Radioterapia evolui em precisão e eficácia, mas acesso às novas tecnologias ainda é desafio

Radioterapia evolui em precisão e eficácia, mas acesso às novas tecnologias ainda é desafio

Sendo um dos principais pilares dos tratamentos oncológicos – ao […]

By Published On: 03/05/2023
Equipamento de radioterapia no The Clatterbridge Cancer Center

Foto: The Clatterbridge Cancer Center

Sendo um dos principais pilares dos tratamentos oncológicos – ao lado da cirurgia, da quimioterapia e dos tratamentos sistêmicos, que incluem terapias-alvo e hormonioterapia –, a radioterapia tem evoluído com a ajuda da tecnologia e caminha para oferecer um cuidado cada vez mais personalizado, acompanhando as tendências da medicina de precisão. O problema é que o acesso a essa terapia tem se mostrado um desafio na saúde pública brasileira, afetando o tratamento de milhares de pacientes.

Um relatório recém-divulgado pela Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), feito em parceria com a Fundação Dom Cabral (FDC), apontou que nos últimos 15 anos, 1,1 milhão de brasileiros – cerca de 73 mil por ano – não tiveram acesso à radioterapia pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No período, a incidência acumulada de novos casos de câncer foi de 6,2 milhões e a falta do tratamento pode ter sido a causa direta de mais de 110 mil mortes.

De acordo com Gustavo Nader Marta, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT) e médico titular da área de Radioterapia do Hospital Sírio-Libanês, esse é um problema gravíssimo para as pessoas diretamente afetadas e para o sistema de saúde como um todo: “Para o paciente, essa falta significa a progressão da doença e, para o país, mais custos para tratar essas condições em estágios avançados”.

O papel da radioterapia nos tratamentos oncológicos

O especialista reforça que a radioterapia tem diversas funções em um tratamento oncológico, podendo ser exclusivo e com intenção curativa, como em tumores de laringe e próstata inicial; utilizado de forma neoadjuvante, antes de um tratamento radical; de forma concomitante a um tratamento sistêmico, como em casos de tumor localmente avançado de cabeça e pescoço; e de forma adjuvante, quando é empregada com o intuito de consolidar um tratamento, impactando em menores riscos de recorrência do tumor e melhores índices de sobrevida global, como é o caso do câncer de mama.

Segundo ele, mesmo com os avanços de outras terapias que têm se mostrado bastante eficientes, a radioterapia continua tendo um papel muito bem estabelecido nos tratamentos oncológicos. “A radioterapia é utilizada também em tratamentos paliativos, quando é empregado com o intuito de aliviar os sintomas. Aproximadamente de 60% a 65% dos pacientes oncológicos vão precisar de radioterapia em algum momento”.

Os maiores avanços da radioterapia nos últimos anos dizem respeito principalmente à precisão na aplicação das doses e ao uso de imagens para direcionar o local de tratamento, além da ajuda de algoritmos para recalcular a dose durante a aplicação.

Essas mudanças são reflexo das maiores preocupações em relação ao uso do tratamento, visto que a radiação, além de ter a capacidade de matar células cancerígenas, também pode danificar tecidos saudáveis e causar efeitos colaterais que variam de danos à pele e fadiga a sérios danos aos órgãos, dependendo da parte do corpo que foi tratada e da dose aplicada, o que trouxe vários estigmas ao tratamento.

“No passado, a técnica era mais rudimentar. Era feita uma avaliação clínica e o médico utilizava o raio-x para determinar a região a ser tratada, mas não era possível prever quais doses chegariam nas estruturas tumorais e ao redor dela. Assim, um paciente com tumor de mama, por exemplo, precisaria de radiação em uma região complicada, porque é onde estão também o coração, o pulmão e a medula”, explica Gustavo Nader Marta.

A evolução da radioterapia

No que se refere ao planejamento das doses, o padrão atual é a radioterapia 3D conformada, que, com a ajuda de imagens de tomografia, consegue identificar precisamente a largura, altura e profundidade do alvo para atingi-lo com feixes de radiação. A Radioterapia por Intensidade Modulada (IMRT), que é uma evolução da modalidade 3D, consegue, ainda, entregar diferentes intensidades de radiação em pequenas áreas de tecido ao mesmo tempo, cobrindo melhor a extensão do tumor e poupando os tecidos vizinhos.

