Ana Estela Haddad, secretária de saúde digital do Ministério da Saúde: “2025 será ano de concretizar o que construímos até agora”
Ana Estela Haddad, secretária de saúde digital do Ministério da Saúde: “2025 será ano de concretizar o que construímos até agora”
Em novo episódio de Futuro Talks, a secretária Ana Estela Haddad aborda os avanços e desafios da saúde digital no SUS
Após dois anos estruturando a área de saúde digital, com o desenvolvimento do diagnóstico situacional e elaboração de planos de ação – e com o reforço de um orçamento inédito e específico para o segmento – 2025 deve ser o ano em que o governo brasileiro concretizará diversas ações no campo da digitalização, interoperabilidade de dados e registros de saúde dos pacientes. Essa é a perspectiva que Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI) do Ministério da Saúde, compartilhou no novo episódio de Futuro Talks.
À frente da SEIDIGI, ela tem coordenado as estratégias de saúde digital do governo nos últimos dois anos e, neste período, procurou sedimentar esse caminho com a estruturação de ações como o diagnóstico de maturidade dos municípios e da atenção básica de saúde e da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Agora, segundo ela, é preciso avançar na implementação dos planos no terceiro ano de mandato para, efetivamente, trazer melhorias para os usuários do sistema de saúde.
Ao longo do episódio, Ana Estela também falou sobre o índice de maturidade digital usado para avaliar Estados e municípios, a interoperabilidade de dados no sistema público de saúde e na saúde suplementar, o papel da telessaúde e telemedicina e a inteligência artificial. Ela destacou, por exemplo, que a interoperabilidade de registros de pacientes traz vantagens tanto para o cidadão quanto para a rede de saúde ao garantir uma continuidade no atendimento e cuidado à saúde.
Confira o episódio completo:
Temos acompanhado a RNDS, o diagnóstico da rede de atendimento, da maturidade digital dos municípios, temos visto esse olhar para interoperabilidade, o Meu SUS Digital, tudo isso. Para começar, eu quero o seu olhar: para onde vai a saúde digital, olhando para o SUS, em 2025?
Ana Estela Haddad – Olha, 2025 é um terceiro ano de mandato, então é um ano muito importante e estratégico. É um ano das entregas se tornarem mais visíveis e concretas. Os dois primeiros anos foram de muito trabalho e um trabalho, primeiro, de diagnóstico interno, estruturante, depois um diagnóstico que é de reorganização, de trabalhar algumas normas, diretrizes, regulamentação, de combinar com os parceiros, porque a saúde no SUS é tripartite, é desenvolvida sempre numa parceria entre o governo federal e os entes federados, estaduais, municipais. Então, tem todo um processo de pactuação e nós tivemos processos indutores importantes ao longo de 2024, nós caminhamos muito em 2024, então a gente acredita que 2025 é um ano de concretização, de entregas se tornarem mais visíveis, principalmente para o cidadão, para a cidadã, e isso, enfim, representar melhorias na qualidade, no acesso à saúde.
Quando você fala dessas entregas para 2025, eu sei que tem muita coisa correndo no paralelo, mas dá para eleger uma com maior expectativa de começarmos a ver esse impacto em 2025 para o cidadão, chegando de verdade na ponta?
Ana Estela Haddad – Sim. Eu acho que, para o cidadão, a grande entrega da Secretaria de Informação e Saúde Digital é o Meu SUS Digital. É o super APP do SUS, a porta de entrada digital para o cidadão. Nós, de 2023 para 2024, já trouxemos 30 novas funcionalidades que não estavam presentes anteriormente, que não existiam. Agora isso vai se ampliar numa lógica mais perceptível, com algumas entregas com valor de uso maior para o cidadão, que começam a acontecer em 2025.
Quando olhamos para o Meu SUS Digital, pelo menos do ponto de vista do cidadão, acho que o grande marco foi em relação a ter informações sobre vacinas tomadas dentro do aplicativo. Mas existe um sonho, de ter acesso a dados da nossa saúde em um aplicativo, sem a necessidade de ter o papel. Nós estamos indo para esse lugar de, por exemplo, ter exames, o relatório do médico, prescrições, no aplicativo? É mais ou menos isso?
