A jornada do câncer infantojuvenil e o projeto “Hack4 Good” do Instituto Ronald McDonald

A jornada do câncer infantojuvenil e o projeto “Hack4 Good” do Instituto Ronald McDonald

O Instituto Ronald McDonald, em parceria com a Leap, um […]

By Published On: 04/11/2021
Na luta contra um câncer, o tempo pode ser um dos maiores influenciadores da cura. Observando as disparidades que impediam muitos brasileiros de conseguir um diagnóstico precoce, o Instituto Ronald McDonald se juntou a Leap, da empresa KPMG, para criar uma plataforma que agisse como uma solução para esse problema. Durante o processo de desenvolvimento também foi observado a importância de cuidar do bem-estar emocional dos pacientes e da família.

O Instituto Ronald McDonald, em parceria com a Leap, um braço de inovação da empresa de consultoria KPMG, quer ‘hackear’ o câncer infantojuvenil por meio do Hack4 Good (Hacking for Good). O projeto tem a proposta de reunir o máximo de dados sobre diversos tipos de cânceres que atingem crianças e adolescentes e estimular o diagnóstico precoce, além de levar informação e orientação para pacientes, famílias e profissionais da saúde sobre essa condição.

A parceria nasceu com a proposta da Leap de utilizar o conceito “digital transformation“, que consiste em encontrar soluções em formato digital para diversos problemas. Para realizar essa tarefa, três questões precisavam ser respondidas: “Como encontrar a criança antes de saber se ela tem câncer? Como diagnosticar o mais cedo possível? E como era o processo de cura?”, revela Bárbara Albino, business hacker da KPMG e uma das responsáveis pelo projeto.

Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o câncer é o maior responsável pela morte de jovens de 1 a 19 anos. Os países com um alto índice de desenvolvimento humano (IDH) apresentam uma taxa de cura de 80% a 85% nesta faixa etária, mas para o Brasil as chances de cura são de 64%. Mesmo que as chances de cura em jovens sejam altas, o mapeamento para compreender as dificuldades da cura do câncer encontrou três elementos preocupantes: o tabu, a comunicação e a fragilidade socioeconômica.

Além disso, a a Business Hacker da KPMG, Bárbara Albino cita ainda outra observação: “Percebemos que existe uma grande dificuldade entre as famílias e os profissionais da saúde, justamente porque pingando de médico em médico não há um histórico do paciente. As famílias não sabem explicar do ponto de vista técnico quais procedimentos foram realizados exatamente”. A business hacker explicou ainda que, baseado nessas observações, a solução digital foi pensada para três frentes: a família, profissionais da saúde em geral e para os especialistas.

Para cumprir essa missão, o Hack4 Good terá informações de sinais e sintomas associados a diversos cânceres que atingem os jovens. Ao ser detectada a possibilidade da doença, a plataforma acionará um profissional de saúde para que entre em contato com a família do paciente e incentive a procura por um atendimento especializado com urgência. O site também terá conteúdo para orientar famílias, médicos, enfermeiros, agentes de saúde e estudantes da área. O objetivo é que o projeto seja um abrigo para dados de diversos pacientes com câncer, facilitando o acompanhamento do desenvolvimento e tratamento da doença, além de reunir informações que, um dia, podem servir de fonte para treinamento de tecnologias com inteligência artificial, por exemplo.

Empecilhos para o diagnóstico precoce

Em 1999, quando o Instituto Ronald McDonald começava sua jornada como uma organização filantrópica sem fins lucrativos, as chances de cura eram ainda menores, estando por volta de 30%. O número despertou uma questão: O que o Brasil estava fazendo pelas crianças com câncer? Por isso, nos primeiros dois anos da organização, foi realizado um mapeamento para descobrir quais recursos chegavam nas cidades e o que estava sendo oferecido em termos de atenção e serviços para as crianças nessa condição.

Ao identificar grandes disparidades de recursos e acesso a tratamento ao longo das regiões brasileiras, principalmente no Norte, Nordeste e Centro-oeste, o instituto trabalhou em uma série de esforços — envolvendo parcerias com associações, universidades, empresas e afins. Assim, o cenário apresentou melhorias, mas não o suficiente. Nas palavras da diretora executiva do Instituto Ronald McDonald, Helen Pedroso, em entrevista para o Futuro da Saúde: “O que percebemos é que a criança é tratada como um mini adulto”. 

