2020 foi um ano perdido para as crianças?

2020 foi um ano perdido para as crianças?

O ano de 2020 trouxe a perda de quase 2

By Published On: 07/01/2021

O ano de 2020 trouxe a perda de quase 2 milhões de vidas em todo o mundo. Levou ao desemprego, à solidão e à incerteza sobre o amanhã para a população global. Para as crianças, provocou o fechamento das escolas e aulas à distância, o afastamento dos amigos, o confinamento em casa e o aumento do tempo de tela. Para as cerca de 20 milhões de crianças que vivem na pobreza e extrema pobreza no Brasil, o ano de 2020 trouxe ainda mais privações, como a falta do almoço, da segurança e do aprendizado proporcionados pelas escolas. Diante desse cenário, em um momento em que avaliamos o ano que passou e planejamos o próximo, nos perguntamos: “O ano de 2020 foi um ano perdido para o desenvolvimento das crianças e adolescentes do nosso país?”

De fato, com a pandemia, as crianças e adolescentes foram expostas a muitas situações de estresse. A limitação de atividades, a restrição de espaço, o afastamento de familiares e amigos, o medo da infecção e da morte, a ansiedade e depressão dos pais, a interrupção do ensino presencial são algumas delas. Estas situações têm gerado nas próprias crianças muitos problemas emocionais, como medos, preocupações e irritabilidade. A maior parte delas têm progressivamente se recuperado, mas outras desenvolvem transtornos mentais.

Para que o estresse vivido pelas crianças não leve a transtornos mentais, ele precisa ser contrabalançado por forças de proteção, que são constituídas por características próprias das crianças e pelo suporte que elas recebem dos pais, principalmente, mas também da família, amigos, escola e da comunidade em geral. Se o suporte for grande, a força destrutiva dos estressores pode ser atenuada e mesmo transformada em força positiva, gerando aprendizado e desenvolvimento. Se o suporte for fraco, mesmo estressores não tão fortes podem abalar a estrutura emocional, gerar sofrimento psíquico e eventualmente levar a transtornos mentais. Essa relação é variável para cada indivíduo, já que cada um conta com uma suscetibilidade individual para desenvolver ou não um transtorno mental.

Suporte enfraquecido

Nesse momento, muitos pais estão abalados. Familiares e amigos estão distantes; portanto, o suporte para as crianças está enfraquecido. Muitos pais já não tinham antes da pandemia capacidade de promover o desenvolvimento dos filhos de uma forma reflexiva, porque falta para eles repertório e estrutura para processar emoções. Esses pais tendem a não validar o sofrimento dos filhos ou mesmo não perceber o que ocorre. Se os filhos perturbam, se algo sai do esperado, simplificam, negam, desvalorizam, eventualmente terceirizam. Não conseguem identificar as suas influências sobre o comportamento e as emoções dos filhos. Contam que os filhos passam o tempo entre o celular, séries e jogos, sem mesmo sentar à mesa para as refeições, mas geralmente não revelam que eles próprios não sentam à mesa, ou quando sentam, não tiram os olhos das telas dos seus celulares. Conversas são escassas e geralmente se restringem a cobranças em relação a expectativas não cumpridas, como se eles (pais) não fizessem parte do processo que culmina com o filho participar efetivamente das aulas on-line, por exemplo. Eventualmente os filhos os “perturbam” porque querem ver os amigos e, dessa forma, permitem que frequentem ou organizem festas durante a pandemia. Infelizmente, para essas crianças e adolescentes que tiveram a sorte de estar em lares com estabilidade econômica e de não ter familiares falecidos pela pandemia, mas com pais que não estimularam o seu desenvolvimento emocional, o ano de 2020, com já quase 200.000 brasileiros mortos pela pandemia, foi apenas um aborrecimento a mais, e nenhum crescimento surgiu a partir dele.

A nova realidade

Felizmente muitas crianças se deparam com os estressores da pandemia ao lado de pais disponíveis, com condições de perceber as necessidades emocionais dos filhos e agir adequadamente. Geralmente são pessoas com maior nível educacional, mas não necessariamente. Esses pais estão sendo capazes de “fazer do limão, uma limonada”, ou seja, não negam o seu sofrimento e o sofrimento dos filhos, mas a partir dele amenizam o sofrimento e estimulam que as crianças aprendam e se desenvolvam. Muitas oportunidades têm surgido nesse sentido. Crianças e adolescentes têm se deparado com doença e morte, vulnerabilidade dos mais velhos, com a impossibilidade de controlar o mundo, com a imprevisibilidade e a incerteza da vida. Conceitos importantes, que a sociedade contemporânea tem cada vez mais negado e escondido, gerando até então jovens adultos cada vez mais frágeis e despreparados. A reflexão sobre essas questões pode gerar um aprendizado muito grande.

As crianças e adolescentes têm também se deparado com a falta de atividades de lazer costumeiras, e com isso surgiu a possibilidade de flexibilizar, de criar. Têm se deparado com a falta de amigos, e com isso oportunidades de aprender a tolerar frustrações, de brincar sozinhos, de ler, ouvir música, de refletir. As crianças e adolescentes têm tido a oportunidade de assistir aos pais trabalhando, de estar com eles no café da manhã, almoço e jantar, de lavar a louça e arrumar o quarto, de entender como é uma rotina de trabalho, os problemas e frustrações, bem como os sucessos e prazeres relacionados ao trabalho, fora e dentro de casa. Têm se deparado com a noção de que vivemos em uma grande comunidade, de que o que ocorre do outro lado do mundo pode logo bater à nossa porta e de que nossas ações têm repercussões sobre todos. Têm testemunhado todos os tipos de líderes, desde aqueles que apenas ocupam cargos, mas não lideram, não assumem responsabilidades, não validam a ciência, e com isso trazem caos e desesperança, até verdadeiros líderes, que tomam para si grandes responsabilidades e trabalham arduamente para o bem comum. Para essas crianças, o ano de 2020 trouxe incertezas e ansiedade, mas com isso aprendizados importantes e desenvolvimento que talvez não tivesse ocorrido de outra forma.