Ana Estela Haddad – Certamente, o que já é mais conhecido, de maneira mais ampla, começou com os certificados de vacinação e exames laboratoriais da covid. Então, até 2022 era isso que se tinha, não era ainda o Meu SUS Digital, tanto é que ele foi todo reformulado, não apenas o nome. O Meu SUS Digital é de 2023. Então, nós começamos a partir do que se tinha, que era o certificado e exames laboratoriais da covid e mpox. E, de lá pra cá, hoje nós temos, em termos da vacinação, o legado dos últimos 50 anos, o que estava registrado em sistemas eletrônicos, já está também no Meu SUS Digital. Hoje temos uma boa parte da caderneta de saúde digital. Agora, aquilo que estava em papel, o cidadão precisa levar na Unidade Básica de Saúde (UBS) para ser registrado no sistema e estar espelhado no Meu SUS Digital. A gente já tem uma outra funcionalidade ativa que não é universal, porque ela aparece para os cidadãos e cidadãs que utilizam as UBS, onde tem prontuário eletrônico, que é o registro de atendimento clínico. Então, hoje o cidadão que já é atendido numa UBS, depois desse atendimento, fica registrado no Meu SUS Digital a data que ele foi atendido, qual foi o atendimento que ele recebeu. Tem algumas informações básicas sobre esse atendimento clínico, isso já está disponível em um estado. Estamos nos preparando para que isso aconteça com outros estados, mas o estado da Bahia foi pioneiro na integração de dados entre atenção especializada e atenção primária. Como eles adotaram, de forma pioneira, o prontuário do AGHUse, que é um dos prontuários eletrônicos que estamos recomendando, que é da rede EBSERH, (temos uma parceria com a EBSERH e com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, porque nós temos duas versões, o AGHUX e o AGHUse, mas são dois prontuários eletrônicos que têm uma raiz comum), e é um prontuário hospitalar, que já tem mais de quase 20 anos de desenvolvimento. Ele é open source, código de fonte aberto, e é gratuito. Então, a economia para o SUS que isso representa em relação a um prontuário proprietário é muito grande. E, ao mesmo tempo, para criar sustentabilidade, estamos criando as comunidades de desenvolvimento. Então, a contrapartida da Secretaria Estadual ou hospitais que queiram adotar esses prontuários é ter uma equipe de TI participando da comunidade de desenvolvimento para que faça as adaptações para o seu uso e também contribua com o avanço do prontuário, tornando ele sustentável, mas ele já tem vários modos, ele é bastante maduro.
Conte mais detalhes sobre o case dos dados da Bahia.
Ana Estela Haddad – Então, a Bahia adotou a AGH-USE, já foi internalizado pelo DataSus, e ele está interoperável com a Rede Nacional de Dados em Saúde. Com isso, como a Secretaria Estadual, todos os seus hospitais adotaram e implementaram esse prontuário, nós conseguimos, pela primeira vez, integrar os dados da atenção especializada com a atenção primária. O que isso significa? Vou citar um exemplo: uma gestante foi na UBS em Vitória da Conquista, no interior da Bahia, e fez todo o seu pré-natal, tomou as vitaminas que deveria tomar, foram registradas no prontuário dela todas as ocorrências do período gestacional. Aí ela deu entrada no hospital para dar à luz, e esse hospital usa o AGHUse, que é esse prontuário. Então, ele vai abrir o prontuário e, através da plataforma SUS Digital, ele vai conseguir acessar os dados clínicos das nove consultas de pré-natal. Então, ela vai ter um atendimento mais seguro e com continuidade. Não importa onde ela for e quem vai atendê-la, vai ter esse histórico clínico, que é o que chamamos de continuidade do cuidado. Então, é isso que estamos entregando. O veículo de entrega é o Meu SUS Digital, o aplicativo. Mas, por trás do que o aplicativo está oferecendo tem muita coisa construída no espaço real dos serviços de saúde e nas ações estruturantes que o Ministério da Saúde vem desenvolvendo com a Rede Nacional de Dados em Saúde que é a nossa plataforma de interoperabilidade. Ela garante que isso se torne possível, num país continental como o Brasil, num sistema de saúde público de acesso universal como é o SUS, que é quase um milagre, que isso possa acontecer.