Segundo Pedroso, o instituto observou que nessas regiões as pessoas têm dificuldades em encontrar especialistas de oncologia ou oncopediatria, além da falta de recursos tecnológicos para tratamento nos hospitais. Também foi constatado que os pacientes, mesmo sendo muito novos, são tratados como se fossem adultos, o que demonstrou a pouca sensibilidade dos profissionais de saúde para lidar com esses casos. A falta de apoio emocional para o paciente e a família também levantou preocupação.

“Naquela época, não havia obrigatoriedade de ter um médico especializado, não havia uma ala de oncopediatria para crianças, não havia regulamentação do governo que exigisse qualificações para os hospitais que trouxesse essa exigência para que tivéssemos habilitações específicas para tratar crianças, com protocolos clínicos específicos”, afirma a diretora executiva do instituto. 

Com as dificuldades de acesso a tratamento, os pacientes e suas famílias se veem com a necessidade de viajar para regiões ou estados distantes. Por isso, antes mesmo de desenvolver o Hack4 Good, o primeiro passo era fornecer aos migrantes uma estrutura que possibilitasse a busca por ajuda especializada. Através de suas Casas de Apoio, o Instituto Ronald McDonald oferece alimentação, hospedagem, transporte e suporte emocional para os pacientes e suas famílias. Após essa etapa, vem a questão de levar informação às pessoas.

Casa Ronald McDonald em Campinas, São Paulo.

Bárbara Albino viajou até Manaus, no Amazonas, para conhecer mais sobre como é a luta contra o câncer infantojuvenil na cidade. Albino foi uma das responsáveis pelo desenvolvimento do Hack4 Good e entre os principais problemas observados, ela cita que uma situação parece ser unânime: a falta de um diagnóstico pontual e preciso. “O desespero de ter que passar por várias consultas e procedimentos foi algo em comum em todas as famílias que entrevistamos. Nenhum deles foi encaminhado direto para um especialista, não houve suspeita no primeiro momento. As crianças passam por cerca de 5 ou 10 consultas e muitas vezes a dor delas não é levada a sério” explica a business hacker.

Muitos médicos não recebem um treinamento de sensibilização, o que faz com que a dor de muitos jovens seja considerada exagero. Também acontecem situações em que se cogita outra doença, mas não a possibilidade de ser um câncer. Em outras situações “existe um tabu em relação a essa doença até por parte da família. O médico diz que pode ser câncer e a família decide ir em vários médicos, principalmente se tiverem mais recursos. Isso tudo faz com que se perca tempo de início do tratamento” afirma Bárbara Albino.

Os sintomas variam conforme o tipo de câncer e podem ser confundidos com outras doenças. Entre os sinais, podem ser citados, febre alta que não cede, dor ou nódulo na garganta confundidos com caxumba, manchas ou hematomas no corpo que podem parecer ser de queda e outros. Assim, no sistema público é comum que encaminhem a criança de volta para casa com um paliativo para a dor ou que fique em observação. No caso dos planos de saúde, mesmo consultando especialistas pode acontecer do paciente passar por até 18 médicos, de acordo com a diretora executiva do Instituto Ronald McDonald.

Esses fatores fazem com que o Brasil se distancie do conceito de diagnóstico precoce da doença e torne o processo ainda mais difícil, pois as chances de cura são mais altas quando se inicia o tratamento antes das células cancerígenas se espalharem pelo órgão ou pelo corpo.

A expectativa é que o Hack4 Good ajude a minimizar o tempo de início do tratamento e as demais questões. Helen Pedroso explica o contexto em que surgiu a ideia do projeto: “Antes o programa era presencial e durava o dia todo, além de utilizar uma linguagem muito médica. Com a pandemia tivemos o desafio de transformar o programa de diagnóstico precoce em um programa online e trabalhamos com residentes, médicos e enfermeiros, mas percebemos que havia também uma demanda para escolas e pais, por isso começamos a trabalhar também com esses públicos construindo um trabalho de sensibilização com uma linguagem muito mais simples”.

