ATS para doenças raras: definição de critérios e participação social devem pautar futuro das avaliações

ATS para doenças raras: definição de critérios e participação social devem pautar futuro das avaliações

Inclusão de pacientes em toda a jornada de novas tecnologias de saúde – do desenvolvimento à avaliação de incorporação – exige diálogo com a sociedade e foco na qualificação e compreensão do sistema de saúde

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By Published On: 06/12/2023

Com o surgimento de novas tecnologias em ritmo acelerado, a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) tem integrado cada vez mais as pautas de discussão do setor, seja na esfera pública ou privada. A incorporação das novas terapias, especialmente no caso das doenças raras, por vezes esbarra em fatores como alto custo, baixa amostragem de dados de vida real e nos próprios critérios de análise definidos, que não englobam as particularidades de soluções focadas em condições raras.

Todos esses desafios culminam em um ponto que é praticamente consenso entre todos os atores do setor: a importância de se buscar o acesso para a população. “Inovações só fazem sentido se estiverem disponíveis à sociedade”, defende Marise Basso Amaral, diretora geral do Unidos pela Vida e pós-doutora em bioética.

O tema foi destaque na 2ª edição do Fórum Brasileiro de Avaliação de Tecnologias em Saúde para Doenças Raras, promovido pelo Unidos pela Vida – Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística, que aconteceu no fim de novembro e contou com a participação de diversos atores envolvidos nesse debate, como representantes do governo, da indústria e dos pacientes.

O encontro apontou a necessidade de reavaliar os dispositivos atuais de participação social na esfera de decisões relacionadas à ATS: a tendência é que o engajamento qualificado dos pacientes ajudará a moldar esse novo cenário. Afinal, segundo Verônica Stasiak, fundadora do Unidos pela Vida, “falar de ATS é, também, falar de histórias: por trás de cada usuário do sistema de saúde que se beneficia por uma nova tecnologia, há um universo de questões intangíveis, e experiências de vida real que devem ser consideradas, de fato, nos processos decisórios”.

Na prática, a voz do paciente é ouvida?

Quando se fala em pacientes portadores de doenças raras, que dependem de tratamentos que utilizam tecnologias complexas e, portanto, de alto custo, há diversos dilemas. Muitos dos critérios adotados pela ATS não se adequam à realidade destas condições. O levantamento de desfechos, por exemplo, é um dos pontos de impasse, já que muitos dos tratamentos têm como objetivo melhorar a qualidade de vida do indivíduo, e não proporcionar uma cura definitiva, como pontuou Stasiak:

“O impacto de se viver com a doença rara vai muito além da saúde, é sentido em todos os aspectos da vida tanto pelas pessoas que convivem com uma dança rara, quanto pelas famílias das mais de 300 milhões de pessoas com doenças raras em todo mundo. Embora seja direito de todo cidadão ter uma oportunidade justa de acesso aos cuidados relacionados à saúde e ao bem-estar, a comunidade rara enfrenta múltiplas vulnerabilidades, incluindo diagnósticos errados e tratamento desigual.”

Margareth Dalcolmo, pneumologista e Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), lembra que, no Brasil, cerca de 13 milhões de pessoas são portadoras de alguma doença rara. E não basta que apenas pacientes e familiares estejam engajados, é preciso chamar os outros atores para o debate, a fim de garantir acesso equalitário em todos os pontos da linha de cuidados dos pacientes raros. “Para alguns desses pacientes, já conseguimos ofertar assistência, mas para outros não. E nós precisamos disponibilizar uma linha de cuidado ideal que venha desde o diagnóstico”, salientou.

Para ela, um dos maiores exemplos neste sentido é a fibrose cística: “Hoje, temos um banco de dados de pacientes, com cerca de 6.400 pessoas vivas, algo que demorou para ser construído. Isso ajudou muito na aprovação da terapia pela Conitec, pois talvez seja a doença rara que atinge mais pessoas no Brasil das que temos conhecimento.”

