito, mas eles verdadeiramente são beneficiados com plano de carreira e salários adequados. No Brasil, ainda vemos uma disparidade enorme entre salários de médicos e de enfermeiros. E isso impacta nas equipes e no sistema de saúde como um todo. Até o paciente acaba impactado, pois não tem a sensação de receber um cuidado integrado. Ainda que eu trabalhe em um hospital como o Einstein, que tem um plano de carreira e valoriza a equipe de enfermagem, essa infelizmente não é a realidade no Brasil”, reforça.
Protocolos, expertise, objetividade e transparência
Na segunda noite, logo depois da primeira cirurgia, uma intercorrência revelou a necessidade de outro procedimento cirúrgico, que foi feito na manhã seguinte. Caroline explica que o paciente precisou de um fixador externo para a estabilização da fratura e que ela como médica, por mais que não tenha especialização em ortopedia, estimou por experiência empírica, que a terceira cirurgia seria feita dentro de quatro ou cinco dias.
“Para minha surpresa, o procedimento foi feito 24 horas depois da cirurgia anterior. Isso foi um susto, mas a equipe garantiu que eles tinham a expertise e que tentariam fazer toda a reconstrução em uma única cirurgia final. Eu achei muito ousado, mas eles realmente a fizeram e o paciente já voltou para o quarto, dessa vez, com a perna fechada, sem fixador. A sensação que tive foi que eles estavam muito acostumados a fazer esse procedimento e que o protocolo, mais uma vez, era muito claro”.
Além dos próximos passos parecerem óbvios para a equipe médica, as informações levadas a pacientes e familiares é também muito transparente nesse sistema. Caroline, por exemplo, foi informada diversas vezes da previsão de alta do paciente e a estimativa foi certeira: foram 12 dias de internação, incluindo as três cirurgias, controle da dor e começo da reabilitação.
“Eles seguem a literatura e protocolos próprios que dão uma noção prévia muito assertiva da jornada de cada paciente. Assim, eu tinha a certeza de que, se não houvessem intercorrências, a previsão de saída era no dia tal. Isso é ótimo. Primeiro porque garante um maior giro de leito – para se ter ideia, no período de 12 dias em que ficamos por lá, conhecemos 17 pacientes diferentes, é uma rotatividade muito grande, considerando que o quarto tinha quatro leitos –, há a possibilidade de atender mais pessoas e ainda diminui a ansiedade do paciente e de seus familiares”.
Na comunicação, a objetividade também impera: as equipes são mais frias, em comparação com o acolhimento brasileiro, mas bastante solícitas. “Eles são mais distantes, é uma questão cultural, mas sempre foram muito gentis e respeitosos conosco. Eles mostraram segurança no que estavam fazendo e isso ajuda inclusive a dar mais autonomia para o paciente. Os fisioterapeutas, por exemplo, não acompanhavam os exercícios o tempo todo, eles passavam nos leitos, indicavam o que era para ser feito e deixavam que os pacientes fizessem sozinhos. E funciona muito bem, de forma otimizada”.
Tecnologia que funciona
Também as questões burocráticas são resolvidas com eficácia: Caroline precisou solicitar um relatório que comprovasse que ela estava na Noruega por questões pessoais e, para a sua surpresa, recebeu o que pedira no mesmo dia.
“Eu solicitei o documento de manhã e recebi tudo completo, assinado e carimbado eletronicamente pelo médico à tarde. Eu achei que fosse demorar, porque imaginei que o médico teria que parar para procurar as informações necessárias, buscar no prontuário e escrever o relatório. Mas o documento certamente não passou pelo médico: o sistema emitiu um resumo de forma completa e precisa e o carimbou eletronicamente”, conta.
Nesse caso, a interoperabilidade dos dados se mostra absolutamente eficiente e facilita o trabalho das equipes. Um claro exemplo da tecnologia a serviço da equipe, e não o contrário. “No Brasil, temos visto a incorporação de algumas tecnologias na saúde que não necessariamente fazem a diferença. Elas são instaladas mais por conta da pressão da implementação de inovações do que pelas melhorias que causam na operação. Por lá, não há supérfluos, não há excessos, mas tudo o que tem, tem um propósito e funciona”.
Inspirações da Noruega para Brasil
É claro que, antes de comparar uma coisa com a outra, é preciso levar alguns pontos em consideração: a Noruega tem pouco menos de 5,5 milhões de habitantes, enquanto o Brasil conta com mais de 214 milhões. A Noruega já esteve em primeiro lugar no ranking de países mais desenvolvidos do mundo e o Brasil ainda está em desenvolvimento.
Ainda assim, Caroline acredita que é possível se inspirar no atendimento de excelência experienciado para fazer com que o SUS, que é considerado um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública globalmente, dê largos passos em direção às melhorias necessárias. “Eu verdadeiramente acredito na saúde pública, não só porque é direito de todos e dever do Estado, mas pelo seu princípio de equidade”, reforça.
Segundo a médica, existem muitos “brasis” dentro do Brasil e, baseado em tudo o que foi observado no sistema norueguês, o primeiro passo que o país precisa dar é em direção a um prontuário eletrônico unificado: “Nós sabemos que a maioria dos hospitais brasileiros ainda funcionam com papel e caneta. Fazer a gestão desses dados de forma integrada vai garantir que a jornada do paciente seja mais rápida e que ele receba o tratamento adequado, no local adequado, pelo tempo adequado e que depois termine de se recuperar em casa, com acompanhamento à distância, por exemplo”.
Menos desperdícios, protocolos mais bem definidos e a valorização dos profissionais também são itens da lista da especialista. “O profissional que é visto pelos pares como sendo de alto valor desempenha sua atividade com melhor qualidade técnica, dando dignidade para os seus pacientes e sendo justo. Eu vi tudo isso na equipe de médicos, enfermeiros e demais profissionais da assistência. Isso me fez ter orgulho de ser uma profissional da saúde e eu falei isso para eles: só um profissional da saúde sabe reconhecer o valor de um bom profissional da saúde. Ficamos duas semanas praticamente morando no Ullevål e essa experiência superou completamente as minhas expectativas. É assim que a jornada de saúde deveria ser para todos os pacientes e acompanhantes, em todos os lugares do mundo, onde o cuidado em saúde é projetado para igualdade de acesso”, conclui.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.