Apostas para o futuro, cabines de saúde ainda não engrenaram no Brasil
Apostas para o futuro, cabines de saúde ainda não engrenaram no Brasil
Cabines ou estações de saúde surgiram nos últimos anos com potencial de ampliar acesso e reduzir custos, mas ainda enfrentam desafios para avançar
No fim do ano passado, a startup americana Forward Health lançou o CarePod, uma estação médica autônoma que faz vários tipos de exame (de coleta de sangue, swab de garganta à aferição da pressão arterial, entre outros). As cápsulas, cabines ou quiosques, como têm sido chamadas no noticiário, estão sendo instaladas em shoppings, academias e escritórios. E a Forward já anunciou que planeja mais que dobrar sua presença em 2024 nos Estados Unidos. Por 99 dólares por mês, o CarePod permite que usuários façam diversos exames sem a presença de médicos, utilizando o auxílio da inteligência artificial para o diagnóstico. É uma tendência tecnológica que foca na atenção primária, com olhar para redução de custos e acessibilidade.
No Brasil, cabines de atendimento médico com auxílio de tecnologia existem, mas ainda não engrenaram. Esse tipo de iniciativa ganhou tração ao longo de 2020, ano da pandemia de Covid-19, em que houve a autorização da telemedicina em caráter emergencial. “Mesmo considerando o gargalo na área, há uma questão cultural que persiste. O brasileiro tem o hábito de recorrer ao pronto-socorro quando não está se sentindo bem, o que é compreensível. No entanto, acredito que, em muitos casos, as pessoas que lotam os pronto-socorros poderiam resolver suas questões de saúde de maneiras mais eficientes, como por meio da telemedicina ou em farmácias, como ocorre nos Estados Unidos”, afirma Loraine Burgard, criadora da Hai, healthtech de cabines médicas com foco no setor empresarial.
Iseli Reis, empreendedora social e presidente da healthtech Fleximedical, explica que a tendência das cabines médicas não é apenas o espaço físico. “Quando falamos dessa modalidade não estamos pensando somente na cabine em si, apesar de ser importante. Existem maletas médicas, aplicativos e afins, está tudo interligado a essa tendência”.
Cenário brasileiro
Apesar de um avanço lento, estruturas tecnológicas, como as presentes nas cabines, têm o potencial de ajudar a resolver alguns dos principais gargalos do setor, como a disponibilidade de profissionais, vazios assistenciais e dificuldades na implementação de tecnologia – desafios já apontados por diversas pesquisas, como a Future Health Index 2023, encomendada pela Philips.
Além disso, segundo dados divulgados pelo Centro de Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) em 2022, por exemplo, pelo menos 33% dos médicos brasileiros já atendem via teleconsulta. E o monitoramento remoto de pacientes, que em 2019 era realizado por 16% dos enfermeiros, passou a ser utilizado por 29% deles em 2022.
Para Burgard, da Hai, além dos gargalos e da questão cultural, o Brasil continua sendo um país desigual. “O grande desafio é criar uma porta de entrada fácil, rápida e próxima. Muitas vezes, em comunidades, as pessoas não procuram atendimento preventivo simplesmente porque não têm os recursos financeiros necessários, mesmo que seja um valor relativamente baixo, como R$ 8, valor de duas passagens. Para elas, esse montante faz muita diferença, e a falta desse acesso acaba levando-as a buscar ajuda apenas quando estão em situações críticas”.
Cabines no SUS
A maioria das healthtechs e startups que trabalham com tecnologias relacionadas a telemedicina atendem o mercado privado, mas a ideia é expandir para o SUS, onde há, inclusive, grande necessidade de acesso.
O Grupo Fleury, por exemplo, levou cabines de telemedicina para uma comunidade, juntamente com a ONG Gerando Falcões, que atua como um ecossistema de desenvolvimento social. O projeto de Atenção Primária à Saúde, adotando o formato figital (integração do físico com o digital), tem como propósito oferecer serviços de cuidados de saúde direcionados aos residentes das comunidades participantes do Projeto Favela 3D na Favela dos Sonhos, localizada em Ferraz de Vasconcelos (SP).