Portadora de fibrose cística, a fundadora do Unidos pela Vida fez da sua jornada pessoal também um projeto de pesquisa. Stasiak analisou o processo de avaliação de incorporação de três medicamentos para o tratamento da doença pelo SUS. O objetivo era avaliar principalmente a metodologia de análise qualitativa dos relatos de vida real dos pacientes ouvidos nas consultas públicas. A consideração das evidências de vida real trazidas por pacientes que já utilizaram o medicamento ou que poderiam se beneficiar do seu uso já é prevista nos critérios estabelecidos pela Conitec, mas ainda enfrenta empecilhos.

“A contribuição com a experiência de vida real é um dado qualitativo. A pessoa compartilha o seu depoimento e isso tem que ser avaliado de modo qualitativo”, afirma Stasiak. “Porém, a literatura global aponta que os pacientes raramente são envolvidos como colaboradores ativos, e que essas perspectivas são raramente incluídas no processo de avaliação. Talvez porque sejam tidas como visões tendenciosas ou anedóticas. Ou, como também chegamos a ouvir dentro de uma plenária por um membro da discussão, é vista como apenas um relato.”

Qualificação da participação social

Durante o evento, foi apresentada em primeira mão a pesquisa “Retrato do cenário atual do engajamento social para incorporação de tecnologias no SUS”, encomendado pelo Instituto Unidos pela Vida e coordenada por Cristina Guimarães, pesquisadora e professora de Saúde Pública e Demografia na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE). A publicação traz um panorama nacional da participação popular na tomada de decisões em saúde nas três esferas de poder.

A ideia era observar como as organizações de terceiro setor atuam na participação social, quais as dificuldades e as demandas desses agentes populares, a fim de identificar pontos de aprimoramento para auxiliar na criação de estratégias que qualifiquem e estimulem a ampliação dessa participação. O estudo mapeou o perfil dessas organizações, o que elas fazem, quais patologias defendem e em quais poderes foram mais atuantes.

“Tivemos quase 100 respostas de diferentes associações, e isso foi muito positivo, porque não esperávamos uma participação tão grande. Tivemos uma grande representação regional, com instituições de praticamente todo o país. Mesmo assim, notamos um padrão de associações de pacientes mais concentradas nas regiões Sul e Sudeste, enquanto cinco dos sete estados do Norte não tiveram representantes. Isso é um reflexo importante também”, resgata Guimarães.

O cenário de expansão da participação social destaca ainda a necessidade de iniciativas que auxiliem a qualificar os indivíduos que estão inseridos ou desejam fazer parte dos debates sobre decisões de saúde, como ressalta a pesquisadora: “Embora muitos participem, as pessoas querem saber mais afundo sobre as diferentes estratégias, o que pode ser feito diferente. Há essa demanda por uma maior qualificação para ampliar controle e participação social.”

As organizações com foco em doenças raras foram maioria entre as respondentes, somando 68% do total. Outro dado que chamou atenção foi a formalização, já que 80% dos respondentes possuíam CNPJ, o que revela também uma preocupação com uma presença qualificada no debate público. “Quando você tem um CNPJ, você tem mais possibilidade de participar de alguns canais de participação social. Isso é importante inclusive editais de participação, para o financiamento de projetos. Dificilmente um coletivo vai conseguir participar ativamente se não estiver formalizado”, explicou Guimarães.

Os dados levantados corroboram com a percepção de uma postura cada vez mais participativa da população nos debates sobre saúde. As reuniões e encontros dos conselhos de saúde receberam a participação de 48% das associações, com 17% delas participando em todas as esferas: municipais, estaduais e nacionais. Dentre as demandas mais citadas, figuram o acesso a tratamentos, medicamentos e a tecnologias específicas para a jornada como um todo, como terapias nutricionais e demais cuidados.

Avanços recentes na ATS

Priscila Torres, jornalista e representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), foi diagnosticada com artrite reumatóide em 2006, e transformou sua dificuldade de acesso à informação de qualidade e tratamento adequado em motivação para se tornar uma patient advocate, termo utilizado para definir pacientes que se engajam nas discussões e decisões públicas relacionadas à doença que portam.

Ela lembra que, há alguns anos, um ponto visto com muita fragilidade na Conitec era a ausência da escuta do paciente dentro do processo de tomada de decisão. “Hoje nós temos a perspectiva do paciente, que é uma conquista muito grande para o controle social e até mesmo para os técnicos que avaliam as incorporações. É algo que estava fazendo falta”, completa.