Mais um recurso é a Radiometria em Arco Modulado Volumétrico (VMAT), que é mais evoluída ainda, porque utiliza um acelerador linear com braços mecânicos que oferecem uma rotação em arco de 180º ou 360º graus. Integrado à modulação de feixe da radiação, esse sistema se adequa ao tumor e reduz o tempo que o paciente precisa ficar na máquina.

“Com essas evoluções, temos evidências de melhora nos desfechos clínicos e a tendência é que as atualizações sejam cada vez mais significativas. Há tecnologias, como a Radioterapia Guiada por Imagem (IGRT), que estudam a movimentação respiratória para tratar tumores no pulmão, um órgão que, claro, não pode ficar em apneia para a realização da terapia. É possível, então, sincronizar a radiação com os movimentos e tratar adequadamente”, avalia Marta.

Algumas dessas inovações não são exatamente uma novidade. O IMRT, por exemplo, já existe há mais de 20 anos, mas com o aprimoramento da técnica, hoje é possível fazer aplicações de forma mais rápida. “As evoluções são constantes e as tecnologias vão se agregando. A implementação de softwares que utilizam inteligência artificial em sistemas e mecanismos já existentes é um bom exemplo disso”.

A tecnologia existe há cerca de cinco anos e é capaz de calcular a quantidade exata de radiação necessária no tratamento, para que seja cada vez mais seguro. Agora, na Universidade de Toronto, no Canadá, a mesma  IA já faz, sozinha, o planejamento de doses de radioterapia de próstata. A automação, além dos ganhos para o paciente, também libera otimiza o trabalho dos especialistas.

Outra tecnologia que também já tem anos de aprimoramento é a radioembolização, uma opção para pacientes com tumores inoperáveis no fígado, tanto primários como metastáticos, que não obtiveram sucesso em outros tratamentos. Ela já existe nos Estados Unidos há 20 anos e, em território nacional, foi aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2014.

De acordo com ​​Charles Edouard Zurstrassen, médico especialista em radiologia intervencionista e porta-voz brasileiro do Innovation Symposium da Boston Scientific do Brasil, a dosagem ser personalizada para cada paciente torna esse tipo de tratamento muito mais preciso e eficaz, comprovado em estudos de mais de 1.000 pacientes, e mais de 100.000 tratamentos mundialmente até o momento.

Por meio dele, microesferas de vidro são infundidas diretamente no tumor e que carregam um radionuclídeo betaemissor puro, que emite radiação, realizando uma radioterapia seletiva interna da lesão, atuando de forma seletiva e diretamente no câncer hepático.

“No ano passado, as operadoras de saúde do Brasil passaram a ser obrigadas a realizar o pagamento dessa terapia, já que ela entrou no rol da ANS. Mas ela ainda não está disponível para pacientes do SUS”, afirma Zurstrassen. “Nos EUA, cerca de 14 mil pacientes recebem esse tratamento por ano. Trata-se de um controle da doença muito eficaz, já que a principal causa de morte nesses casos é a falência do fígado. Em consequência, você proporciona um ganho de sobrevida e uma melhora da qualidade de vida”.

Acesso à radioterapia no Brasil

O acesso a essas novas tecnologias no Brasil, de acordo com o vice-presidente da SBRT, ainda é desigual. Outro relatório da organização, denominado RT2030, aponta que o país tem cerca de 409 equipamentos de radioterapia – sendo 217 apenas na região sudeste. A recomendação da Organização Mundial da Saúde, no entanto, é de um acelerador linear para 250 mil a 300 mil habitantes. Nesse caso, seriam necessárias 708 máquinas em operação.

Esses equipamentos contam com formatos de tratamento variados, mas são poucos os que têm condições de utilizar processos como o IMRT ou VMAT com a complementação de IGRT, diz Gustavo Nader Marta: “Na saúde suplementar, normalmente temos um parque instalado muito mais bem capacitado e essas tecnologias estão mais disponíveis. Infelizmente, há uma grande disparidade quando falamos do SUS, que costuma contar com equipamentos mais simples e até obsoletos”.