As consultas são conduzidas em uma cabine de telemedicina, na qual os habitantes da comunidade que necessitam de cuidados de saúde passam por triagem e teleconsulta, recebendo atendimento de uma equipe de profissionais do Grupo Fleury. Essa equipe é composta por médicos que trabalham remotamente e técnicos de enfermagem presentes no local. O serviço incorpora tecnologias avançadas, que possibilitam ao médico realizar ausculta cardíaca e pulmonar, avaliação da garganta e ouvido, monitoramento de sons estomacais e gastrointestinais, análise de imagens da pele, medição de temperatura corporal e frequência cardíaca, tudo de maneira remota e em tempo real. Além disso, a prescrição médica é realizada com certificação digital.
“Como podemos incorporar tecnologias de menor custo e replicáveis? Foi nesse contexto que surgiu a proposta de instalar uma cabine de telemedicina, pois é menos dispendioso e mais fácil do que realizar toda a construção de um estabelecimento de saúde local. Assim, fechamos uma parceria para a instalação da cabine de telemedicina, oferecendo consultas de atenção primária em saúde, alinhadas ao programa de saúde da família no município”, conta Daniel Périgo, gerente sênior de ESG do Grupo Fleury.
A cabine opera com um modelo envolvendo médicos de Saúde da Família remota e técnicos de enfermagem locais. Atualmente, cerca de 50% da população da comunidade, totalizando cerca de 1100 procedimentos ao longo do ano, entre consultas médicas e atendimentos de enfermagem, está sendo atendida. Segundo os relatórios do projeto, isso contribui para reduzir a fila do SUS, proporcionando atendimentos rápidos para casos de baixa complexidade. A cabine tem um índice de solução de demandas de aproximadamente 87%, indicando que a maioria dos casos é resolvida no local, evitando a sobrecarga do sistema de saúde público.
Iseli Reis, da Fleximedical, acredita que o modelo complementa o serviço presencial: “Afinal, certas atividades, como a administração de vacinas e cirurgias, não podem ser realizadas online. Penso que a chave está no equilíbrio, no modelo híbrido, que combina online e presencial. Alguns procedimentos e processos sempre demandarão a presença física, enquanto aproximadamente 80% deles poderiam ser resolvidos de forma remota. A evolução se dá com a implementação de uma abordagem mais inteligente na saúde, na qual as cabines e estações de telemedicina desempenham um papel fundamental”.
Desafios da implementação das cabines
Diversos fatores continuam sendo impeditivos frequentes para a adoção dessa modalidade. A falta de conhecimento é um deles. “É preciso quebrar uma série de paradigmas. Muitas vezes, as pessoas se questionam sobre como integrar isso ao ecossistema”, pontua Burgard. “Vou retirar o plano de saúde? Não. Você vai inserir o seu plano de saúde aqui dentro. Vou retirar a saúde ocupacional? Não. Você vai realizar os exames de saúde ocupacional aqui dentro. Pelo menos na Hai, conseguimos unir todos. Conversamos com as empresas, os planos de saúde, com as empresas de saúde ocupacional, com os hospitais. Porque, no fundo, o que fazemos é ser uma grande conectora de todo esse ecossistema já existente, sabendo que ele não muda de um dia para o outro. Ele não assume isso imediatamente”.
Périgo destaca também o engajamento da comunidade como ponto crucial: “Tínhamos preocupações sobre como a população reagiria à experiência digital inicial, dado que estamos acostumados ao modelo presencial. No entanto, observamos uma adesão significativa da população, principalmente por meio do boca a boca, onde uma pessoa satisfeita compartilha com outras, gerando um engajamento cultural com os mecanismos digitais”.
Além disso, algumas questões mais práticas também atrapalham o processo. Daniel Périgo conta que um obstáculo constante que o Fleury observa na instalação das cabines é a infraestrutura. “O espaço físico deve contar com uma internet estável, essencial para o funcionamento adequado. Além disso, a presença de energia elétrica e ponto de água é fundamental. Optamos por instalar as cabines na área externa, próxima à sede da Gerando Falcões, pois isso resolveu questões de infraestrutura e proporcionou suporte administrativo para atividades como a impressão de prescrições médicas”, detalha.