Desde a sua criação em 2011, a Conitec tem implementado dispositivos que permitem a participação social de diversos atores, de pacientes e associações, a técnicos, profissionais de saúde, representantes da indústria e assim em diante. Andrea Brigida de Souza, coordenadora da Coordenação de Incorporação de Tecnologias (CITEC) do Ministério da Saúde, explica que isso é importante porque cada convidado contribui de uma maneira:

“Os profissionais de saúde trazem sua experiência clínica, tiram dúvidas dos membros do comitê. Temos também gestores do SUS que estão ali na ponta. Já os pacientes contribuem trazendo aspectos sobre a experiência com a condição de saúde, relatando-os aos membros do comitê, para que ela seja levada em consideração durante a discussão sobre essa incorporação. Quais foram os benefícios para a sua vida? Houve melhora de sintomas, de qualidade de vida, nas atividades diárias? Como foi o acesso?”

Instrumentos para mudança e o valor dos dados de vida real

Além da participação social, os próprios critérios de avaliação na perspectiva de incorporação de novas tecnologias de saúde para doenças raras demandam avaliação. Um exemplo prático disso é o perfil de estudos exigidos pela Conitec, já que obter amostragens maiores é uma dificuldade inata à raiz de condições raras.

Neste contexto, ao identificar o prejuízo que a lacuna de dados causava na busca por direitos à acesso à saúde para portadores da fibrose cística, o Grupo Brasileiro de Estudos de Fibrose Cística (GBEFC) passou a levantar dados de pacientes brasileiros – residentes ou não no país – e criou o Registro Brasileiro de Fibrose Cística, que conta com uma publicação anual desde 2009. A última edição, com dados de 2019 a 2020, revelou que há pelo menos 6.098 pessoas diagnosticadas com a doença no Brasil, das quais cerca de 3 mil realizam algum tipo de acompanhamento.

Luiz Vicente Ribeiro, professor livre-docente na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (FCMUSP) e pesquisador no Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein, que coordena o relatório anual do RBFC, salienta que mais do que apenas criar o registro de doenças raras, é preciso manter um trabalho consistente:

“O processo de criar o registro é relativamente fácil, o desafio é manter atualizado para o acompanhamento adequado. Por exemplo, quais são as variáveis importantes para esse registro? Porque quando você pensa em variáveis importantes clinicamente, é preciso levar em consideração que não necessariamente vai ser possível coletá-las na vida real. Se a coleta não é boa na primeira vez, na segunda o médico não vai conseguir e na terceira sequer vai tentar.”

Por isso, segundo ele, tão importante quanto ampliar a participação ativa dos pacientes e familiares nas decisões públicas sobre novas tecnologias e na criação de registros públicos, é dialogar com os profissionais de saúde sobre a importância de levantar dados como esses. “Uma das coisas mais importantes da construção do nosso registro desde o início foi a participação dos profissionais de saúde. Uma das maiores dificuldades de fazer o cadastro de patologias e doenças é porque os médicos têm que contribuir com essas informações, mas nem sempre têm acesso facilitado a esses dados”, reforça.

Mudança em curso nos critérios e precificação

O desafio da ATS não se restringe ao ambiente de saúde pública. A saúde suplementar também passa por um momento desafiador onde é preciso equilibrar os gastos para a sustentabilidade do sistema, sem deixar de ofertar o melhor tratamento disponível para os usuários. “Isso é uma demanda da sociedade. Antes, a inovação tecnológica de um tratamento não acontecia a cada dois anos. Hoje precisamos que, de alguma maneira, essas tecnologias sejam avaliadas quase que em tempo real”, salientou Laura Murta, biomédica e pós-graduada em Avaliação de Tecnologias em Saúde do Instituto de Efectividad Clinica y Sanitaria (IECS) e Head de Economia em Saúde na consultoria Origin Health.

Em 2022, a Lei 14.454/2022, que estabeleceu o rol de procedimentos e eventos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) como exemplificativo, mudou as regras para a incorporação pelos planos de saúde. Contudo, pacientes com doenças raras ainda precisam recorrer ao instrumento de judicialização com certa frequência para garantir o acesso ao tratamento recomendado.