Me veio à mente todo o mapeamento que vocês fizeram em termos da maturidade digital dos municípios e o quanto eles estão integrados ou não à RNDS. Dentro desse diagnóstico, uma conclusão que mostra que apenas 21 macro-regiões, ou 19%, afirmaram estar totalmente integradas à RNDS. Eu conecto com o que você trouxe desse ponto de vista — Brasil de dimensões continentais e do quanto às vezes algumas regiões estão mais maduras do que outras. Qual é a dificuldade de acelerar isso para que todas as regiões consigam ter um histórico como esse que você trouxe da Bahia?
Ana Estela Haddad – Nós estamos acelerando e muito. Hoje de manhã eu participei do que chamamos de Câmara Técnica do CONASS, que é o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, a Câmara Técnica de Informação e Saúde Digital, que, aliás, até a Câmara Técnica mudou o nome para acompanhar o escopo criado pelo Ministério da Saúde pela ministra Nísia dessa secretaria, porque antes essas coisas estavam um pouco separadas. Então, já houve um movimento de agregação e as áreas das secretarias estaduais, muitas, passaram a espelhar a SEIDIGI, a Secretaria de Informação e Saúde Digital, criando seus departamentos e suas áreas de maneira estratégica, e não mais só operacional como era antes. Então, nós criamos uma espécie de framework, uma moldura, digamos, um mapa conceitual com quatro dimensões principais, e já estamos trabalhando. Nós começamos com oito estados-piloto, para um movimento que chamamos de federalização da Rede Nacional de Dados em Saúde. Então, isso era uma demanda antiga dos secretários estaduais, de poderem receber e consumir os dados que são descarregados na RNDS no recorte de cada estado. Então, a Bahia foi um estado que começou primeiro, depois veio Goiás, Piauí, e estamos com oito estados trabalhando juntos. Ao longo de um ano eles trabalharam, nós fizemos oficinas em cada um desses estados, de tal forma que os estados mais avançados foram servindo de referência e norte para os demais. E hoje nós vimos a apresentação desses oito estados, aonde cada um já chegou, e é muito bonito, muito impressionante de ver todos apropriados do processo e o trabalho que está acontecendo em rede. Alguns desses estados estão construindo as suas redes. A Reds é a rede da Bahia, rede estadual de dados em saúde, Santa Catarina criou a rede catarinense de dados em saúde, interoperável com a Rede Nacional de Dados em Saúde. Então, esse movimento de um amadurecimento acelerado já está acontecendo no âmbito do programa SUS Digital, não só pelos recursos que injetamos esse ano, da ordem de R$ 464 milhões, das normativas que nós estabelecemos deles fazerem o diagnóstico situacional, aplicarem o Índice Nacional de Maturidade para a Saúde Digital. Agora estão elaborando os planos de ação e até vinha a pergunta, “ah, mas a gente pode incluir esse movimento da federalização no plano de ação?” e a gente diz: claro que sim, isso é parte do movimento de transformação digital que vocês estão fazendo e tudo que é transformação digital deve estar no plano de ação. E nesse encontro que nós fizemos com essa apresentação, estavam as áreas de TI dos 27 estados. Então, isso tudo já está servindo de referência para todos, essa aceleração que você pergunta está acontecendo.
É a primeira vez que a gente tem, de fato, um orçamento dedicado para a saúde digital, não é? Isso faz diferença nesse movimento de aceleração?
Ana Estela Haddad – Exatamente, faz toda diferença. Claro que se eu tivesse só o recurso e não tivesse um plano, de nada adiantaria. Mas, tendo o recurso e tendo, principalmente, um plano de ação, uma regulamentação que caminha numa direção de processo indutório, aí, sim, o resultado vem. Porque já existe uma percepção e, aliás, uma grande expectativa em todo o país pela transformação digital. É aquilo que todo mundo quer. Você pergunta, todo mundo quer. Mas quer como? De que jeito? Então, hoje, há uma preocupação deles quando recebem o recurso, também não é só o recurso, é a orientação. Nós temos uma equipe de apoiadores que vão aos estados, em contato conosco o tempo todo, para orientar o processo, além do trabalho que a gente faz em interação com CONASS e com CONASEMS, que representam as secretarias de saúde de Estados e municípios.