A falta da escola

Mas as crianças e adolescentes não têm sido apenas expostas a estressores, com maior ou menor oportunidade de crescimento a partir deles. Elas têm sido privadas do ambiente escolar e com isso, de estímulos essenciais ao seu desenvolvimento, seja do ponto de vista emocional, social, motor, cognitivo e acadêmico. Estar no ambiente escolar não significa apenas aprender regras de gramática ou novas operações matemáticas. Significa aprender como estudar, como executar diferentes tarefas, negociar decisões em grupo, colocar sua opinião e ouvir contrárias. Significa também encontrar amigos e colegas no intervalo, se apaixonar, tornar-se amigo de um e brigar com outro. Significa tudo isso e muito, mas muito mais. Nesse sentido, o desenvolvimento das crianças e adolescentes foi freado ao longo de 2020. Aquelas em escolas privadas, com internet de alta velocidade disponível, um local adequado para o aprendizado em casa, pais dispostos e com condições de mediar o aprendizado, se beneficiaram do ensino à distância e os prejuízos foram amenizados. Ou seja, uma minoria em nosso país. A maioria, sem essas condições, vem sofrendo continuamente importantes prejuízos. Com isso, aqueles com mais condições, que já eram privilegiados, passaram a ter ainda maior vantagem sobre aqueles menos privilegiados, potencialmente amplificando desigualdades que permanecerão ao longo dos próximos anos.

É claro que em nosso país tão contraditório, pergunta-se qual a lógica que rege o Estado ao permitir aglomerações de pessoas nas praias, festas de Ano Novo, e não permitir que escolas voltem a funcionar. Em que momento da história a educação deixou de ser uma prioridade e as escolas passaram a não ser um serviço essencial para o país? Para as crianças que dependem do cuidado do Estado, ou dependem do cuidado de pais que reproduzem o comportamento do Estado – insensível, omisso, contraditório – o ano de 2020 foi um ano perdido. Para aquelas crianças e adolescentes privilegiadas, que contam com pais que puderam estar emocionalmente conectados a elas, o ano de 2020 foi um ano de desafios e sofrimentos, mas também de muitos aprendizados a partir de experiências reais. Aprendizados que não serão esquecidos.

Guilherme Polanczyk

Professor Associado da Disciplina de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Coordena o Programa de Diagnóstico e Intervenções Precoces e a Unidade de Internação de crianças e adolescentes do Instituto de Psiquiatria do HC-USP. Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com residência em Psiquiatria e em Psiquiatra da Infância e Adolescência no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Possui Mestrado e Doutorado em Psiquiatria na UFRGS e Pós-Doutorado no MRC SGDP Centre Institute of Psychiatry King’s College London, na Inglaterra, e na Universidade de Duke, nos EUA.

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Professor Associado da Disciplina de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Coordena o Programa de Diagnóstico e Intervenções Precoces e a Unidade de Internação de crianças e adolescentes do Instituto de Psiquiatria do HC-USP. Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com residência em Psiquiatria e em Psiquiatra da Infância e Adolescência no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Possui Mestrado e Doutorado em Psiquiatria na UFRGS e Pós-Doutorado no MRC SGDP Centre Institute of Psychiatry King’s College London, na Inglaterra, e na Universidade de Duke, nos EUA.

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NATALIA CUMINALE

Sou apaixonada por saúde e por todo o universo que cerca esse tema -- as histórias de pacientes, as descobertas científicas, os desafios para que o acesso à saúde seja possível e sustentável. Ao longo da minha carreira, me especializei em transformar a informação científica em algo acessível para todos. Busco tendências todos os dias -- em cursos internacionais, conversas com especialistas e na vida cotidiana. No Futuro da Saúde, trazemos essas análises e informações aqui no site, na newsletter, com uma curadoria semanal, no podcast, nas nossas redes sociais e com conteúdos no YouTube.

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    Infectologista do Instituto Emílio Ribas, Chefe do Departamento de Infectologia do Grupo Santa Joana e Membro dos Comitês de Imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia, de Calendários da Sociedade Brasileira de Imunização e do Comitê Permanente em Assessoramento de Imunização da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. É graduada em Medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos e possui Doutorado em Medicina pela Universidade de Freiburg, na Alemanha

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    Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Maria. Foi trainee do programa "Jornalismo na Prática" do Correio Braziliense, voltado para a cobertura de saúde. Premiada na categoria de reportagem em texto na 2ª edição do Prêmio de Comunicação de Saúde na Primeira Infância da Fundação José Luiz Egydio Setúbal.

Guilherme Polanczyk

Professor Associado da Disciplina de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Coordena o Programa de Diagnóstico e Intervenções Precoces e a Unidade de Internação de crianças e adolescentes do Instituto de Psiquiatria do HC-USP. Médico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com residência em Psiquiatria e em Psiquiatra da Infância e Adolescência no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Possui Mestrado e Doutorado em Psiquiatria na UFRGS e Pós-Doutorado no MRC SGDP Centre Institute of Psychiatry King’s College London, na Inglaterra, e na Universidade de Duke, nos EUA.