A conectividade também preocupa, aponta Iseli Reis. “É só sair de carro para perceber que existem áreas com sinal e outras sem, mesmo aqui na Região Sudeste, que é privilegiada em termos de serviços de conectividade. Imagine em outras regiões”. O problema da conectividade é um desafio considerável, já que as soluções para o problema, como tecnologias via satélite, possuem custos elevados. “Quando falamos da democratização desse sistema, esse desafio se destaca”.
Outro ponto levantado por ela é a necessidade de uma mudança de mentalidade por parte dos médicos, “eles precisam compreender que essa é uma ferramenta para aprimorar a prática médica, tornando-a mais interessante e complementar. Com o advento de inteligência artificial e algoritmos para auxiliar em diagnósticos, é necessário que os profissionais de saúde ajustem sua mentalidade”. E por parte dos pacientes também, especialmente entre aqueles que ainda enfrentam dificuldades digitais.
A mudança de mentalidade inclui também o governo. “É crucial que o governo compreenda os benefícios envolvidos e esteja disposto a investir e aplicar inteligência para que a telemedicina se consolide. Essa é a essência e o encerramento das situações que constituem os desafios da telemedicina, das cabines e das estações no Brasil”, finaliza.
Por isso, um trabalho em conjunto com o poder público precisa avançar. Na experiência do Fleury em Ferraz de Vasconcelos, embora tenha fluído bem, o alinhamento foi essencial. “As receitas médicas geradas nas cabines precisam ser aceitas para garantir a continuidade do atendimento do paciente, demandando um alinhamento estratégico com as políticas de saúde pública. O projeto em Ferraz foi bem recebido pela Secretaria de Saúde Pública, com alinhamentos de protocolos realizados para garantir a eficácia da iniciativa”, pontua Périgo.
Futuro das cabines ou cabines do futuro
A pandemia e os desafios relacionados a ela, somados às mudanças e avanços tecnológicos que ocorreram durante os últimos anos evidenciaram a necessidade de que o setor de saúde se adaptasse e trouxesse soluções diferentes, com um olhar para eficiência e ampliação de acesso. Nesse sentido, a adoção da tecnologia na saúde é algo que veio para ficar e a tendência é que seu uso cresça ao longo dos próximos anos.
“Não sei se será exatamente com o nome “cabine” ou algum outro nome, se será digital ou algo completamente novo, mas vejo que isso realmente vai criar acesso no futuro”, prevê Iseli Reis, citando como exemplo a possibilidade, inclusive, de uso em regiões de risco como guerras ou em locais com desastres naturais.
Ainda na linha do acesso, Daniel Périgo reforça que este modelo de telemedicina por meio de cabines devem crescer, como um movimento que permite ampliar o acesso à saúde com custos mais baixos, facilitando o atendimento às populações mais vulneráveis.
“Estamos atualmente em um segundo movimento de implantação de uma nova cabine em outra comunidade da Gerando Falcões, localizada em Maceió. Essa comunidade apresenta características diferentes, sendo uma comunidade ribeirinha, o que nos proporciona outro aprendizado valioso do ponto de vista social. Reconhecemos que as necessidades de saúde podem variar, e estamos avaliando outras oportunidades, buscando conectar esses mecanismos de saúde à distância. Acreditamos fortemente que as cabines funcionam como a porta de entrada para uma atuação mais integrada em saúde nessas localidades”, diz Périgo.
Loraine Burgard, da Hai, que atua majoritariamente no setor privado, vê oportunidades de democratizar esse acesso no âmbito público. “Estamos observando uma grande oportunidade de atuação na saúde pública e estamos sendo muito procurados. A empresa tem trabalhado em duas frentes: uma envolvendo o trabalho em Unidades Básicas de Saúde (UBS), utilizando cabines, totens e maletas, e outra explorando a tecnologia para atender profissionais de atenção básica de saúde que realizam visitas domiciliares”, fiz.
“A migração para o setor público requer estruturação, integração e consideração de fatores específicos desse ambiente. Enxergamos as cabines não apenas como espaços físicos, mas como parte de um novo modelo de negócios que visa trazer dados estruturados de saúde para atendimentos e cuidados longitudinais”, explica Burgard.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.