E hoje, quais os principais desafios na sua percepção? Porque eu entendo que há o recurso, há o plano que está desenhado, há o interesse. Como você bem disse, todo mundo quer a transformação digital, não se fala de outra coisa quando se olha para o setor de saúde e se enxergam os benefícios disso. Ao mesmo tempo, eu entendo também que não é só fácil, não é só simplesmente ter o plano e o recurso. Eu queria que você contasse um pouco dos desafios para implementar isso, para acelerar isso de uma forma mais rápida e ter essa adesão.
Ana Estela Haddad – O desafio é de várias naturezas, são vários desafios e são camadas de desafios. Tem alguns desafios ainda, por exemplo, de infraestrutura e rede. Quando vamos para regiões mais remotas do país, a região Norte, parte do Nordeste, ainda há desafios até de conectividade, que viemos enfrentando hoje de uma maneira muito melhor até do que quando começamos a telessaúde em 2006. Ali era um grande desafio, hoje é muito menor, e hoje temos a tecnologia mobile, dos celulares e isso tudo mudou e melhorou muito de lá para cá. Nós temos o desafio da inequidade, da imensa desigualdade no nosso país. Você tem cidades, estados que estão lá na frente, mas dentro de um mesmo território, às vezes, você tem imensas desigualdades. A transformação digital não vai poder ser melhor, muito melhor, do que aquilo que conseguimos construir em termos do modelo da rede de atenção. Então, precisamos desenhar primeiro o modelo de atenção que queremos implementar, ter os profissionais, os serviços, a infraestrutura, o funcionamento em rede, o complexo regulador, para que o desenho do digital possa realmente fazer com que o seu potencial gere resultados. O digital não faz mágica, se todos esses outros requisitos não forem atendidos antes. Até por isso construímos esse processo em três etapas. A gente não podia ter uma receita única para todos, “olha, faz assim”, não, cada um está num ponto, cada um tem uma situação. Por isso que começa com o diagnóstico situacional da rede de atenção. O digital vem num segundo momento. Bom, e o que você já tem do digital? Você já tem prontuário eletrônico? Você tem sistemas informatizados? Você capacitou as suas equipes? Você tem uma área de governança de TI? Você tem um encarregado de dados que cuida da Lei Geral de Proteção de Dados nos seus sistemas?
“Por isso que o índice de maturidade digital também tem sete dimensões diferentes, para lembrar os Estados e municípios que todas essas dimensões precisam caminhar juntas. Se você desenvolver só a telessaúde, mas não pensar na infraestrutura, no prontuário, na interoperabilidade, você não vai chegar numa maturidade digital e não vai chegar aonde precisa para fazer com qualidade e com os princípios do SUS, o que o SUS precisa de fato. Então, é uma maturidade digital orientada para o processo de atenção à saúde”.
Então, esses são alguns dos desafios. Tem outros desafios de natureza política, por exemplo. A vontade política de cada ente federado de implementar. Esse começo de ano, vamos ter um grande desafio porque nos 5.570 municípios, houve eleição municipal e nós temos novas gestões. Algumas gestões são de continuidade. No estado de Goiás, por exemplo, 40% dos municípios tiveram recondução de prefeitos. Então, nós vamos ter, provavelmente, uma continuidade. O resto, a gente precisa ir atrás, ganhar e procurar fazer com que não tenha uma interrupção dos processos.
Esse processo de continuidade é sempre um grande desafio quando olhamos para saúde de longo prazo. Pensando agora na interoperabilidade, eu já ouvi muitos players dizendo que é difícil você simplesmente fazê-la olhando para o país de dimensões continentais e que seria mais fácil fazer em processos. Qual é a melhor forma de conseguir alcançar interoperabilidade? No SUS, ela vem via linha de cuidado, via prontuário?
