Big Bang da saúde brasileira: os próximos passos pós-crise nos segmentos de fusões e aquisições, saúde digital e healthtechs
Big Bang da saúde brasileira: os próximos passos pós-crise nos segmentos de fusões e aquisições, saúde digital e healthtechs
O futuro da saúde no Brasil deve seguir por um caminho que, a curto prazo, passa por eficiência operacional, e a médio e longo prazo precisa ter “eficiência informacional”.
A sensibilização da opinião pública (e de investidores) de que a saúde é um pilar crítico do equilíbrio da economia mundial foi escancarada pela pandemia da Covid-19 e encontrou um mercado nacional de provedores e operadoras extremamente pulverizado. Ao comparar o cenário da saúde brasileira com o norte-americano, muito mais consolidado, o mercado percebeu a oportunidade e acelerou fortemente o movimento de fusões e aquisições em saúde, que já vinha acontecendo, porém de maneira mais moderada.
As cifras contam um pouco desta história. O volume de operações realizadas em 2020 foi da ordem de R$ 8 bilhões e passou para R$ 14 bilhões, em 2021, considerando apenas o volume negociado pelas companhias abertas, e sem contar os mega deals que aconteceram em 2021 parcialmente via troca de ações. Em 2022, houve uma leve redução, mas a movimentação continuou aquecida, com aproximadamente R$ 13 bilhões negociados.
Vale mencionar ainda o número de companhias abertas na área de saúde, do segmento assistencial, que cresceu significativamente: em 2020 eram oito empresas, em 2022 já havia mais de 14 e, no atual momento, são mais de 25, considerando as redes de hospitais e laboratórios, operadoras de saúde, farmácias e distribuidores de materiais e medicamentos. Além disso, as emissões de debêntures, as ofertas de ações subsequentes (operações conhecidas como follow-on) e oferta pública de ação (da sigla em inglês, IPOs) também se multiplicaram e fizeram da indústria destaque nos relatórios e análises de agências de rating, blogs e sites de investimentos.
Finalmente, o crescimento de healthtechs no país também evidencia que o setor entrou definitivamente em destaque na economia nacional. Dados do relatório “Healthtech Report 2022”, realizado pela Distrito, apontam um ecossistema de aproximadamente 1.100 empresas neste segmento em 2022, com um pico de investimentos da ordem de R$ 2,5 bilhões em 2021.
Movimentos expandem modelo atual, mas setor precisa de novos modelos
Mas passado o momento de maior euforia dos mercados (e, por que não dizer, um excesso de liquidez e confiança para investimentos em saúde), o setor como um todo vive uma realidade desafiadora. O mesmo cenário de pandemia, que evidenciou as oportunidades para a indústria de saúde como um todo, trouxe também grandes desafios, especificamente para a área de saúde suplementar. As operadoras, por exemplo, terminaram o ano de 2022 com resultado operacional de mais de R$ 11 bilhões de prejuízo.
Algumas das maiores empresas do setor observaram que as respectivas ações perderem expressivo valor de mercado na bolsa de valores chegando, em alguns casos, a perdas de 55% nos últimos 12 meses, e algumas raras exceções de aumento do valor de face. Nem o “business as usual”, ou seja, a operação trivial dos hospitais e operadoras, tem sido um mar calmo de se navegar.
Fato é que os grandes movimentos financiaram, em grande parte, a expansão de um modelo de negócio ainda muito pautado nos ganhos de escala, na eficiência operacional e na redução de custos, e na aquisição de ativos, como num tabuleiro de guerra onde se disputam “territórios” de hegemonia.
A curto prazo, a indústria precisa de fato de eficiência operacional e escala, mas essa receita sozinha não trará o crescimento sustentável a longo prazo. A complexidade do ecossistema de saúde, com as novas necessidades assistenciais, novos padrões culturais e de consumo, além da transformação tecnológica, mostram que as empresas precisam mudar estruturalmente a estratégia dos negócios.
Saúde digital é o caminho para novos modelos de negócio
Qual o desafio para que as sinergias realmente sejam alcançadas? A resposta está na incorporação de tecnologia. Creio que já estamos todos convencidos de que a adoção tecnologia, como os prontuários eletrônicos, a telemedicina, a análise de dados permitindo uma tomada de decisões mais informadas, ferramentas que suportam uma comunicação eficaz entre profissionais de saúde e uma experiência mais conveniente para os pacientes, é o caminho para a geração de valor e ganho de sinergias entre grandes grupos.
Contudo, por anos a saúde incorporou tecnologia para gerar receita, volume, e não valor. Por mais que hoje o mercado fale muito em agregar valor para o paciente e para o ecossistema, estamos ainda apenas na superfície deste conceito.
A incorporação de tecnologia e utilização de dados depende de superar barreiras físicas, sistêmicas e culturais. As físicas e sistêmicas vem de um parque tecnológico extremamente heterogêneo em idade e padrões de comunicação, com silos apartados de informação. As barreiras culturais a serem superadas envolvem o pensamento de que a tecnologia compete com a capacidade humana ao invés de potencializá-la, de que a tecnologia marginaliza a mão de obra, e não que a libera para atividades mais nobres.
A transformação necessária para o crescimento e amadurecimento do setor de saúde (e não somente dos modelos de consolidação) está no modelo digital ou figital. Isso quase todos sabemos ou temos um bom palpite. O desafio, enfim, está em como fazer esta transformação, como executá-la da maneira mais eficiente e mais proveitosa para o ecossistema como um todo.