Além disso, o projeto permitiu identificar também a importância do cuidado direcionado para a família “pois a mãe ou outro responsável, é a pessoa que a acompanha a criança em toda sua jornada” de acordo com Pedroso.

O impacto na família e os desafios do tratamento

Ao acompanhar a criança ou adolescente em toda uma jornada de tratamento, uma grande carga emocional pode surgir. A maior parte dos acompanhantes, segundo o instituto, são as mães. Elas acabam sobrecarregadas devido a muitos fatores: “Em geral, são mães que não tem um filho só, mas sim vários outros filhos. Então acabam por ter que deixá-los com a avó ou com o pai e os casamentos sofrem também com essa situação. Tudo isso desestabiliza muito emocionalmente falando. São mulheres que às vezes já estão em posição vulnerável devido à condição socioeconômica e a doença acaba sendo um agravante”, afirma Bárbara Albino.

Além disso, ver o dia a dia do tratamento não é fácil pois “a partir do momento que o tratamento tem início, a rotina é de ir ao hospital todos os dias e muitas vezes às crianças acabam sofrendo traumas por passar por muitos procedimentos, então às vezes ter que lidar com situações difíceis como a criança não querer entrar em uma máquina de ressonância”, diz Helen Pedroso. Por isso, estar em um ambiente onde outras pessoas estão passando pela mesma situação e receber acompanhamento psicológico é algo necessário não apenas para a criança, mas para o acompanhante dela. As Casas de Apoio oferecem isso, em conjunto com outras atividades em oficinas ou até mesmo oferecendo a possibilidade de um tempo pessoal entre uma recuperação e outra do jovem em tratamento.

Outro aspecto ressaltado pelo instituto, é que a forma como se lida com o câncer pode variar de acordo com a idade. Dois anos atrás, o instituto realizou a campanha do McDia Feliz, do McDonald’s, onde entrevistaram as crianças. Com os depoimentos descobriram que “a consciência em relação à doença vai mudando de acordo com o avançar da idade. As crianças menores não tem consciência de que estão passando por uma mudança, elas no máximo se preocupam com os pais”, afirmou a diretora executiva do instituto. Ela continua, explicando que é comum escutar das crianças frases como “Não quero ver minha mamãe triste”.

Na visão de Helen, isso se trata da relação de ver a mãe chorando porque, dependendo do tipo de câncer, o tratamento pode ser longo e agressivo. “No tratamento existem momentos muito difíceis, algumas crianças passam por mais 15 cirurgias ou o tratamento dura mais de 2 anos”, explica. Por essa razão, as crianças percebem a dor de suas mães, por mais fortes que sejam.

Ainda sobre como os jovens lidam com a situação, a fase da pré-adolescência pode acabar mexendo mais com os jovens do que a fase anterior. De acordo com Helen, “as crianças um pouquinho mais velhas se preocupam com a queda de cabelo, com a vaidade. Acho que hoje isso melhorou muito com as perucas e outras tecnologias que imitam o próprio cabelo, mas para as meninas pré-adolescentes a questão de estar carequinha mexe bastante”

Mesmo assim, as crianças ainda são crianças. Ao recuperarem suas energias depois de sessões de terapias, elas voltam a ser alegres: “Você espera um espaço de tristeza mas quando você chega você encontra esse ambiente com as crianças. O que eu já vi de corrida de cadeira de rodas no corredor, é emocionante, são coisas que a gente nunca poderia imaginar”, diz a diretora executiva do Instituto Ronald McDonald.

“O Hack4 Good irá empoderar essas famílias fornecendo suporte para que elas possam engajar no tratamento e reduzir essa visão do câncer como algo terminal. Na verdade, isso é um desafio que a criança precisa passar para ter uma vida normal”, conclui Helen Pedroso.

Letícia Maia

Estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Fez cursos voltados para comunicação científica da Oxford-Brazil EBM Alliance e do Knight Center for Journalism in Americas. Email: leticia@futurodasaude.com.br

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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