Ana Estela Haddad – Bom, tem modelos que se seguem. A primeira coisa é a escolha de um padrão para troca de informações, em âmbito nacional, e nós optamos pelo padrão HL7 FHIR, que é hoje internacionalmente o mais aceito como uma tendência, e é o padrão recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Aí, precisamos combinar com os parceiros. No setor público, isso já está razoavelmente absorvido, mas ainda temos o desafio de capacitação em larga escala dos profissionais de TI, para se apropriar e ter influência no uso desse padrão. A hora que você estabelece um padrão, tem um caminho que você faz, que já fizemos para várias, como para atenção primária à saúde, para o complexo regulador, para alguns aspectos que envolvem a prescrição eletrônica e a ontologia brasileira de medicamentos, que nós já temos hoje uma tabela unificada para poder nos comunicarmos digitalmente na mesma linguagem. A atenção primária à saúde, por exemplo. A primeira coisa é escolher um conjunto mínimo de dados, porque o prontuário é imenso, mas qual vai ser o conjunto mínimo de dados que vamos estabelecer interoperabilidade e que vai aparecer? Que vai estar lá no Meu SUS Digital, no SUS Digital Profissional, que o profissional que atende precisa daquelas informações para garantir a continuidade do cuidado do paciente? Porque menos é mais. Você precisa ter um conjunto sintético que te atenda. Se você tiver tudo, você vai se perder naquilo. Imagina isso em uma escala nacional e numa população de mais de 200 milhões de habitantes, você tem que ser racional nesse processo. Primeiro, é pactual, o conjunto mínimo de dados, e vamos tendo tudo isso regulamentado em portarias, que estão hoje no portal do DataSus, do Ministério da Saúde, da Secretaria de Informação e Saúde Digital, que estamos organizando. Então, escolher o conjunto mínimo de dados, ele é transformado, primeiro, num modelo informacional, usando o padrão FHIR, depois num modelo computacional, para que a Rede Nacional de Dados em Saúde possa receber de diferentes fontes esses dados no padrão, desse modelo. E aí sim, depois lá dentro, ele é enriquecido, combinado com dados de outros sistemas, porque aí está tudo numa mesma linguagem, e isso é devolvido para ser consumido no nível federal. Nesses oito estados já está em processo, no nível estadual também, que depois vai se refletir possivelmente no nível municipal. E temos várias granulações de recorte para olhar para esses dados e depois gerar painéis estratégicos de informação, de indicadores que possamos acompanhar.
E hoje, pensando num estágio talvez de zero a cem, onde que estamos? Estamos mais no comecinho, na metade do caminho, ou já estamos mais perto de ter essa realização?
Ana Estela Haddad – Depende do que consideramos como objetivo. A primeira coisa é que eu acho que avançamos muito proporcionalmente, porque o andar muito não é só o quanto de dados descarregados você já tem ali, mas o primeiro passo mais difícil e mais importante é escolher qual é o modelo a ser adotado e, de fato, conseguir adotar efetivamente e implementar esse modelo. E nós conseguimos fazer isso. Para você ter uma ideia, temos sido referência — tanto a Opas quanto o BID, tem acompanhado de perto a nossa Secretaria, o Brasil, o Ministério da Saúde, nesse quesito da transformação digital. Primeiro, porque nós somos a primeira Secretaria de Informação e Saúde Digital da região das Américas. A própria representante da Opas no Brasil, a doutora Socorro Gross, tem dito e repetido isso. E nós tivemos num evento regional recentemente em Bogotá, na Colômbia, em que foram apresentados alguns casos exitosos na região das Américas, um roadmap da transformação digital, como é que a gente coloca os países numa rota de transformação digital e pode se preparar regionalmente em termos de compartilhamento de dados, de monitoramento para futuras emergências sanitárias, pandemias que possam surgir, de modo regional. Então, é preciso desenvolver todos os países, porque ficou claro, ninguém se isola do outro, as barreiras não existem, porque as pessoas transitam, a mobilidade hoje no mundo é muito grande. A covid se alastrou por meio do mesmo caminho da malha aérea mundial, então temos que estar preparados.
“Quando apresentamos o modelo da RNDS, ele foi visto, por todos ali, como uma coisa extremamente inovadora e que deveria nortear também outros países. Então, onde a gente está? Eu acho que estamos muito bem colocados para um país da dimensão do Brasil, que é continental. Escalar no Brasil é diferente de escalar na Dinamarca. A Dinamarca é extremamente madura, ela tem um índice de prontidão digital pela OCDE, que é um dos maiores do mundo, como a Suécia, só que a Dinamarca é do tamanho do Rio de Janeiro”.
