2020 foi um ano perdido para as crianças?
2020 foi um ano perdido para as crianças?
O ano de 2020 trouxe a perda de quase 2
O ano de 2020 trouxe a perda de quase 2 milhões de vidas em todo o mundo. Levou ao desemprego, à solidão e à incerteza sobre o amanhã para a população global. Para as crianças, provocou o fechamento das escolas e aulas à distância, o afastamento dos amigos, o confinamento em casa e o aumento do tempo de tela. Para as cerca de 20 milhões de crianças que vivem na pobreza e extrema pobreza no Brasil, o ano de 2020 trouxe ainda mais privações, como a falta do almoço, da segurança e do aprendizado proporcionados pelas escolas. Diante desse cenário, em um momento em que avaliamos o ano que passou e planejamos o próximo, nos perguntamos: “O ano de 2020 foi um ano perdido para o desenvolvimento das crianças e adolescentes do nosso país?”
De fato, com a pandemia, as crianças e adolescentes foram expostas a muitas situações de estresse. A limitação de atividades, a restrição de espaço, o afastamento de familiares e amigos, o medo da infecção e da morte, a ansiedade e depressão dos pais, a interrupção do ensino presencial são algumas delas. Estas situações têm gerado nas próprias crianças muitos problemas emocionais, como medos, preocupações e irritabilidade. A maior parte delas têm progressivamente se recuperado, mas outras desenvolvem transtornos mentais.
Para que o estresse vivido pelas crianças não leve a transtornos mentais, ele precisa ser contrabalançado por forças de proteção, que são constituídas por características próprias das crianças e pelo suporte que elas recebem dos pais, principalmente, mas também da família, amigos, escola e da comunidade em geral. Se o suporte for grande, a força destrutiva dos estressores pode ser atenuada e mesmo transformada em força positiva, gerando aprendizado e desenvolvimento. Se o suporte for fraco, mesmo estressores não tão fortes podem abalar a estrutura emocional, gerar sofrimento psíquico e eventualmente levar a transtornos mentais. Essa relação é variável para cada indivíduo, já que cada um conta com uma suscetibilidade individual para desenvolver ou não um transtorno mental.
Suporte enfraquecido
Nesse momento, muitos pais estão abalados. Familiares e amigos estão distantes; portanto, o suporte para as crianças está enfraquecido. Muitos pais já não tinham antes da pandemia capacidade de promover o desenvolvimento dos filhos de uma forma reflexiva, porque falta para eles repertório e estrutura para processar emoções. Esses pais tendem a não validar o sofrimento dos filhos ou mesmo não perceber o que ocorre. Se os filhos perturbam, se algo sai do esperado, simplificam, negam, desvalorizam, eventualmente terceirizam. Não conseguem identificar as suas influências sobre o comportamento e as emoções dos filhos. Contam que os filhos passam o tempo entre o celular, séries e jogos, sem mesmo sentar à mesa para as refeições, mas geralmente não revelam que eles próprios não sentam à mesa, ou quando sentam, não tiram os olhos das telas dos seus celulares. Conversas são escassas e geralmente se restringem a cobranças em relação a expectativas não cumpridas, como se eles (pais) não fizessem parte do processo que culmina com o filho participar efetivamente das aulas on-line, por exemplo. Eventualmente os filhos os “perturbam” porque querem ver os amigos e, dessa forma, permitem que frequentem ou organizem festas durante a pandemia. Infelizmente, para essas crianças e adolescentes que tiveram a sorte de estar em lares com estabilidade econômica e de não ter familiares falecidos pela pandemia, mas com pais que não estimularam o seu desenvolvimento emocional, o ano de 2020, com já quase 200.000 brasileiros mortos pela pandemia, foi apenas um aborrecimento a mais, e nenhum crescimento surgiu a partir dele.