Dados serão peça-chave para a mudança dos negócios
A mudança demandará tempo, investimento, aculturamento e uma visão holística que poucas empresas de saúde hoje dominam completamente, pois muitas ainda utilizam a tecnologia apenas para replicar o modelo de escala-corte de custos e não para criação de valor.. Nosso olhar deve estar direcionado em como trazemos estas tecnologias para tratar o paciente de maneira holística e com impactos positivos duradouros.
Os players do setor terão que investir em ações de reeducação e gerenciamento do cuidado (managed care), assim como pensar em uma maneira de eventualmente trabalhar prevenção colaborativa com as concorrentes.
As linhas de tratamento holístico e jornadas de accountable care precisam ser modeladas com base em dados e informações assistenciais e atuariais que suportem a melhor precificação e extrapolação de cenários positivos e negativos, trazendo maior previsibilidade para um modelo novo que carece de confiança do setor e um esforço considerável para ser implantado. As simulações que o mundo informacional, das ferramentas de analytics, dos modelos preditivos, tanto assistenciais como econômico-financeiros, seriam um grande suporte ou incentivo a mais para as empresas adotarem o modelo que visa a uma maior sustentabilidade.
A disseminação de conhecimento, o preparo e o treinamento da mão de obra especializada precisarão ser revolucionados, já vislumbrando a grande interação entre humano e tecnologia, entre conhecimento humano e modelagem de dados, entre comparação de realidade e projeção de realidade.
A modelagem de negócios deverá ser pensada em como compor receitas da saúde agregando ou trazendo fontes de pagamento de outros segmentos como, por exemplo, o mercado de consumo (alimentação, atividade física, suplementos, estilo de vida). O conceito de responsabilidade e o uso consciente dos serviços, atualmente executados pela restrição de serviços e coparticipação, poderiam ser equilibrados por outras métricas como a observância dos protocolos e aderência a tratamento, adoção de hábitos saudáveis, atingimentos de metas de autocuidado que, enfim, reduzem a sinistralidade. Tais modelos só são viáveis e somente podem ter eficácia validada com a correta e consistente captura e análise de dados, assim como gerenciamento das jornadas e mensuração de resultados.
Healthtechs como provocação para a disrupção
É neste cenário que trazemos o papel das healthtechs na transformação do setor de saúde brasileiro. As ferramentas digitais que nascem delas (sejam bigtechs, sejam startups) têm a nobre função de ser o elo para o modelo baseado em dados, de suportar a integração e de viabilizar de maneira ágil e inteligente a análise da informação, de viabilizar a criação de valor baseada em conhecimento acumulado, em contraponto ao modelo tradicional e “industrial” de geração de escala e modelos massificados. Bastante responsabilidade, é verdade.
Acredito que, aqui também, vale um minuto para pensar em como o setor avança no amadurecimento do ecossistema de inovação. Ainda vivemos uma geração de startups que endereçam gaps no acesso à saúde, ou seja, trazem diferentes soluções para problemas (novamente) de acesso e escala, entregando conveniência ou reunindo demanda pulverizada para a criação de um novo filão de receita, antes não explorado. Ao passo que estamos entregando atenção e acesso de uma maneira mais conveniente, o setor ainda corre risco de agregar ainda mais complexidade a um sistema que não está conseguindo digerir os problemas antigos, quanto mais lidar com novos custos e demandas a serem incorporadas.
É preciso estimular a inovação através do uso inteligente de informação e de dados e, principalmente, a abordagem holística de setor. O crescimento sustentável precisa trazer o conceito de integração, da avaliação consistente de impacto positivo e sustentável do cuidado para o paciente, para a sociedade e para as instituições que propiciam este cuidado, e isso demanda um modelo focado na gestão da informação e não apenas no controle ou geração de novas frentes de demanda.
Inovações como inteligência artificial, gêmeos digitais e metaverso são ferramentas e não um fim a ser alcançado. Tais ferramentas podem ser bem ou mal utilizadas, sobrecarregando ainda mais o setor, trazendo receitas para um grupo de stakeholders, sem trazer benefício para o ecossistema ou impactando positivamente a saúde da população e gerando sustentabilidade. Ajustes de rota serão necessários, pois até conceitos e as fronteiras do que é considerado saúde têm sido rediscutidas, mas certamente há um espaço enorme para evolução e construção, e estou otimista com essas possibilidades.
Finalmente, ainda é preciso pensar como este novo mercado e as tecnologias podem ajudar as agências reguladoras a acelerarem seus próprios processos de transformação e trabalhar de maneira diligente o delicado equilíbrio entre informação para a geração de valor e a preservação da privacidade e segurança dos dados individuais dos cidadãos.
Colocado este cenário, acredito que o futuro da saúde no Brasil deve seguir por um caminho que a curto prazo passa por eficiência operacional, e a médio e longo prazo precisa ter “eficiência informacional”. Seja qual for o momento da jornada, agora ou em um futuro próximo, somente as empresas que usarem de maneira inteligente dados, informação e tecnologia vão conseguir alcançar crescimento e competitividade. Não há muito espaço para incertezas ou dúvidas, o momento de inflexão é agora, ou melhor dizendo, “foi” agora. Como gestores de saúde e ultimamente como pacientes que somos, este é um movimento que depende de cada um de nós e precisamos segui-lo de maneira determinada e consistentemente.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.