Temos colaboração com eles, aprendemos com a experiência deles, mas eles têm um forte interesse em aprender com a nossa, por todas as especificidades, por causa do nosso tamanho. E a Rede Nacional de Dados em Saúde hoje ela alcançou, segundo dados recentes do último mês, 2.3 bilhões de dados de carga, tem dados de registro de atendimento clínico, de imunobiológicos, vacinas, do complexo regulador que é feito nos estados, que garante a referência e contrarreferência do paciente, por exemplo, quando ele agenda uma consulta especializada, um exame. Então, nós já temos 625 milhões de dados da regulação na Rede Nacional de Dados em Saúde. E nós, do ano passado para esse ano, nós crescemos 25 vezes, a RNDS cresceu 25 vezes. Ainda falta muito? Falta, mas a gente tem que olhar também para tudo que a gente trilhou nesse período e não foi pouco.
O Brasil tem as dimensões continentais e mais de 70% da população depende exclusivamente do SUS, 25% usa a saúde suplementar, os planos de saúde. E eu já ouvi que, por causa da complexidade inclusive política e de conflitos de interesse, vai ser mais “fácil” alcançar interoperabilidade no SUS, do que na saúde suplementar. Queria ouvir um pouco as tuas reflexões sobre isso e também sobre como você enxerga essa conexão com os planos de saúde, a saúde suplementar e o mercado privado como um todo.
Ana Estela Haddad – Olha, a ministra Nísia esteve recentemente no Congresso da Abramge, tem estado nos fóruns da Anahp, a Associação Nacional dos Hospitais Privados, e temos firmado acordos de cooperação. Temos um acordo de cooperação com a Anahp, temos um acordo de cooperação recém firmado com a Abramed, que é a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica. Com a Abramed, vamos juntos estabelecer esse padrão de interoperabilidade para troca de informações e para incorporar na RNDS os resultados de exames, que são feitos também na rede privada, de 41 agravos de notificação compulsória que ainda não estão. Então, aí vai ter um valor de uso do Meu SUS Digital, não só para quem usa diretamente o SUS, mas para quem também usa a saúde suplementar. Então, é um processo gradual.
“É claro que existe esse receio, de uma certa busca de proteção do seu espaço, dos seus dados, mas eu acho que talvez a gente precise dialogar mais e chegar a uma percepção que, se a gente construir um ecossistema de interoperabilidade para o país todo, ganha o paciente, ganha o cidadão, o usuário, mas ganha também toda a rede do ecossistema, porque a continuidade do cuidado vai estar dada, não importa aonde esse cidadão vai buscar o atendimento. Muitas vezes ele transita por uma rede e por outra, e esses dados até então ficavam espalhados por aí”.
E aí é um desperdício de exames, muitas vezes você repete exames que você não precisava talvez repetir se você tivesse esse histórico, você faz um atendimento menos seguro e com menos continuidade, porque você não tem os dados clínicos do histórico do paciente, dos atendimentos que ele recebeu antes, de uma medicação que ele já tomou. Então, agora no Meu SUS Digital, ele também tem lá um diário que ele pode anotar os medicamentos prescritos, que ele pode fazer o seu acompanhamento. O estímulo para o autocuidado, para o protagonismo do cidadão, também está sendo dado dentro do Meu SUS Digital.
Vamos falar agora de telemedicina, que é também uma de suas áreas de especialidade. Eu acompanhei um pouco de perto o momento em que ela foi regulamentada, em 2019, depois acabaram revogando por uma pressão e por um medo, depois ela foi autorizada em caráter emergencial por causa da pandemia e hoje ela está por aí. O quanto na prática estamos usando a telemedicina no SUS?
Ana Estela Haddad – Estamos usando muito e, na verdade, eu sei que você está fazendo o recorte da lei, a lei que regulamentou provisoriamente só a telemedicina, com recorte da telemedicina durante a pandemia e, depois, ao final da pandemia, que ela perdeu vigência porque ela mesma dizia que só teria validade durante a pandemia só que esse foi um período de boom, não só da telemedicina, mas da telessaúde em geral. E aí nós tivemos uma lei definitiva a partir de dezembro de 2022, agora vigente, em caráter definitivo, e não só para a telemedicina, mas para todas as profissões da saúde, portanto, para a telesaúde. Uma coisa importante é que a telessaúde começou no Brasil pelo SUS, e não foi na pandemia. Foi em 2006, mais ou menos. Ali começou, dentro do SUS e numa parceria com universidades públicas, o programa Telessaúde Brasil, que veio a ser depois Telessaúde Brasil Redes, porque ele começou na atenção primária, depois avançou para a rede de atenção como um todo, e chegou a cobrir, pelo menos parcialmente, todos os estados da federação.