A nova realidade
Felizmente muitas crianças se deparam com os estressores da pandemia ao lado de pais disponíveis, com condições de perceber as necessidades emocionais dos filhos e agir adequadamente. Geralmente são pessoas com maior nível educacional, mas não necessariamente. Esses pais estão sendo capazes de “fazer do limão, uma limonada”, ou seja, não negam o seu sofrimento e o sofrimento dos filhos, mas a partir dele amenizam o sofrimento e estimulam que as crianças aprendam e se desenvolvam. Muitas oportunidades têm surgido nesse sentido. Crianças e adolescentes têm se deparado com doença e morte, vulnerabilidade dos mais velhos, com a impossibilidade de controlar o mundo, com a imprevisibilidade e a incerteza da vida. Conceitos importantes, que a sociedade contemporânea tem cada vez mais negado e escondido, gerando até então jovens adultos cada vez mais frágeis e despreparados. A reflexão sobre essas questões pode gerar um aprendizado muito grande.
As crianças e adolescentes têm também se deparado com a falta de atividades de lazer costumeiras, e com isso surgiu a possibilidade de flexibilizar, de criar. Têm se deparado com a falta de amigos, e com isso oportunidades de aprender a tolerar frustrações, de brincar sozinhos, de ler, ouvir música, de refletir. As crianças e adolescentes têm tido a oportunidade de assistir aos pais trabalhando, de estar com eles no café da manhã, almoço e jantar, de lavar a louça e arrumar o quarto, de entender como é uma rotina de trabalho, os problemas e frustrações, bem como os sucessos e prazeres relacionados ao trabalho, fora e dentro de casa. Têm se deparado com a noção de que vivemos em uma grande comunidade, de que o que ocorre do outro lado do mundo pode logo bater à nossa porta e de que nossas ações têm repercussões sobre todos. Têm testemunhado todos os tipos de líderes, desde aqueles que apenas ocupam cargos, mas não lideram, não assumem responsabilidades, não validam a ciência, e com isso trazem caos e desesperança, até verdadeiros líderes, que tomam para si grandes responsabilidades e trabalham arduamente para o bem comum. Para essas crianças, o ano de 2020 trouxe incertezas e ansiedade, mas com isso aprendizados importantes e desenvolvimento que talvez não tivesse ocorrido de outra forma.
A falta da escola
Mas as crianças e adolescentes não têm sido apenas expostas a estressores, com maior ou menor oportunidade de crescimento a partir deles. Elas têm sido privadas do ambiente escolar e com isso, de estímulos essenciais ao seu desenvolvimento, seja do ponto de vista emocional, social, motor, cognitivo e acadêmico. Estar no ambiente escolar não significa apenas aprender regras de gramática ou novas operações matemáticas. Significa aprender como estudar, como executar diferentes tarefas, negociar decisões em grupo, colocar sua opinião e ouvir contrárias. Significa também encontrar amigos e colegas no intervalo, se apaixonar, tornar-se amigo de um e brigar com outro. Significa tudo isso e muito, mas muito mais. Nesse sentido, o desenvolvimento das crianças e adolescentes foi freado ao longo de 2020. Aquelas em escolas privadas, com internet de alta velocidade disponível, um local adequado para o aprendizado em casa, pais dispostos e com condições de mediar o aprendizado, se beneficiaram do ensino à distância e os prejuízos foram amenizados. Ou seja, uma minoria em nosso país. A maioria, sem essas condições, vem sofrendo continuamente importantes prejuízos. Com isso, aqueles com mais condições, que já eram privilegiados, passaram a ter ainda maior vantagem sobre aqueles menos privilegiados, potencialmente amplificando desigualdades que permanecerão ao longo dos próximos anos.
É claro que em nosso país tão contraditório, pergunta-se qual a lógica que rege o Estado ao permitir aglomerações de pessoas nas praias, festas de Ano Novo, e não permitir que escolas voltem a funcionar. Em que momento da história a educação deixou de ser uma prioridade e as escolas passaram a não ser um serviço essencial para o país? Para as crianças que dependem do cuidado do Estado, ou dependem do cuidado de pais que reproduzem o comportamento do Estado – insensível, omisso, contraditório – o ano de 2020 foi um ano perdido. Para aquelas crianças e adolescentes privilegiadas, que contam com pais que puderam estar emocionalmente conectados a elas, o ano de 2020 foi um ano de desafios e sofrimentos, mas também de muitos aprendizados a partir de experiências reais. Aprendizados que não serão esquecidos.
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NATALIA CUMINALE
Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.