ANS e CNJ firmam acordo para qualificar decisões em processos de judicialização da saúde suplementar
ANS e CNJ firmam acordo para qualificar decisões em processos de judicialização da saúde suplementar
Parceria prevê emissão de notas técnicas para subsidiar decisões judiciais, mas especialistas questionam impactos do acordo e apontam possíveis conflitos de interesse
A definição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre regras mais rígidas para o fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo por meio de processos judiciais produziu um efeito de aproximação de órgãos públicos com o Judiciário. Após a decisão e assinatura de um protocolo de intenções de parceria entre o Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nesta última semana, foi a vez da saúde privada consolidar sua aproximação com a justiça. Em 21 de novembro, durante o III Congresso do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) assinou um acordo de cooperação técnica com o CNJ com o objetivo de prevenir a judicialização no setor.
O documento assinado pelo presidente do CNJ e do STF ministro Luís Roberto Barroso e pelo presidente da ANS Paulo Rebello Filho visa garantir celeridade no julgamento de processos e oferecer subsídios técnico-científicos aos magistrados. A ideia é expandir o modelo que já auxilia o julgamento de processos judiciais que envolvem o Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, os juízes que trabalham nesses processos contam com notas e pareceres médicos elaborados com base em evidências científicas emitidos por Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NATJUS) para tomar decisões com um olhar mais amplo.
Agora com o acordo, a ANS vai financiar a emissão de notas para embasar os julgamentos que envolvam a saúde suplementar e abastecer o e-Natjus, plataforma que reúne essas informações. “Temos a parceria com o Hospital Albert Einstein para as notas do SUS e agora vamos fazer o mesmo com os litígios contra os planos de saúde. A ANS vai arcar com os custos das notas técnicas e contratar universidades para elaborá-las de modo a facilitar a vida dos juízes em geral e para que o juiz decida com base em uma assessoria técnica e qualificada e não [com base] em achismo”, explicou o ministro Barroso durante o evento.
Segundo a agência, o próximo passo será a criação de um plano de trabalho conjunto que permita uma maior comunicação entre os órgãos e o compartilhamento de informações como documentos, dados, estudos e pesquisas. Com duração inicial de 36 meses, o acordo estabelece a utilização de métodos consensuais para resolver litígios e o desenvolvimento de estratégias conjuntas voltadas para as principais causas de conflitos no setor. A execução da parceria ficará a cargo de um grupo de trabalho composto por representantes das duas entidades. Também serão produzidos relatórios periódicos para monitorar os resultados e assegurar a eficácia das ações realizadas.
Conforme o diretor-presidente da ANS Paulo Rebello, o acordo vem para buscar soluções, diminuir demandas e concretizar a preocupação do setor com a judicialização. “A saúde suplementar é um desejo coletivo da sociedade baseada no mutualismo. A saúde tem seu preço, mas a medicina também tem o seu custo cada vez mais alto e é através do esforço coletivo que conseguimos custear todos os procedimentos que temos. Esse acordo é uma pequena contribuição para que o setor consiga sobreviver hoje e no futuro”, afirmou Rebello.
Crescimento da judicialização e críticas ao acordo
A judicialização da saúde suplementar está em crescimento. De acordo com o Painel da Judicialização da Saúde, elaborado pelo CNJ, mais de 250 mil novos processos ingressaram no sistema judiciário em 2024, um aumento de aproximadamente 7,7% em relação a 2023. Além disso, mais de 348 mil processos estavam pendentes de julgamento até outubro deste ano. Ainda de acordo com o painel, cerca de 80% dos processos resultam no atendimento da demanda.
Diante da extensão do problema, especialistas acreditam que o acordo firmado não trará as soluções esperadas. Para o diretor do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Aith, a ANS não deveria estabelecer uma cooperação com o Judiciário, mas sim focar na regulação do setor privado para reduzir a judicialização. Isso porque a maioria dos processos judiciais são por negativa irregular de cobertura, aumento de preço dos planos de saúde e exclusão de clientes sem justificativa. “Essas são questões que a ANS teria capacidade de resolver administrativamente, então, para mim, causa um pouco de estranheza essa cooperação, já que o Judiciário só está sendo chamado porque a agência reguladora não trabalha direito”, comenta o professor.
Além disso, existe uma preocupação com um possível conflito de interesses diante da emissão de notas técnicas financiadas pela ANS. O advogado sanitarista e conselheiro de advocacy Tiago Farina Matos concorda que as falhas da agência são responsáveis pelo aumento da judicialização e, por isso, a existência de NATJUS pagos pela ANS podem possuir um viés. “Vejo um conflito de interesses que não deveria acontecer. Acredito que os NATJUS deveriam ser órgãos financiados exclusivamente pelo Judiciário, sem vínculo com partes que podem também ser causa da ação judicial. Esses pareceres podem ter uma tendência a prestigiar as decisões da ANS, e as decisões da agência muitas vezes são equivocadas”, afirma.
Matos destaca que o acordo de cooperação foi aprovado com urgência e sem a elaboração prévia de um plano de trabalho, portanto não houve uma avaliação interna sobre as condições para o cumprimento das medidas. Para o advogado, isso demonstra que a agência quer aproveitar a decisão do STF e o interesse do Judiciário no assunto para fazer uma aproximação. “Esse acordo nasce em um ímpeto da ANS de aproveitar a janela de oportunidade da decisão do STF em relação ao SUS para gerar um movimento para que a mesma coisa aconteça na saúde suplementar. A judicialização é um problema que acontece há 20 anos. Não se poderia esperar mais um mês para estabelecer o plano de trabalho?” questiona.
O professor Aith também expressa ressalvas em relação ao financiamento das notas técnicas. Para ele, a forma de operacionalização do acordo precisa ficar mais transparente para a sociedade, e os recursos destinados poderiam ser melhor utilizados. “Me espanta a ANS patrocinar essa emissão, em vez de investir em tornar robusta a sua estrutura e o seu poder regulatório para dar uma resposta mais adequada que diminua a judicialização na base”, diz.
A articulação entre o Executivo e o Judiciário, que preocupa especialistas, deve aumentar. Durante o Fonajus, o Ministério da Saúde anunciou que também trabalha no desenvolvimento de um acordo de cooperação técnica com o CNJ para o setor público. O objetivo é firmar uma parceria ainda mais abrangente do que o protocolo de intenções, já assinado no início deste mês, que visa capacitar a Política de Incorporação de Tecnologias em Saúde. “Temos um caminho muito positivo a percorrer e neste ano avançamos de fato com as resoluções do STF e com as propostas de avanço na cooperação técnica. Esperamos com esse acordo ampliar nossa compreensão sobre esse processo e contribuir na formação tanto no campo da saúde, quanto no jurídico, vejo como uma via de mão dupla” disse a ministra da saúde Nísia Trindade na ocasião.
Para Aith, os acordos de cooperação podem trazer benefícios para qualificar as decisões judiciais, no entanto não contemplam o consumidor e a sociedade. “Eu acho que temos que qualificar a participação do Poder Judiciário nesse processo. Mas ele não pode simplesmente abraçar tudo aquilo que o Poder Executivo disser e esquecer que tem ali uma necessidade de saúde real, uma pessoa, uma vida que está correndo risco. Me parece que os fortes estão se acertando para deixar o fraco ainda mais fraco”, observa.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.