Atesta CFM: após críticas sobre possível monopólio, segurança dos dados e competências do conselho, plataforma tem início suspenso
Atesta CFM: após críticas sobre possível monopólio, segurança dos dados e competências do conselho, plataforma tem início suspenso
Resolução que determina validação e armazenamento obrigatório de atestados médicos em banco de dados do conselho foi suspensa
A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que institui a plataforma Atesta CFM como sistema oficial e obrigatório para emissão e gerenciamento de atestados médicos, foi suspensa na segunda-feira, 4. Após ação ajuizada pelo Movimento Inovação Digital (MID), o Tribunal Federal Regional da 1ª Região (TRF-1) considerou que a norma invade as competências legislativas da União e que o CFM excedeu sua autoridade regulatória. Em contrapartida, o conselho afirmou em nota que prepara recurso contra a decisão judicial, “com base em fundamentação técnica, ética e legal”. A liminar é válida até o julgamento do mérito da ação.
A plataforma começaria a ser testada na terça-feira, 5, e seria considerada obrigatória a partir de março de 2025. Contudo, a resolução enfrenta críticas. A solicitação do MID alega que a norma é ilegal, uma vez que a Lei 14.063/20 atribui ao Ministério da Saúde e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a competência para regulamentar documentos de saúde. Segundo Ariel Uarian, diretor de políticas públicas do MID, a regulamentação do CFM foi elaborada de forma unilateral, sem diálogo com a sociedade, desconsiderando os impactos e implicações práticas para o sistema de saúde brasileiro e impondo uma burocracia obrigatória a todos os médicos. “Além das inseguranças jurídicas, nossa preocupação é que a medida imposta pelo CFM não seja a mais adequada ou razoável, considerando os riscos e impactos que ela acarreta,” diz o diretor.
A decisão judicial foi tomada pelo juiz Bruno Anderson Santos da Silva, da 3ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, que considera que a resolução pode representar concentração indevida de mercado e fragilizar o tratamento de dados sanitários e pessoais de pacientes. O magistrado também entendeu que havia risco de dano irreparável, e que a urgência se justifica pois a resolução representa uma mudança significativa na prática médica.
“Pode representar (…) a eliminação aparentemente irrefletida dos atestados e receituários médicos físicos, quando se sabe que a realidade de médicos e municípios brasileiros exige uma adaptação razoável e com prazos mais elevados para a completa digitalização da prática médica. Diante desse cenário, ao menos nesta seara não exauriente, entendo que o CFM exorbitou de seu poder regulamentar ao disciplinar a emissão e o gerenciamento de atestados médicos físicos e digitais em todo o território nacional”, afirmou o juiz na liminar.
Responsabilidades do conselho e criação de monopólio
Conforme a Lei nº 3.268/57, o conselho federal e os conselhos regionais de medicina são os órgãos supervisores da ética profissional, julgadores e disciplinadores da classe médica. Sua atribuição é de zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da medicina e pelo prestígio e bom conceito da profissão e dos que a exerçam legalmente.
Nesse sentido, a advogada Renata Rothbarth, sócia de Life Sciences, Digital Health & Healthcare da Machado Meyer Advogados, expressa que não é a primeira vez que o CFM extrapola as suas atribuições. Para ela, a discussão das competências do conselho já foi levantada no começo da popularização da telemedicina e na criação da plataforma de validação de prescrições eletrônicas do CFM.
“O Atesta CFM é mais um episódio dessa movimentação recorrente do conselho de regular temas que não lhe dizem respeito. Na lei não existe nada que dê ao CFM atribuições para atuar sobre a emissão de documentos médicos. Você está criando uma obrigação regulatória sem que essa autoridade de fato tenha competência para tratar desse assunto e isso gera uma série de inseguranças”, explica a advogada.
Para especialistas, uma das margens que a resolução abre é a possível criação de um monopólio ao obrigar os médicos a validarem os atestados em uma única plataforma. Segundo o diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Aith, ao concentrar a emissão de documentos médicos na plataforma o CFM desconsidera os mecanismos de validação do Ministério da Saúde, do Ministério do Trabalho e do setor privado: “Eles obrigam as plataformas do mercado privado a aderirem ao Atesta CFM mediante pagamento, então eles querem capitalizar em cima de um monopólio criado artificialmente. Isso acaba com o mercado de documentos digitais de saúde.”
Pouco antes da decisão judicial, o CFM realizou uma coletiva de imprensa para falar sobre o lançamento da plataforma. Na ocasião, o Futuro da Saúde questionou o conselho sobre as críticas apresentadas acima. Em resposta, o conselho ressaltou a gratuidade da plataforma para os médicos e os pacientes e para a validação por empresas e afirmou que há falta de entendimento sobre o processo de validação dos documentos e da criação da plataforma. “Na nossa opinião isso é uma falácia, nós temos um corpo jurídico aqui que fez uma análise e jamais nós queremos extrapolar as nossas prerrogativas. Nós normatizamos a medicina brasileira e esse sistema vem para proteger não só o médico, mas também a sociedade de fraudes. Esse tipo de colocação, eu lamento, nós não podemos aceitar”, disse o presidente do conselho, José Hiran da Silva Gallo.