Qual era o modelo naquele momento?
Ana Estela Haddad – Primeiro, na atenção primária, era um modelo que chamávamos de oferecer as teleconsultorias ou teleinterconsultas. A gente fazia a segunda opinião para um outro profissional de saúde, mas a gente não fazia teleconsulta diretamente com o paciente, porque o Conselho Federal de Medicina vedava, nós não podíamos. Fora do país era feito há muito tempo, mas aqui a gente não podia, a gente não fazia. Tudo isso levou a desenvolver uma experiência de boas práticas. Nós desenvolvemos plataformas de teleatendimento, modelos para coletar, fazer a comunicação remota, a anamnese, colher a história clínica, muitas vezes com o paciente junto com outro profissional mediando. Então, nós fomos desenvolvendo, isso foi amadurecendo no Brasil, porque nós usamos muito esse processo. Sempre ajudou muito e nós temos muitos estudos mostrando isso. Nós tivemos um primeiro estudo, foi a tese do Eno Castro Filho, que foi um recorte na época da telemedicina. Ele mostrou que, na atenção primária, você fazer a teleconsultoria entre um profissional da medicina de família e comunidade, portanto, especializado em atenção primária e saúde, não especialista em outra área, e ele regulando as perguntas e dúvidas de um profissional da atenção básica, e você fazendo essas perguntas e respostas de uma maneira estruturada, seguindo um padrão, cada duas teleconsultorias evitava que um paciente fosse deslocado para atendimento em outro serviço. Então melhorou a resolubilidade, reduziu o deslocamento. Isso lá atrás, né? Hoje existem muito mais estudos mostrando muito mais coisas. A partir da pandemia houve um boom no setor público e privado. O privado já estava começando a incorporar a partir do público, porque daí nós tivemos uma certa interrupção de financiamento do próprio Ministério na gestão Temer, Bolsonaro, que se perdeu muito do que se tinha construído, reduziu o financiamento, direcionou o financiamento para núcleos específicos, enfraquecendo outros, desequilibrou o jogo. E aí, muita gente que tinha aprendido no SUS migrou para o setor privado e vendeu o seu conhecimento para o setor privado. É bom, mas, por outro lado, o SUS perdeu com isso por um tempo. Nós recuperamos em 2023, 2024.
E como está o cenário hoje?
Ana Estela Haddad – Quando chegamos, nós estávamos com 10 núcleos de telessaúde enfraquecidos. Hoje nós já estamos com 28, fortalecidos, com recursos bem distribuídos em todo o país, fazendo com que eles trabalhem em rede, com que tenhamos ofertas nacionais de telediagnóstico, e numa contabilidade não muito, não tão precisa quanto a que estamos construindo para fazer daqui para frente, com um novo sistema de informação, novos indicadores. “Chegamos entre 2023 e 2024 a aproximadamente 4 milhões e 300 mil teleatendimentos em todo o país, envolvendo telecardiologia, teledermatologia, teleoftalmologia e o teleatendimento também na atenção primária, na teletriagem, telerregulação, enfim.
“Um exemplo interessante, no estado do Ceará, que já implementou a telerregulação ou teleatendimento integrado ao processo de regulação do paciente quando está na atenção primária, se ele precisa ir para uma atenção especializada. Em 918 teleatendimentos que eles fizeram integrados à regulação, eles mediram uma economia de deslocamento de 256 mil quilômetros”.
Então, você imagina o que isso significa para os pacientes, em termos de comodidade, para os profissionais também, para o próprio serviço, o impacto na rede de serviços e para a sustentabilidade ambiental também, porque economizamos deslocamento.
Eu queria aproveitar e já fazer um gancho com uma outra tecnologia que é o maior hype do momento: a inteligência artificial. Como que você avalia a implementação desse tipo de estratégia dentro da saúde digital e como que está sendo já utilizado na prática? Vamos ver mais IA em 2025?