“As doenças raras esbarram em algumas questões, como o caso das terapias de uso domiciliar, de uso oral, que acabam não se encaixando nesse formato apesar da recomendação positiva pela Conitec. Além disso, a ausência da possibilidade de incorporação retroativa também é um obstáculo para esses pacientes”, diz Murta.

Outro desafio ao abordar a precificação de terapias avançadas para doenças raras é encontrar caminhos de como medir a custo-efetividade dessas novas alternativas. Para Murta, a participação dos pacientes ao longo de todo esse processo tem se mostrado cada vez mais a melhor estratégia. “Ouvir as pessoas para entender o que é prioridade, qual desfecho importa, como algo precisa ser medido no estudo. A ideia é engajar o paciente desde o começo, para que quando chegar o processo de tomada de decisão, ele tenha o total conhecimento de como tudo isso foi produzido e possa contribuir com a sua própria experiência.”

A atualização das diretrizes e regulamentações que controlam a incorporação de novas tecnologias em saúde foi outro tópico de destaque no encontro. Além de não contemplar possibilidades como a inclusão tardia de terapias e da desincorporação de terapias superadas por outras mais recentes e com melhor custo–efetividade, há a questão da precificação que, segundo membros da indústria, se torna um percalço na hora de baratear os custos de chegada dessas novas alternativas, o que impacta diretamente no acesso – ou falta dele – à população.

“O valor de uma tecnologia é avaliado levando em consideração todo o seu ciclo de vida”, detalhou Murta. “Então, usamos isso na precificação, na desincorporação e na incorporação. O grande objetivo é que a gente possa auxiliar esse gestor de saúde em uma tomada de decisão que seja boa para o sistema no sentido de sustentabilidade e de equidade e eficiência. Ou seja, oferecer o melhor de tudo aquilo que se pode pagar.”

Limiar de custo-efetividade

Dentro desse cenário, o limiar de custo-efetividade é um parâmetro-chave. Em 2022 o Brasil adotou o padrão de 1 PIB per capita, traduzido no valor de R$ 40 mil por QALY (número de anos com qualidade de vida, em tradução livre), medida adotada para a avaliação de ATS. No caso de doenças raras e demais quadros que se encaixam nas exceções do limiar, o limite seria de 3 PIB per capita, ou R$ 120 mil reais. Mas os fármacos que têm revolucionado a maneira como doenças raras são tratadas chegam a atingir a casa dos milhões. Embora não seja cravado como um teto definitivo, especialistas presentes no debate defenderam a avaliação de uma ATS com critérios adaptados para essas condições.

“A gente já começa a ver algumas questões de equidades sendo trabalhadas. Temos como flexibilizar este limiar de 40 mil reais em função de determinadas condições que afetam a população, como é o caso das doenças raras. Mas, para avaliar a questão de equidade dentro do custo-efetividade, ainda não há uma metodologia bem definida”, analisou Eduardo Freire de Oliveira, doutor em farmácia (USP), pesquisador da Fiocruz e consultor do Ministério da Saúde.

Ele citou como exemplo justamente o caso da incorporação no SUS do tratamento para pacientes com fibrose cística. Embora o valor ultrapassasse o limiar para doenças raras – com um custo de R$ 1,57 milhão –, é uma tecnologia que tem um impacto muito grande na história natural da doença. “Um fator que foi preponderante para que chegasse a uma recomendação favorável”, completa.

Daniela Marreco Cerqueira, secretária-executiva do CMED, destaca que, apesar da inclusão de novos critérios nos processos de registro e de incorporação das tecnologias, como o aceite de dados de evidência de vida real, a adoção ainda não ocorreu nas normas de precificação: “Precisamos trabalhar na revisão da normativa de precificação de medicamentos, para que essa norma converse com os critérios de registro. Senão, haverá o registro, mas não vou conseguir precificar. Nosso modelo de precificação foi estabelecido em 2004, em um cenário em que a gente não tinha ainda medicamentos biológicos ou terapias gênicas. E hoje, nessa nova realidade de medicamentos, precisamos avançar nos nossos mecanismos de precificação para que possamos contemplar as inovações que surgiram nos últimos anos.”

Isabelle Manzini

Graduada em jornalismo pela Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação. Atuou como jornalista na Band, RedeTV!, Portal Drauzio Varella e faz parte do time do Futuro da Saúde desde julho de 2023.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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