Em nota, o CFM informou que se prepara para interpor recurso contra a decisão judicial e reafirmou que atuou com base em sua competência legal e em respeito aos princípios da administração pública para o desenvolvimento da plataforma. “Além disso, por permitir integração a outras plataformas já usadas por médicos, não representa qualquer tentativa de monopólio”, argumentou.
Outro ponto levantado pelos especialistas em relação à plataforma é a falta de integração com a Rede Nacional de Dados em Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Em nota enviada ao portal de notícias Jota, o Ministério da Saúde afirmou estudar a possibilidade de também ingressar com uma ação judicial contra a resolução. A pasta informou que não participou dos debates para a formulação da resolução do CFM, e que no SUS já existem normas e fluxos estabelecidos para a emissão de atestados médicos e odontológicos.
“A criação do Atesta é uma inversão de lógica, é deixar o Ministério e o SUS ficarem subordinados ao CFM. É uma espécie de afronta à política nacional de saúde que coloca em risco o funcionamento de programas muito importantes de saúde digital pública”, salienta o professor Aith, da USP.
Preocupação com a segurança dos dados no Atesta CFM
Uma insegurança jurídica causada pela resolução é a garantia do sigilo e da proteção dos dados dos pacientes. A advogada Rothbarth relata que essa questão traz bastante preocupação para o setor, visto que a norma não esclarece totalmente como esses dados serão utilizados. “Em termos de dados digitais essas informações são ouro. Então proteção de dados, direitos de intimidade, privacidade, tudo isso vai ralo abaixo com essa resolução, que possui uma péssima técnica legislativa. Além disso, foi criado um comitê de acompanhamento dessa plataforma, que é só de médicos e servidores do CFM. Quem garante que a sociedade confia neles? Por que um conselheiro eleito pela corporação médica vai ser legítimo para guardar um dado sensível meu?”, questiona.
Na ação judicial o MID também apresentou ressalvas em relação à proteção dos dados. Conforme o diretor Uarian, a medida também tem como objetivo assegurar a segurança e o sigilo das informações dos pacientes, além de defender a autonomia e liberdade dos médicos. “O armazenamento de dados em uma base única nacional contraria as discussões sobre segurança de dados e interoperabilidade. Concentrar dados em um só local aumenta o risco de brechas de segurança e de instabilidade”, acrescentou.
Durante a coletiva de imprensa, o CFM apenas relatou que a plataforma está em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e que ela é um dos pilares para a criação da ferramenta. O conselho não informou quais instrumentos serão utilizados para proteger as informações em caso de eventuais vazamentos, invasões ou usos indevidos do banco de dados.
Combate a atestados falsos
Com o aumento da telemedicina a emissão de documentos digitais cresceu — de acordo com um levantamento realizado pela Saúde Digital Brasil (SDB), quase 5 milhões de atestados digitais foram emitidos entre setembro de 2023 e setembro de 2024, com aproximadamente 40% das consultas resultando em documentos de afastamento. Segundo o CFM, a criação da plataforma surgiu a partir do problema de falsificação de atestados no Brasil. A autarquia afirma que a falsificação desses documentos drena bilhões de reais da economia nacional, compromete a saúde pública e alimenta o crime organizado, colocando em risco a segurança e o bem-estar do país.
No entanto, conforme Uarian, é possível garantir a autenticidade de documentos sem exigir o compartilhamento compulsório de dados dos pacientes. “Atualmente, atestados médicos assinados podem ser verificados por meio da ferramenta Validar ITI, que fornece informações sobre o autor, número do conselho, data e hora de emissão, além de confirmar a integridade do arquivo — tudo isso sem necessidade de armazenamento de dados, preservando a privacidade do paciente,” explica o diretor.
Para auxiliar no combate a atestados falsos, a SDB preparou uma cartilha para ajudar a população a identificar atestados fraudulentos. O documento aborda pontos essenciais, como os requisitos obrigatórios de segurança e as diretrizes para validação de assinatura digital, detalhando como interpretar diferentes status de validação e recomendando ações para documentos que não atendam aos padrões de conformidade.
“Esse guia tem como principal finalidade educar a sociedade sobre o uso responsável e seguro das ferramentas digitais de validação de atestados, que já estão disponíveis gratuitamente, sem necessidade de investimento adicional. Ele apresenta orientações claras e práticas, como os pontos de atenção e informações obrigatórias nos atestados, além de um passo a passo para validar assinaturas via ITI. Também inclui orientações sobre os possíveis resultados de validação e como proceder em casos de assinaturas que não estejam em conformidade”, explica Carlos Pedrotti, presidente do Conselho de Administração da SDB e gerente médico do Centro de Telemedicina do Hospital Israelita Albert Einstein.
Recebar nossa Newsletter
NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.