Ana Estela Haddad – Bom, o Ministério da Saúde vem apoiando uma série de projetos de inovação que utilizam inteligência artificial via Secretaria de Informação e Saúde Digital, e Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, a SECTICS, com o secretário Carlos Gadelha. São iniciativas que aplicam essa tecnologia a diferentes situações, ao diagnóstico, a própria gestão e planejamento, a judicialização de medicamentos, o desenvolvimento de novos medicamentos. Tem, por exemplo, o prontuário falado. Então, tem muitas iniciativas em curso. Nós também já utilizamos IA internamente, na parte de inteligência analítica. Nós temos o Departamento de Monitoramento, Avaliação e Disseminação de Informações Estratégicas, que é o departamento que, processa dados dos grandes bancos para transformar em informação estratégica a partir do estabelecimento dos indicadores. Nesse processo, estamos aplicando inteligência artificial e machine learning, mas há uma avenida, um mundo para crescer.
Como isso se estrutura no governo?
Ana Estela Haddad – Nós participamos, como Ministério, das duas secretarias do PBIA, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, coordenado pelo MCTI, do Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação. Eu acho que o plano ficou bom. A ideia é o Brasil ter uma visão estratégica de desenvolver a sua própria inteligência artificial, de não ser só um usuário, isso é muito importante. Está se destinando recursos para isso, que implica também em uma infraestrutura pública de rede, para que possamos fazer frente a tudo isso, então são investimentos vultuosos. E estamos acompanhando a tramitação do projeto de lei que regulamenta a inteligência artificial no Brasil, foi aprovado no Senado e está seguindo agora para a Câmara. Estamos acompanhando como governo, vamos ter grandes mudanças, já estamos tendo.
“O que precisamos garantir, e o plano brasileiro do governo federal vai nessa direção, é que essas mudanças sejam para o bem de todos, para que as forças que estejam no controle sejam as forças do bem, não as forças eventualmente do lucro, ou que usam de maneira opaca, como acontece com Big Techs, em que os dados e os algoritmos são usados para obter vantagens em cima de manipulação”.
Viemos trabalhando muito fortemente com uma série de pesquisadores, de pensadores, não só da reforma sanitária brasileira, que foi o que deu origem ao SUS, mas também [pesquisadores] que têm interface com a saúde digital, da semiótica, da ciência de dados, no sentido de construir também um marco teórico crítico do Brasil para a saúde digital e principalmente no âmbito do SUS. Acho que isso vai ser importante porque não queremos uma transformação digital orientada pela lógica das Big Techs.
Uma última pergunta, que é a pergunta que eu faço para todos os meus convidados: quais são as pautas que o Futuro da Saúde tem que prestar atenção ao longo de 2025?
Ana Estela Haddad – Muito bom. Eu vou te fazer, então, algumas sugestões de pauta. Claro que podemos continuar essa conversa um pouco mais à frente. Nós vamos lançar agora o programa PET Saúde, Informação e Saúde Digital, que é voltado para as universidades, para os Institutos Federais de Ciência e Tecnologia, em parceria com as Secretarias de Saúde, para apresentarem projetos tutorados, com bolsas de estudos que vão para o professor, para o profissional do serviço, para os estudantes, e com isso vamos fazendo projetos de intervenção e de inovação integrados ao Programa SUS Digital. Isso leva a uma formação e educação permanente aplicada, já com a mão na massa, um hands-on. Isso é uma novidade que logo vamos ter. Eu também te sugiro uma conversa depois com o secretário Adriano Massuda, que está à frente do programa Mais Acesso a Especialistas, que é um programa carro-chefe do Ministério, uma prioridade da ministra e também estabelecida pelo presidente Lula, um nó crítico que ainda temos, e que o digital também vai se aplicar fortemente a endereçar o programa Mais Acesso a Especialistas. E o próprio secretário Carlos Gadelha, com a iniciativa do Complexo Econômico Industrial da Saúde, do desenvolvimento e das parcerias público-privadas de um modelo, de um marco regulatório para as parcerias público-privadas, no sentido de podermos, de novo, fazer com que todo o ecossistema de saúde caminhe de uma maneira conectada, digamos assim. Cada um tem seu espaço, seus objetivos, mas existem muitas conexões que podemos fazer, criar sinergias e promover o desenvolvimento do país a partir também do setor saúde.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.