A forma de reembolsar os serviços de radioterapia, na visão dele, é um dos fatores que dificulta o interesse dos prestadores de serviço em modernizar a radioterapia oferecida aos pacientes SUS. “Diferentemente de todo o processo de incorporação tecnológica que se tem aplicado na rede pública, a radioterapia é paga por pacote. O governo tem uma tabela que, além de defasada, não considera a técnica usada. Isso significa que o serviço que oferece a técnica mais antiga e rudimentar acaba recebendo o mesmo valor de quem investiu em uma tecnologia mais recente”, diz.

Outra questão é o investimento em infraestrutura, que pode ser bastante alto. Mas, nesse caso, é preciso fazer um equacionamento dos custos: com serviços capazes de oferecer tratamentos hiprofracionados – ou seja, em menos sessões –, as aplicações podem ser custo-efetivas. “Antes, fazíamos 25 aplicações em um tratamento de câncer de mama. Hoje, a média são 15 aplicações e, para pacientes em estágio inicial, às vezes 5 aplicações são suficientes. Se colocar na ponta do lápis, isso significa redução de custos e aumento de acessibilidade”.

Uma pesquisa sobre o tema, publicada na revista científica The Lancet, em 2022, considerando o cenário brasileiro de tratamento radioterápico em tumores mamários, mostrou que os custos médios por paciente para 25 frações, 15 frações e 5 frações são de US$ 2.699,20, US$ 1.711,98 e US$ 929,81, respectivamente.

Nesse caso, a economia de custo anual associada ao tratamento de 70% dos pacientes com tratamentos hiprofracionados com 15 frações e 30% dos pacientes com 5 frações, em comparação com o tratamento de todos os pacientes com 25 frações é de quase US$ 73 milhões.

Segundo o especialista, a radioterapia representa apenas cerca de 5% do custo unitário do tratamento do câncer por paciente no contexto do SUS no Brasil. E ainda contribui fortemente para o aumento dos anos de sobrevida nos pacientes que se submetem às terapias contra a doença, incluindo cirurgia e medicamentos (quimioterapia, terapias-alvo e imunoterapia).

Mesmo assim, o investimento na radioterapia ainda é precário. Em 2012, o próprio MS lançou em um plano de expansão com o objetivo de ampliar e criar novos serviços de radioterapia em hospitais habilitados no SUS, visando a redução dos vazios assistenciais e atender as demandas regionais de assistência oncológica.

O projeto previa a implantação de 100 soluções de radioterapia, contemplando equipamentos e infraestrutura. Mais de dez anos depois, 58 obras foram concluídas, 23 estão em execução e o restante está paralisado ou aguardando licitações e homologações.

O futuro da radioterapia

Sobre os próximos avanços, para Gustavo Nader Marta a resposta é a adoção da radioterapia baseada em partículas, já utilizada nos EUA: “Por aqui, a radiação é feita por feixe de fótons e os novos equipamentos geram a energia a partir de prótons, que entregam uma dose alta com maior precisão que despenca rapidamente, como uma cascata, reduzindo muito a dose que pode atingir tecidos e órgãos adjacentes”.

Ele afirma que existe uma expectativa de que a próton-terapia tenha um potencial maior de eliminar as células tumorais com menor toxicidade e que permitirá o controle de tumores mais resistentes em comparação com a radioterapia convencional. “É importante dizer que todos esses benefícios ainda precisam ser provados. E outra característica dos aceleradores de prótons é que seu custo de instalação, operacionais e de manutenção são muito mais elevados. O que deve atrasar ainda mais a chegada da tecnologia ao país”.

E para ​​Charles Edouard Zurstrassen, a expectativa é que cada vez mais os tratamentos sejam menos invasivos, mais focados e precisos: “Os tratamentos já ganharam muito mais eficácia e segurança nos últimos anos, principalmente na última década. E as inovações vêm caminhando para que essas características sejam cada vez mais aprimoradas. O pipeline futuro dessas terapias também deverá vir com outras e novas indicações para abarcar mais tipos de tumores”.

Ana Carolina Pereira

Jornalista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ao longo de sua carreira, passou por veículos como TV Globo, Editora Globo, Exame, Veja, Veja Saúde e Superinteressante. Email: ana@futurodasaude.com.br.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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